por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Junho de 2010
Crónica 22/2010
Crónica 22/2010
Proibir o marketing directo dirigido a crianças é a coisa certa a fazer
Talvez tenha sido assim nos outros campeonatos mundiais de futebol, mas não reparei. Desta vez fui obrigado, porque um génio do marketing pôs rapazinhos a distribuir à borla cadernetas de cromos South Africa 2010 FIFA World Cup à porta das escolas. Um deles postou-se à porta da escola do meu fi lho mais novo e, nesse dia, ele trouxe uma caderneta para casa, excitadíssimo, e pediu-me para não me esquecer de comprar os cromos no dia seguinte. Não achei muita graça ao facto de alguém ter decidido manipular desta forma um consumidor de 7 anos de idade (milhares de crianças, provavelmente) mas, como o génio do marketing tinha calculado, não atirei a caderneta para o lixo.
No dia seguinte não comprei os cromos, mas o meu filho fez-me prometer que iria lembrar-me no dia seguinte.
Comprei dez pacotes (seis euros) e estivemos nessa noite a colá-los na caderneta. Depois de colados os quarenta e seis cromos (havia quatro repetidos) a caderneta tinha um ar de tão vazia como no princípio mas o meu filho estava satisfeito. Um dia, talvez ainda antes de o Mundial acabar, a caderneta estaria toda cheia de cromos.
Passados uns dias comprei mais uns pacotes de cromos, que colámos na caderneta depois do jantar. Foi só depois deste segundo serão que tive a curiosidade de fazer as contas ao custo total da caderneta. Foi então que concluí que, para conseguir os 637 cromos, mesmo que não saíssem cromos repetidos nas carteirinhas, seria preciso comprar 128 pacotes. A sessenta cêntimos, seriam 76,80 euros. Mas, considerando que nas cadernetas aparecem muitos cromos repetidos (não ao princípio, como é lógico, mas para o fim isso é frequente), a caderneta ficará certamente por uns 100 ou 120 euros, ou mesmo mais.
Não digam nada ao meu filho, mas ele não vai ter nunca a caderneta do Mundial toda cheia e receio que nunca mais vá ter nenhuma colecção de cromos. Para mais, a caderneta foi lançada antes de se saber qual seria a composição exacta das selecções e, por isso, os cromos representam apenas uma aproximação às verdadeiras selecções, o que reduz o seu valor como documento. A alegação do editor, a Panini, de que “a colecção incluirá as imagens dos jogadores das equipas em competição” é, portanto, falsa (digo de passagem que o facto de um cromo se chamar Cardoso ou Serafim me é absolutamente indiferente, mas não o será para os mais fiéis).
Um livro de 80 euros é um livro caro. E se for de 120 euros é muito caro. Já comprei a 120 euros livros de arte, aqueles livros de grande formato que dão pelo deselegante nome de coffee table books mas que possuem um aspecto gráfico que vai do sofisticado ao sublime. A caderneta da Panini não é nenhuma das coisas: a qualidade do papel, da impressão, das fotos ou do design é, digamos, modesta.
A que se deve o custo? Ao facto de muita gente querer aquela caderneta. Ninguém é obrigado a comprar. Compra quem quer, quando quer, se quiser. É a lei do mercado.
E não me passaria pela cabeça criticar a virtude de algo que tantos neoliberais consideram mais incontestável que a virtude das próprias progenitoras.
Há apenas um senão: é que a dependência que a oferta da caderneta pretende suscitar se dirige não só a adultos mas também a crianças. De facto, os pais possuem a capacidade de limitar a publicidade que os seus filhos vêem na televisão ou nas revistas – infelizmente, as leis sobre a publicidade dirigida às crianças são extremamente permissivas em Portugal –, mas não conseguem evitar que alguém lhes enfie na mão algo que vai obrigar as suas famílias a desembolsar uma quantia considerável sob a ameaça de choros e discussões. Proibir a distribuição destes “brindes” envenenados a crianças seria a coisa certa a fazer, mas considerando que o Governo não o queira fazer, sugiro que, pelo menos, as cadernetas levem impresso na capa um imenso quadrado a preto, como os maços de cigarros, com dizeres do género “Esta caderneta pode infernizar a sua vida” e que, como acontece com as taxas do crédito bancário, digam claramente quanto custam: “Atenção: esta caderneta pode custar 120 euros ou mesmo mais!” Assim, pelo menos, as famílias podem saber com o que contar. (jvmalheiros@gmail.com)
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