por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Maio de 2001
Crónica x/2001
Foi recentemente publicado em França um livro intitulado "Services Spéciaux, Algérie, 1955-1957", da autoria do general Paul Aussaresses, antigo responsável dos serviços de informação franceses. Nas suas páginas, o autor admite e relata a prática rotineira de actos de tortura e execução sumária de militantes independentistas, praticados sob as suas ordens e em certos casos pelas suas próprias mãos, durante a guerra da Argélia.
O livro reabriu em França a profunda ferida da Argélia e relançou o debate sobre os verdadeiros factos da guerra de independência argelina; sobre o papel obscuro jogado nessa história por François Mitterand, então ministro da Justiça; sobre o dever moral, a possibilidade prática e a conveniência política de lembrar e julgar este tipo de actos; sobre o pousio que deve ser concedido aos factos da História recente; e sobre a hipocrisia do Ocidente em geral e da França em particular quando fala dos direitos humanos e da necessidade de julgar os torcionários... estrangeiros.
Aussaresses não só confessa todos os seus crimes como garante - no livro e em entrevistas posteriores - não sentir o mínimo remorso ou sobressalto moral pelo que fez. Era a guerra, tinha recebido ordens, eles eram o inimigo, usava os meios mais eficazes para os exterminar, repetiria hoje o que fez ontem, tudo pela França.
Num livro publicado em 1967, " O prisioneiro", o escritor brasileiro Erico Veríssimo conta a história de um jovem oficial que recebe ordens para forçar um prisioneiro a confessar onde colocou uma bomba. A acção passa-se num país e numa guerra não identificada e o livro aborda o drama moral do oficial, colocado entre o dilema de torturar um prisioneiro ou permitir que um atentado à bomba faça dezenas de vítimas inocentes.
Quando o livro de Veríssimo foi publicado, todos viram nele uma alusão à guerra do Vietname. Na realidade, o escritor inspirou-se no relato de um episódio passado na Argélia, que envolveu um prisioneiro da FLN e um oficial francês.
É curioso constatar como o dilema moral do personagem de Veríssimo está longe do personagem real de Aussaresses. Mas é ainda mais chocante descobrir como, perante estes actos, as autoridades e até as opiniões públicas se mostram capazes da mais evidente duplicidade de critérios - isto depois de conhecermos tantas mais atrocidades, depois de conhecermos a sua inutilidade (a não ser como geradoras de ódio), depois do longo debate da filosofia política sobre os fins e os meios. Tudo o que a justiça francesa pôde fazer a Aussaresses pelo seu livro foi processá-lo por "apologia de crimes de guerra". Algo aquém da exigência moral sentida perante um Pinochet ou um Milosevic.
Hubert Beuve-Méry, fundador de "Le Monde", dizia, a propósito do uso da tortura na Argélia, em 1956 (o facto não era uma novidade), que restava esperar que os franceses não se acostumassem a justificar os "procedimentos semelhantes cometidos sob os regimes hitleriano ou estalinista". As palavras continuam actuais.
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