terça-feira, fevereiro 07, 2012

A política em processo de privatização

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Fevereiro de 2012
Crónica 6/2012


Assumir a responsabilidade, como a etimologia mostra, não é mais do que aceitar responder


Não é novo. Não é raro. É mesmo tão banal que nem merece notícia e nem mereceria reparo se não se desse o caso de ser importante.
Todos os dias vemos declarações de políticos onde eles brincam, satisfeitos como gatos, com as perguntas dos jornalistas, iludindo-as com um brilho nos olhos, e fogem sem responder, com um sorriso nos lábios, a agitar a cauda, deixando jornalistas e espectadores com caras de parvos.
Os jornalistas fazem perguntas (que é uma das coisas importantes para que lhes pagam) e os políticos, eles, desviam-se, agacham-se, contornam-nas, ignoram-nas, riem-se, sorriem, ameaçam, rosnam, não respondem, sem perceberem que eles, os políticos, são pagos, simetricamente aos jornalistas, para responder a perguntas. E que os jornalistas estão lá, à frente dos políticos, para lhes dar a oportunidade de eles falarem connosco, o povo. E que, por isso, é do mais elementar sentido político e sentido democrático - para não dizer da mais elementar cortesia - que eles respondam.
É evidente que há perguntas a que não se pode ou não convém responder, por alguma razão, mas essa deve ser a excepção. A regra deve ser fazer declarações, explicar o sentido do que se disse, assumir o que se declarou, contestar aquilo de que se discorda, elogiar os aliados, criticar os oponentes, seja o que for... mas responder! Prestar contas. Assumir a responsabilidade, como a etimologia mostra, não é mais do que aceitar responder. E os políticos portugueses, de forma geral, são irresponsáveis. Não querem responder, não assumem o que dizem, o que fazem, o que querem. Basta assistir a um debate no Parlamento para ficarmos doentes com a exibição de irresponsabilidade, de falta de resposta. Desde que há Canal Parlamento que suspeito que estas emissões engrossam a percentagem das abstenções nas eleições. É natural: quem é que quer ser responsável por aquilo? O que acontece é que, como todos já sabem que as respostas não servem para responder, quem questiona também se dedica ao exercício retórico de fazer perguntas que não servem para perguntar e o resultado é que o debate não serve para debater e a informação sobre ele não serve para informar. (Tenho um sonho impossível: organizar um debate parlamentar arbitrado por um professor de filosofia ou de política versado em lógica e retórica, segundo regras consensualmente definidas, como se faz nos bons colleges britânicos e americanos.)
É verdade que a falta de resposta pode ter muitas causas. Quando uma matilha de jornalistas se amontoa à porta de um edifício oficial e grita 17 perguntas em simultâneo sobre matérias menores, não espero que o político responda a nenhuma (de facto, em geral, como sabemos, responde àquela que já está combinada previamente, que ele miraculosamente ouviu entre as 17).
Quando Cavaco não responde aos jornalistas, como faz quase sempre, penso que será porque não percebe as perguntas, ainda que disfarce com eficácia usando o seu ar esfíngico e desdenhoso - que suspeito ser uma tentativa de emulação do Júlio César de Astérix.
Quando Pedro Passos Coelho não responde a uma pergunta isso deve-se apenas ao facto de a pergunta não estar prevista no argumentário da Goldman Sachs que equipa o seu software, saltando em geral automaticamente para a resposta seguinte.
Mas quando António José Seguro não responde, não há dúvida: está mesmo a gozar connosco. A verdade é que ele acha que os jornalistas não têm nada de fazer perguntas e que nós não temos nada de ouvir as respostas. Por quem é que a gente se toma? Por que é que o secretário-geral do PS teria de explicar aos portugueses o que pensa do memorando da troika? Ele fez aliás fez questão de frisar: "Na Comissão Nacional eu tive oportunidade de dizer o que penso, não é? É uma Comissão Nacional, é uma reunião de órgãos do partido." "Não é"? Numa reunião de órgãos do partido Seguro tem oportunidade de dizer o que pensa mas aos portugueses acha que não é necessário. Ou talvez ache mesmo que não deve.
E quando Seguro, perante a insistência dos jornalistas sobre as suas declarações em relação à troika, acrescenta que "Évora é uma cidade fantástica", que "tem uma gastronomia óptima" e convida os jornalistas a aproveitar a "pausa" porque não os quer ver com "hipoglicémia", quer simplesmente sublinhar, com a máxima elegância de que é capaz, que aquilo que perguntam não é da sua conta nem da nossa. Se Cavaco não gosta de falar dos seus negócios e se Passos Coelho não gosta de falar de economia, Seguro não gosta de dizer o que pensa fora da Comissão Nacional. Não é?
Mas esta discrição não é só dele. Na semana passada, uma notícia neste jornal referia críticas ao Governo feitas por "proeminentes cavaquistas" que também achavam que o seu nome se poderia oxidar se falassem na praça pública e que preferiram ficar embuçados nos seus dominós desde que lhes garantissem que o seu recado seria divulgado. Não quero discutir a utilidade de uma tal notícia ou o relevo que lhe foi dado, mas podemos constatar a lamentável inutilidade de tais políticos "proeminentes" e o desproporcionado relevo que a nossa política lhes dá.
Não é só a economia: a política, em Portugal, parece estar também em processo de privatização. Algo que se reserva para os gabinetes dos partidos e para os recessos dos bailes de máscaras, mas que não deve sair à rua. E, quando sai, sai apenas com dichotes gastronómicos ou vitríolo anónimo. Nesta política, os cidadãos estão a mais. Estamos aqui a mais. É por isso que nos convidam tão insistentemente a emigrar.(jvmalheiros@gmail.com)

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