segunda-feira, fevereiro 20, 2012

O céu nosso de cada dia - Versão 2.0

Versão reduzida

Texto incluído no catálogo da exposição "Cartas Celestes: Cruzamentos, largos, bifurcações", de Rosário Rebello de Andrade.

A primeira pergunta é clássica. Tão clássica que é uma das perguntas que mais vezes ouvimos no cinema: Onde estou? Que lugar é este?

Ou, sendo mais preciso, porque o que importa aqui não é o lugar do corpo mas o lugar do olhar: De onde olho? Para onde olho? O que vejo?

A segunda pergunta é filosófica. Porque há aquilo e não o nada? Porque estou aqui e não ali? Quem está ali? Quem poderá olhar-me? Que me diz o olhar de quem me olha? Que relação existe entre mim e o que vejo?

A terceira pergunta é científica. O que são estas luzes? Por que têm cores diferentes? Movem-se ou estão fixas? Que padrões distingo nestes pontos? A que distância estão? Como posso aproximar-me?

Não há nenhuma novidade nestas perguntas. Há séculos que as sentimos e que as fazemos quando olhamos o céu estrelado. Aquele céu de que nos falam nos livros de escola e que já não existe nas cidades. Há séculos que esse céu alimenta poemas, geometrias, terrores, devoções, juras, sonhos e insónias.


Só que depressa reparamos que este céu é estranho, que estas galáxias têm algo de organizado, inteligente, geométrico. Há régua e esquadro neste céu. Que céu é este? Onde está o céu nosso de cada dia?

A ausência de caos destas galáxias arrepia. São civilizações extraterrestres que nos espreitam? O que são estas constelações estranhas que se espalham neste céu como signos no Zodíaco? Há qualquer coisa de mitológico no seu desenho, mais do que mítico. Quem fez estas galáxias?
As legendas ajudam-nos a perceber. Aquele mundo é afinal o nosso. É ali que nós estamos. Estamos ali, aqui, a olhar para cima, para este espelho que nos põe no céu. Somos nós, aquelas constelações. Estamos em baixo olhando para cima e em cima olhando para baixo e pensamos ver a mesma coisa. "O que está em cima é igual ao que está em baixo. O que está em baixo é igual ao que está em cima”. É impossível não evocar o princípio hermético.
Não há nada tão longínquo e tão desconhecido como as galáxias e nada tão próximo e tão familiar como a cidade onde vivemos. Aqui, os dois mundos colidem e coincidem, atravessam-se, a familiaridade torna-se distante, a distância familiar. A desolação sideral e fria do espaço funde-se com o espaço urbano frenético e quente. E quando conseguimos imaginar de novo o caos microscópico que habita estas galáxias, as pessoas, carros, néons, crimes, desencontros, conseguimos respirar de novo. Afinal não há nenhuma inteligência que tenha organizado o universo. Estas imagens que projectámos no céu fomos nós que as fizemos. São afinal humanas. As linhas rectas continuam a ser apenas humanas. Nenhum deus desenha como nós.
Quando vemos enfim as cidades, quando reconhecemos o alinhamento das avenidas, a primeira correspondência é com os mapas do urbanista Richard Florida. Mas estas luzes que vemos não são as luzes da cidade, não são a economia, nem a arte. Nem são a cidade. São sinais da cidade. Pontos criados pelo cruzamento de linhas. Reflexos num espelho. Marcas feitas a lápis num papel. São um levantamento possível. Um levantamento que as coloca no céu.

Há uma tristeza fria nestas cidades. A distância deserta que nos separa destas cidades, onde vivemos, está preenchida por um éter gelado, talvez impossível de percorrer. Adivinha-se uma démarche arqueológica nestas imagens. Estas imagens especulares mostram-nos as nossas cidades como elas poderiam viajar no espaço, como elas poderiam ser vistas quando já não existirem, se houvesse alguém para as olhar. São Cidades Celestiais, como a Cidade Proibida de Pequim ou Damasco sonharam ser, como nos dizem que foram as cidades da Idade do Ouro, aquele tempo que nunca existiu onde todos fomos felizes. Há uma história alternativa nas cartas destas cidades, que nunca saberemos como poderia ter sido.

Estas imagens são um futuro possível das cidades. Um dia, um astrónomo do futuro numa civilização distante poderá ver projectada no espelho do seu telescópio a imagem velha das nossas cidades, já mortas, sem luz, e verá uma imagem invertida que se assemelhará a estas. Quando ele vir essa imagem, as cidades, essas, terão desaparecido há muito.

Estas pinturas são prova evidente de prática ilegal da astronomia, como as observações e os desenhos do alemão Wilhelm Tempel (1821-1889), litógrafo transformado em descobridor de cometas que toda a vida teve de justificar perante uma comunidade científica corporativa e classista a sua falta de formação académica. Max Ernst dedicou-lhe um livro, “Maximiliana ou o exercício ilegal da astronomia”, considerado um dos mais belos livros do século XX e uma obra de referência para a escrita assémica, onde ele próprio comete graficamente o mesmo crime, que invade aliás toda a sua obra, recheada de astros e de sóis.

É também de escrita assémica que se trata aqui, nestas Cartas Celestes, uma acepção facilitada pela polissemia da palavra “carta”. Alguém diz aqui alguma coisa. Não sabemos o quê, nem a quem, mas alguma coisa é dita. Estas cidades falam, na sua caligrafia regular e fria, como um aeroporto fala a um avião, uma pauta a uma pena, um espectro a um astrofísico. Algo se escreve e algo se inscreve, necessariamente, nesta matéria negra de fundo.
É curioso como estas cartas nos devolvem um céu que a luz das cidades nos roubou e como delas essa luz está ausente. Os pontos são aqui apenas encruzilhadas e não lâmpadas. As estrelas destas cartas assinalam cruzamentos, encontros, mas não ofuscamentos. Daí a sua falta de concentração, a fraca centralidade, o seu carácter distribuído. Daí o tratamento democrático do espaço. Não há nenhum atractor estranho que arrebate tudo à sua volta. Podem ser imponentes, misteriosas ou sedutoras, mas nenhuma destas cidades celestes é imperial. E todas são postas em diálogo com os seus cemitérios, metáfora por excelência do hostil e mudo espaço sideral, como que para lhes segredar ao ouvido que são mortais.

José Vítor Malheiros

Fevereiro 2012

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