por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Junho de 2010
Crónica 21/2010
Crónica 21/2010
“Num país onde as leis são imorais, a desobediência civil é obrigatória”
O governo de Israel acabou de escrever mais uma página vergonhosa da história recente do país, ao atacar em águas internacionais uma pequena frota de seis navios civis que transportavam dez mil toneladas de ajuda humanitária para Gaza, matando 10 a 20 activistas e ferindo 26.
Os navios, que tinham partido de Chipre no domingo, levavam a bordo algumas centenas de activistas pró-palestinianos, na sua maioria turcos. Entre eles encontravam-se também jornalistas, um prémio Nobel da Paz e várias outras personalidades que se preparavam para furar de forma pacífica o bloqueio que Israel impõe em torno do território palestiniano. O seu objectivo era entregar equipamento médico e materiais de construção aos habitantes da Faixa de Gaza.
Os organizadores da iniciativa já sabiam que a marinha israelita os iria abordar e, eventualmente, forçá-los a desviar o rumo ou aprisionar os navios, mas tencionavam opor resistência passiva aos militares e contavam com o impacto mediático desse confronto para chamar a atenção do mundo para a situação da região. E, com um pouco de sorte, talvez pudessem entregar os materiais que traziam aos palestinianos.
Em Gaza vivem 1,5 milhões de pessoas, a esmagadora maioria das quais em condições infra-humanas, sem acesso aos necessários cuidados de saúde, alimentação, educação ou habitação devido ao bloqueio imposto por Israel, uma situação repetidamente condenada pelas organizações humanitárias internacionais, pela ONU (que lhe chama um “castigo colectivo”), pela União Europeia e por todas as pessoas com um mínimo de decência – incluindo muitos e muitos israelitas que têm pago com a liberdade e com perseguições a ousadia em opor-se à política racista e militarista da extrema-direita israelita, levada a cabo, diga-se de passagem, com o apoio de alguns partidos que passam por ser de esquerda no espectro partidário israelita, como o Partido Trabalhista de Ehud Barak, que integra a actual coligação governamental como ministro da Defesa.
A justificação do governo de Benjamin Netanyahu para a agressão não podia ser mais patética: o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros Danny Ayalon acusou os navios de pretenderem “abrir um corredor para fazer contrabando de armas e de terroristas”, os organizadores da missão de serem aliados da Al-Qaeda, e disse que os soldados israelitas apenas responderam porque foram atacados. Aparentemente, os navios albergariam um exército.
O que este lamentável caso mostra mais uma vez é que as forças armadas israelitas e o governo que as comanda consideram ser seu privilégio, em nome da defesa do seu território e dos seus concidadãos, ignorar quaisquer leis internacionais, disparar primeiro e perguntar depois e, de uma forma geral, tratar todos os que não são israelitas, judeus e admiradores do governo (são necessárias as três condições) como cidadãos de segunda, pessoas cujas vidas merecem apenas uma ínfima percentagem do respeito que merecem as suas próprias.
A tendência vem de antes, mas a política de extrema-direita do governo de Netanyahu tem vindo a reduzir de forma drástica as liberdades cívicas e o direito de protesto em Israel. Estas acusações são feitas pelas muitas organizações de direitos humanos israelitas que defendem os direitos dos palestinianos e que são pela causa da paz. Na semana passada Ezra Nawi, um militante pacifista israelita que se tem batido pelos direitos humanos e contra os colonatos, foi preso com base numa falsa acusação de agressão a soldados (o filme da “agressão” está na Internet).
A sua defesa mobilizou milhares de pessoas, mas o tribunal condenou com dureza a sua acção de desobediência civil. É natural: Nawi mete-se dentro das casas de palestinianos que os soldados querem demolir, uma forma violentíssima de terrorismo que o Estado israelita não pode permitir. Na sua despedida, antes de ser preso, Nawi disse aos amigos: “Num país onde as leis são imorais, a desobediência civil é obrigatória. Por isso, não vai tardar muito até que muitos de vocês venham juntar-se a mim na cadeia.” A única razão por que se pode ainda esperar que alguém salve a honra perdida de Israel é que há muitas pessoas dispostas a correr esse risco em nome da paz. (jvmalheiros@gmail.com)
Sem comentários:
Enviar um comentário