por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Junho de 2001
Crónica x/2001
A propósito de três livros publicados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha que abordam a posição ocupada pelos deficientes na sociedade e o papel de assistência aos doentes tradicionalmente assumido pelas mulheres, a especialista de ética Martha Nussbaum publicou no jornal "The New York Review of Books" um interessante artigo.
Nussbaum começa por fazer notar que este trabalho, geralmente feito por mulheres, constitui um factor de desigualdade social e injustiça, já que não é remunerado nem reconhecido socialmente. A sua invisibilidade é ainda maior que o trabalho de casa ou o de cuidar dos filhos, apesar de ele limitar de forma drástica a possibilidade de fruição pessoal, de realização profissional e de participação cívica daquelas que o desempenham.
Estas mulheres realizam um trabalho vital para a sociedade, cujo peso tenderá a ser cada vez maior, à medida que aumenta a esperança de vida.
Porém, à medida que a sua necessidade aumenta, a sua dignidade não parece de forma alguma reconhecida.
O artigo de Nussbaum chama a atenção para o facto de que todos somos indivíduos apenas episodicamente independentes. Se considerarmos a nossa infância, a velhice, as doenças passageiras ou crónicas, as convalescenças, as deficiências temporárias ou definitivas, damo-nos conta de que uma grande parte da nossa vida é passada sob os cuidados de alguém.
Ora acontece que as teorias políticas ocidentais se baseiam na ideia de um "contrato social", assinado por seres "livres, iguais e independentes" para vantagem mútua. Esta ficção de uma sociedade formada por seres competentes e maduros parece inocente mas não é, diz Nussbaum.
De facto, haverá sempre pessoas permanentemente dependentes, incapazes de participar nos acordos de reciprocidade que estão na base dos nossos ideais de justiça e de solidariedade.
O contrato pressupõe uma vantagem mútua. O que se passa quando já se sabe à partida que algúem vai "receber" e não vai nunca "pagar"? O contrato não poderá ser posto em causa? Será que um dia os deficientes poderão ser julgados um luxo que uma sociedade competitiva não pode tolerar?
Nussbaum discute um alargamento da lista dos "bens primários" que qualquer sociedade deve proporcionar a todos os seus cidadãos (proposta pelo filósofo John Rawls) de forma a incluir a assistência durante os períodos de dependência.
Mas Nussbaum não resolve o problema daqueles que serão sempre dependentes e que nunca poderão "pagar" a sua parte numa moeda socialmente aceite. Uma proposta para garantir a reciprocidade do contrato seria introduzir formalmente o "factor animal" nestas considerações, incluindo na lista dos "bens primários" que a sociedade deve garantir não apenas o bem-estar próprio, mas o bem-estar da nossa prole.
A regra de ouro social deixaria assim de ser apenas "tratar os outros como queremos que nos tratem "mas também "tratar os filhos dos outros como queremos que tratem os nossos filhos" — o que constituiria uma vantagem própria e garantiria o resultado desejado.
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