quarta-feira, maio 12, 2010

As nove virtudes teologais

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Maio de 2010
Crónica 19/2010

Isto não é uma campanha de publicidade para pasta de dentes. Isto tem de ser mesmo verdade

Confesso que não percebo a campanha “Foi o Pai que me ensinou”, que está por todas as ruas para comemorar a visita papal. Sei que este Pai se escreve com maiúscula porque foi assim que a Agência Ecclesia escreveu no despacho que anunciava a campanha. Pelos mupis e pelos cartazes não se pode saber porque está tudo em maiúsculas.
As notícias que li sobre a campanha falavam do slogan como se fosse a coisa mais evidente do mundo e não explicavam que pai era aquele. Imagino que alguns dos jornalistas que estiveram na conferência de imprensa onde a campanha foi apresentada eram católicos praticantes e perceberam logo tudo e que os outros tiveram vergonha de perguntar para não lhes chamarem ateus, mas a verdade é que eu não sei de que pai estão a falar.
Do Pai Eterno? Do pai, daquele que não costuma precisar de maiúscula? Do pai espiritual? Do Papa?
Se é do Pai Eterno, é inquestionável que foi ele que ensinou tudo isto não só aos nove protagonistas da campanha, mas também a todos nós, porque também criou todas as aves do céu e todos os peixes do mar, mas será mesmo ele? E se fosse ele porque é que fariam esta campanha para a visita do Papa? Será uma homenagem aos pais, tipo Dia do Pai católico, para sublinhar a importância das figuras tutelares masculinas no ensinamento da virtude, para contrabalançar um pouco os escândalos da pedofilia? Uma campanha pelo pai espiritual não parece ser, porque a figura está em desuso.
É provável que seja o Papa, porque a campanha foi concebida como uma homenagem prestada ao ilustre visitante e porque sei que os verbos que a compõem (“Partilhar foi o Pai que me ensinou”, Amar, Rezar, Acreditar, Confiar, Esperar, Perdoar, Escutar e Festejar) foram extraídos dos textos de Bento XVI, mas tive as minhas dúvidas, porque me pareceu algo excessivo. Será que oPapa  teve de facto esta influência naquelas nove pessoas que dão a cara pela campanha? Tanto quanto sei (a campanha tê-lo-ia dito) nenhuma destas pessoas privou com o Papa. Foi Bento XVI que ensinou aquele simpático casal de namorados a amar? Foi ele que ensinou aquela senhora a partilhar? E aquele jovem a confiar? E os outros todos? Apenas pelo seu exemplo à distância e pelos seus escritos e pelos seus sermões? Que lindo!
Ou será uma confusão propositada entre Deus e o Papa, para não sabermos muito bem de que Pai se fala, uma jogada de “culto da personalidade”, um “desvio”, como se diria se fosse na política?
O problema é aquele pronome, aquele “que”, que indica este pai como o responsável, o único responsável pela aprendizagem de todas estas coisas tão importantes. Não terá havido mais alguém que tenha ensinado estas pessoas a confiar e a escutar e a partilhar? Não terá havido um pai? Um daqueles pais normais, sem maiúscula? E não terá havido uma mãe, também normal, também sem maiúscula? E não terá havido um amigo, uma namorada, um professor, um marido, um desconhecido, um livro, um poema, um olhar, uma paisagem, um quarteto de Brahms, uma Vista de Delft? Tudo isso junto? Foi mesmo o Papa que? Deve ter sido, porque isto não é publicidade para pasta de dentes, isto tem de ser mesmo verdade.
Ou terá sido um descuido? Alguém que deixou cair um acento no Papa e o transformou em papá?
Se o Papa tivesse só ajudado a ensinar e tivesse deixado lugar para os lírios do campo ensinarem alguma coisa, era mais plausível, mas assim... se foi o Papa que, é mais difícil.
Se alguém me garantisse que foi o seu pai que o ensinou a fazer o nó da gravata e mais ninguém, isso parecer-me-ia credível. Mas para as outras coisas em geral há mais pessoas a contribuir. E livros e tal. Mas se este é o Papa, não será que um pai de letra pequena se poderá entristecer de ver chamar pai a outro? Ou será que estão mesmo a falar do pai de letra pequena?
Claro, deve ser isso! E a razão por que se faz esta campanha de glorificação do pai é porque... porque... não consigo lembrar-me de nenhuma razão especial para fazer isso com o pai e não fazer a mesma coisa com a mãe, mas pode ser que isto esteja nos planos da Igreja para os próximos dias. É isso com certeza. É isso. Estou ansioso por descobrir o que é que a mãe ensinou. (jvmalheiros@gmail.com)

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