por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Fevereiro de 2012
Crónica 7/2012Para o primeiro-ministro, o país é como uma escola e a escola é um modelo do que o país devia ser
1. O discurso que o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho proferiu na semana passada, na cerimónia do 40º aniversário de uma empresa privada do sector educativo à qual esteve ligado profissionalmente, não teve como único efeito colocar a palavra “piegas” no léxico político. A sua intervenção, transmitida em directo na televisão como se se tratasse de um discurso de Estado, teve ainda o mérito de projectar o nome da Pedago a nível nacional, assim como o do seu fundador e os “do Ricardo e do Miguel”, pessoas cuja notoriedade o primeiro-ministro julgou suficiente para não ter de as identificar de forma mais precisa.
O directo de 25 minutos na televisão nacional, com amplas referências elogiosas à empresa e evocações dos obstáculos maldosamente colocados à sua frente pelo Estado que teve de ultrapassar (não ocorreu a Passos Coelho que estava ali a representar precisamente o Estado), teve um impacto considerável na projecção do grupo: o Google encontra mais de duzentas referências à Pedago nas notícias publicadas em Portugal nos últimos dias e todas elas se referem a esta presença do PM.
Não tenho sobre a Pedago nenhuma opinião, nem nenhum sentimento, nem sequer qualquer informação que não tenha lido nos jornais. Admito que seja uma excelente empresa e que aquilo que me recordo de ter lido sobre cursos que leccionou e certidões que passou sem estar para isso autorizada seja apenas um pormenor administrativo sem importância e já ultrapassado. Admito que o primeiro-ministro admire o fundador da empresa, que tenha gostado de lá trabalhar, que a considere um exemplo de empreendedorismo e que trate com familiariedade “o Ricardo e o Miguel”. O que me parece menos aceitável é que o primeiro-ministro tenha decidido transformar este seu sentimento pessoal numa descabida homenagem de Estado com direito a propaganda televisiva.
Passos Coelho desculpou-se por não ter podido assistir ao anterior aniversário da Pedago e explicou que não seria o facto de ser PM que o afastaria do deste ano. É lamentável. O facto de ser PM deveria impedi-lo de misturar relações pessoais e profissionais com a sua posição institucional. E a existência de uma relação profissional prévia da sua pessoa com aquela empresa deveria aconselhar-lhe alguma contenção na promoção que fez da sua actividade e no aval que lhe conferiu com este discurso.
Da próxima vez que o PM quiser assistir ao aniversário de uma empresa onde trabalhou e elogiá-la com o calor que certamente merece, seria preferível que tratasse o evento como um acto da sua vida privada. Um aniversário de uma prima, por exemplo, e não como um evento de Estado patrocinado pelo Governo.
2. Mas a substância do discurso de Pedro Passos Coelho também merece um comentário. Para o PM, o país é como uma escola e a escola é um modelo do que o país devia ser. Uma escola exigente, à antiga, uma escola que não existe para educar mas para ensinar, com um mestre-escola à frente, uma cartilha debaixo do braço e os alunos de bibe atrás. Da janela do alto, o director espreita. O mestre-escola exorta os alunos: “Estão a olhar para nós, dêem o vosso melhor”. Na alegoria de PPC os cidadãos são os alunos e os bravos dirigentes do PSD são os seus professores. Os alunos (nós) estamos habituados a preguiçar e a ser tratados com benevolência (“os alunos, coitadinhos, sofrem tanto para aprender”) mas o Governo, com firmeza e exigência, com justiça mas com a intransigência de um pai disciplinador, vai habituar-nos a trabalhar e vai ajudar-nos a cumprir o nosso destino, sem tergiversações. Há outros personagens neste sonho freudiano: há uns que querem ficar agarrados ao passado, que se andam sempre a lamentar, que não fazem mas fazem de conta que fazem; outros que nos querem atirar ao chão e há, finalmente, uma figura paterna, na sombra, a quem temos de mostrar que somos responsáveis, que somos trabalhadores, empreendedores. "Se queremos que olhem para nós com respeito, temos de olhar para nós próprios com respeito". Há por todo o lado olhares severos que nos julgam, que julgam Pedro Passos Coelho. Há em todo o discurso de Pedro Passos Coelho um adolescente nas suas primeiras calças compridas, apostado em mostrar que já é crescido, que se vai portar bem, que vai tomar conta dos irmãos, que vai suportar os rigores da responsabilidade, que não vai ser piegas, que não vai ceder, que vai seguir à risca o seu modelo, que vai ser um pai severo perseverante.
Pacheco Pereira já chamou a atenção para a dicotomia que PPC estabelece entre os “preguiçosos auto-centrados” e os “descomplexados competitivos”, a sua versão de id e super-ego a caminho do Übermensch - o homem sem dívidas e sem dúvidas. Podiam ser trotskistas e estalinistas, judeus e arianos, comunistas e nacionalistas, intelectuais burgueses e operários, o raciocínio é sempre o mesmo. Pedro Passos Coelho não tem muitos graus de liberdade no seu pensamento e os tipos humanos que conhece não dariam grande riqueza a um romance, mas de algo tem a certeza: o caminho do futuro é o da obediência, sem pieguices, sem lamentos, sob a liderança do Governo, que fará a vida da estudantada um inferno, sem complacências, para o seu bem (quantas pessoas conhecem com menos de 70 anos que falem de “estudantada”?).
Um ponto positivo sobre o homem que se senta na cadeira de S. Bento: se Passos Coelho aponta um único caminho, sem estados de alma, sem grande consideração pelas queixas e contestações, piegas todas, não me parece que o faça por querer esmagar as alternativas. Penso que sinceramente não as vê. Todo o seu ser se concentra em mostrar que merece aquelas calças compridas. (jvmalheiros@gmail.com)
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