terça-feira, fevereiro 28, 2012

O léxico autorizado

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Fevereiro de 2012
Crónica 9/2012

Não se trata apenas de dar uma proeminência excessiva ao discurso do poder. Trata-se de algo mais subtil.

Lemos e escrevemos palavras. Falamos com palavras. Pensamos com palavras. Discutimos com palavras. Ensinamos e aprendemos com palavras. Fazemos notícias com palavras. As palavras são a nossa matéria-prima e, pelo menos aqueles que fazem das palavras o seu ofício, como os políticos e os jornalistas (para dar apenas dois exemplos menores), dedicam-lhes alguma atenção.

Curiosamente, porém, os jornalistas parecem, em geral, considerar que o elemento básico da sua produção é a frase, a proposição, sem dúvida devido a uma compreensível influência racionalista. Preocupam-se com o que a frase diz (eu sei que às vezes não parece, mas estamos a falar dos melhores exemplos, do jornalismo canónico), com o valor lógico das proposições que constroem, com a sua conformidade com os factos.
Se pedirmos a um jornalista para verificar se o título “Ajuda financeira chega no dia 20 de Janeiro” é correcto ele irá investigar se a data está certa e, uma vez confirmado esse facto, garantirá que o título está correcto. O valor lógico da proposição é “verdadeiro”. O título passa o teste.

Os outros elementos da proposição - “ajuda financeira”, “chega” - são considerados dados, nomes e acções neutras. É evidente que não é assim. Cada uma das palavras que usamos possui uma carga semântica que evoca esta ou aquela ramificação de significados, esta ou aquela resposta humoral; uma história de uso, que evoca esta ou aquela memória; uma etimologia que acorda esta ou aquela ressonância e que lhe cria uma árvore genealógica de narrativas específica, etc..

Os verbos são, igualmente, o diabo (o diabo está nos pormenores). Não é o mesmo “dizer” e “afirmar”. Curiosamente, os dirigentes raramente “dizem”. “Afirmam”, “sublinham”, “garantem”, “anunciam”, tudo coisas positivas de quem tem poder, clarividência, certezas e benesses para dar.

Uma grande parte da política passa por criar e tentar impor na arena social, na imprensa, no debate político, determinadas visões do mundo - determinadas narrativas - como bem sabem os mestres da propaganda. Mas essas narrativas são construídas por palavras e, quando determinados termos se impõem, há narrativas que se organizam quase naturalmente à sua volta.

Tomemos a “ajuda”. “Ajuda” é uma coisa boa. Todos gostamos de ajudar, todos gostamos de ser ajudados. Não é fácil criar uma narrativa onde o mau da fita é alguém que “ajuda”. Quem ajuda é, forçosamente, nosso amigo.

E como apareceu a expressão “ajuda financeira”? De facto, aquilo que designamos por “ajuda financeira” é, simplesmente, um empréstimo. E empréstimo é não só uma expressão mais correcta como mais neutra. Sabemos isso porque há empréstimos que nos aliviam e outros que nos entalam. É possível criar narrativas diferentes à volta da expressão “empréstimo”. Posso dizer “aquele empréstimo permitiu-lhe salvar a empresa” ou “o que o levou à falência foi aquele empréstimo”. Posso dizer que o “empréstimo negociado com a troika tem um juro usurário”, mas já não o posso dizer se lhe chamar “ajuda”. As palavras não deixam.

Um “resgate” também é uma coisa boa. Salva-nos. Não é possível dizer nada mau de quem nos resgata. E haverá coisa melhor que um “programa de assistência económica e financeira”? E será possível ser contra o rigor e a disciplina? Ou contra a “racionalização das empresas públicas de transportes”? E será que um “ajustamento estrutural” pode fazer outra coisa que não seja dar-nos mais solidez? Quem é que pode não gostar que as estruturas estejam ajustadas?

E quando se chama “maturidade cívica dos portugueses” à ausência de contestação e “tumultos” aos protestos será possível a uma pessoa sensata defender ou participar nos últimos? A expressão “flexibilidade laboral” é igualmente inatacável. Quem é contra a flexibilidade? Não saberão que a rigidez só leva a fracturas e que a flexibilidade permite adaptarmo-nos ao meio? “Austeridade” é um pouquinho mais difícil, mas também tem um lado bom. Não é como “empobrecimento” ou “descida do nível de vida” que é só mau.
E quando nos dizem que “precisamos de união e não de clivagens” não é evidente que a união é boa e que as clivagens são más? Não é evidente que um discurso que afirme que a união nacional pode ser má e as clivagens boas se tem de empenhar num combate desigual, montanha acima?


Não se trata apenas de, no discurso mediático, se dar uma proeminência excessiva ao discurso do poder, como quando, como mero exemplo entre mil, se arranca uma notícia sobre o “acordo de concertação” com o lead “Governo garante que estão salvaguardados os direitos dos trabalhadores” - factualmente correcto mas claramente parcial. Trata-se de algo infinitamente mais subtil. Tão subtil que há mesmo jornalistas que, ingenuamente, garantem que não existe. Trata-se de manipular os media obrigando-os, discretamente, a usar apenas o léxico autorizado, que contém implícita a narrativa do poder.

Quando Cavaco diz que não se deve usar a expressão “negociação” do memorando da troika (e muito menos “renegociação) e que vai haver apenas algumas “alterações”, está a exercer esse poder. É que “negociação” poderia dar a ideia de que existe alguma latitude negocial - de um e de outro lado - e Cavaco e o Governo não querem admitir nenhum cenário que não seja a mais absoluta obediência aos ditames dos credores. Há demasiada liberdade em “negociação”. E Cavaco não hesitará, com o seu ar de mestre-escola austero, em admoestar quem ousar falar de “negociação” ou “renegociação” - já para não falar da banida “reestruturação” - como admoesta quem ousa fazer perguntas sobre as suas pensões. (jvmalheiros@gmail.com)

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