por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Maio de 2001
Crónica x/2001
A Festa da Música encheu este fim-de-semana mais uma vez o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, oferecendo três magníficos dias cheios de concertos dedicados à música russa.
É um privilégio viver uma Festa da Música porque a multiplicação da oferta de concertos e a concentração de excelentes intérpretes provoca uma excitação particular. Se os gafanhotos se excitam através da fricção das asas uns nos outros e se os centros comerciais são estudados para fornecer a agitação necessária e suficiente para promover a fúria de comprar, os melómanos excitam-se através da troca de comentários à saída dos auditórios, do som das ovações que sai das salas para onde não conseguiram bilhete, dos comentários dos amigos que se encontram sempre nestas ocasiões. "Impressionantes os coros!", "Já ouviste o Berezovsky?", "E os Momentos Musicais pelo Lugansky!?" Em duas horas, todos os intérpretes e compositores se tornam muito de lá de casa.
Uma parte da excitação vem do facto de se saber que ali, numa daquelas salas aveludadas, dos dedos de um daqueles homens e mulheres que atravessam os corredores transportando caixas de formas estranhas, uns de fraque, outros em mangas de camisa, vai sair provavelmente algo de sublime. Aconteceu com o violoncelista Alexander Kniazev, com o consagrado Pieter Wispelwey, com o Quarteto Debussy, e certamente em muitos mais momentos, fugazes mas mágicos, nas muitas salas da Festa.
Claro que os 41.000 bilhetes vendidos deste ano não representam 41.000 espectadores (os espectadores compram bilhetes para a Festa às meias-dúzias e às dúzias) e seria bom que o espectáculo pudesse alargar-se a um público ainda mais amplo. Seria bom ver mais crianças de todas as idades e famílias inteiras na Festa, seria bom poder tocar e ouvir música ao ar livre (nem todos os instrumentos se prestam, é verdade), seria bom ter músicos que falassem mais com o público, que aqui e ali a dessacralização fosse levada um pouco mais longe, que houvesse espaços pensados para mais contactos informais com os músicos. Tudo isso seria ainda melhor.
Mas a verdade é que a Festa oferece uma verdadeira barrigada de música e deixa, no fim, como toda a verdadeira festa, a nostalgia e as saudades da Festa do ano que vem (já afiamos o dente para Haydn e Mozart). Claro que haverá outros concertos e entretanto gozaremos os discos das peças e dos intérpretes que descobrimos aqui, mas a Festa é algo que já se tornou indispensável, de que já sentimos a falta.
A Festa da Música foi o melhor presente de despedida que Miguel Lobo Antunes nos podia deixar, no momento em que abandona o Centro Cultural de Belém, rumo não se sabe onde. É estranho que saia sem que o Estado lhe faça uma proposta aliciante para continuar a exercer os seus talentos em proveito público, seja onde for. Mas seria lamentável que a sua saída se saldasse por um retrocesso no caminho traçado até aqui pelo CCB na conquista de novos públicos para a cultura.
Obrigado, Miguel Lobo Antunes.
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