por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 22 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 13
Sunila Abeysekera, feminista (Sri Lanka)
Sunila Abeysekera não está optimista.
Nos últimos dias, o noticiário internacional tem estado cheio de notícias sobre aquilo que parece ser a derrota final da resistência armada tâmil, os famosos Tigres de Libertação da Pátria Tâmil (LTTE), às mãos das forças armadas governamentais do Sri Lanka. O Governo não parou de anunciar em tons vitoriosos que a zona norte e leste da ilha, predominantemente tâmil, terreno natural do LTTE, está neste momento totalmente nas suas mãos e não existe já qualquer foco de resistência. Para mais, parece certo que Velupillai Prabhakaran, o mítico líder dos Tigres, foi morto nas últimas horas do conflito, assim como o seu filho e todos os outros dirigentes da guerrilha, e não há ninguém com o carisma necessário para tomar o seu lugar. Parece que a guerra civil que tem oposto a maioria cingalesa (74 por cento da população do Sri Lanka) à minoria tamil (12,5 por cento), que durou 26 anos, que provocou 300.000 deslocados e pode ter causado até 20.000 mortos só no último ano, acabou ou está em vias disso. O que é uma boa notícia.
Mas Sunila Abeysekera não está optimista. Não só porque acha possível que se verifique um ressurgimento da resistência armada tâmil e o reacender da guerra civil, mas também porque receia a atitude do regime do presidente Mahinda Rajapakse mesmo que isso não aconteça.
“O Governo diz que a guerra acabou”, diz Abeysekera, “mas sabemos que as raízes do conflito só desaparecerão quando for dada ao povo tamil a possibilidade de uma verdadeira participação política, quando forem reconhecidos os direitos cívicos desta minoria, quando tiverem acesso à educação e ao emprego. E para isso acontecer é preciso que o Governo se volte para os dirigentes políticos moderados tâmiles e dialogue com eles. Sem isso, os problemas vão continuar a existir. Quanto à derrota militar… o LTTE já foi derrotado antes e a revolta regressou.”
Sunila Abeysekera está num bom posto de observação da realidade do Sri Lanka. Nascida em 1952, activista dos direitos humanos há quase trinta anos, corajosa e frontal militante feminista desde sempre, Abeysekera dirige a Inform, uma organização que se tem dedicado à denúncia das inúmeras violências e atropelos praticados pelos dois lados do conflito. O seu trabalho tem merecido o reconhecimento interno e internacional – Kofi Annan, o secretário-geral da ONU, entregou-lhe em 1998 o Prémio de Direitos Humanos da organização – mas Abeysekera tem tido de pagar um preço. Actualmente encontra-se fora do Sri Lanka e a conversa telefónica que mantemos tem como destino um país não identificado.
Abeysekera foi obrigada a fugir do seu país em Abril do ano passado devido a ameaças de morte que se provaram credíveis: militantes de organizações de defesa dos direitos humanos que receberam ameaças começaram a ser assassinados e Abeysekera decidiu não esperar que isso que lhe acontecesse a si. Não foi a primeira vez que foi forçada ao exílio. Em 1988, grávida da sua última filha (tem seis filhos), também teve de fugir para a Holanda depois de receber ameaças de morte. O ambiente político é de molde a fazer levar estas ameaças a sério. “No Sri Lanka, se se levanta a voz contra a injustiça, o castigo não costuma ser nada menos do que a morte”, dizia em 1999, numa entrevista dada ao UNESCO Courrier. “Não costuma tratar-se de intimidação, de agressões ou de prisão mas sim de assassinatos, extremamente brutais. Neste mesmo momento há pessoas que estão a ser raptadas, detidas e torturadas pelas forças de segurança e por grupos paramilitares. A cultura do medo deu lugar a uma cultura do silêncio”.
Abeysekera nunca cedeu a esse silêncio, mas não há razão para pensar que essa cultura vá desvanecer-se depois do fim do conflito. “Mesmo que não haja um regresso ao conflito armado”, diz-nos Abeysekera, continuando a analisar a situação actual, “isso não significa que haja a garantia de uma melhoria em termos de direitos humanos. A confiança que esta vitória militar deu ao governo e aos seus apoiantes, o facto de constituírem a maioria, reforçou a sua arrogância e tem havido um crescente clima de intimidação em relação a pessoas que são suspeitas de simpatias pelo LTTE ou simplesmente pelo povo tâmil. Há pessoas que têm visto as suas casas cercadas por multidões a gritar ameaças. As celebrações de vitória nas ruas às vezes acabam por dar origem a isso. As pessoas que estão na oposição política, nas organizações de direitos humanos, nos sindicatos estão muito ansiosas, muitas estão aterrorizadas.”
É o problema de uma guerra civil: quando se critica o “nosso lado” (Abeysekera é cingalesa) ou se denunciam abusos contra “o outro lado” acaba-se por ser considerado um traidor. Um insulto que Abeysekera ouviu muitas vezes ao longo da vida.
Há razões históricas mais que suficientes para a ansiedade de hoje. Quando do último cessar-fogo entre o Governo e o LTTE, em 2006, o país foi atingido por uma vaga de “desaparecimentos” de pessoas suspeitas de simpatias pelos Tigres – aquilo que ficou conhecido em Colombo, a maior cidade do país, pelo nome de “síndrome da carrinha branca”. Uma carrinha branca parava na rua, uns homens saíam e empurravam para a carrinha alguém de quem nunca mais se ouvia falar. Nos anos noventa, a ONU dizia que o Sri Lanka era o segundo país do mundo em número de “desaparecidos”, que se estimam em várias dezenas de milhares. O receio é que o regime tenha a tentação de levar a “limpeza” da oposição até ao fim.
A oposição e muitas organizações de defesa dos direitos humanos estão reunidas numa Plataforma para a Liberdade – mas Abeysekera acha “pouco provável” que, no actual clima de euforia e de arrogância, o regime dê um passo na sua direcção sem uma enorme pressão nesse sentido a nível internacional. E a pressão internacional nunca se fez sentir muito fortemente no Sri Lanka – um fenómeno que Abeysekera considera que não é isento de racismo e de uma visão neocolonialista: “Se uma pessoa branca tivesse sido raptada ou morta no Sri Lanka, os países ocidentais iriam reagir de uma forma diferente”, dizia na mesma entrevista ao UNESCO Courrier. “Mas aqui o que temos são umas pessoas castanhas a matar outras pessoas castanhas num país distante. Porque é que o Ocidente se iria preocupar?”
Sunila herdou a sua preocupação social do pai, Charlie Abeysekera, falecido há dez anos, um alto funcionário da administração pública de fortes convicções liberais e que colaborou com vários movimentos de defesa dos direitos humanos – “incluindo alguns dos que eu criei”, diz a filha, com uma nota de orgulho na voz.
As biografias oficiais costumam apresentá-la como cantora e actriz e, de facto, Abeysekera cantou (em palco e para o cinema) e fez teatro e produção de cinema – e ainda canta esporadicamente em eventos - mas a sua verdadeira actividade foi sempre a de activista dos direitos humanos e feminista. Nunca se casou com os pais dos seus filhos – com quem viveu – “por razões políticas, para marcar uma posição”. Um gesto que mostra a determinação desta mulher que continua a dedicar uma parte fundamental das suas energias a defender em particular os direitos sexuais da mulher (e também dos homens e das minorias lésbica, gay, bissexual e transgénero). A tarefa é particularmente difícil neste país hipertradicionalista e fez juntar-se ao grito de “traidora” com que muitas aparições públicas suas são mimoseadas - quando não são brutalmente interrompidas por provocadores -, uma colecção de insultos de carácter sexista.
Há uns anos Abeysekera fez um estudo sobre a representação da sexualidade feminina no cinema do Sri Lanka e chegou à conclusão de que às mulheres que (no ecrã) transgridem os limites definidos pela comunidade no domínio do sexo – por inocente que essa transgressão possa ser – restam apenas quatro caminhos em termos narrativos: “Ela podem enlouquecer, podem suicidar-se, podem ser mortas ou podem entrar para uma ordem religiosa”, escreve Abeysekera num artigo de 1999 sobre feminismo e sexualidade.
A inscrição no seio do combate feminista do direito das mulheres à auto-determinação em termos de sexualidade e reprodução tem sido um dos cavalos de batalha de Abeysekera – e uma batalha que não tem sido fácil.
Abeysekera milita aliás também numa organização de defesa dos direitos da comunidade LGBT, a Women’s Support Group – que participou em 2000, pela primeira vez, num desfile do Dia Internacional da Mulher.
O ambiente no Sri Lanka em termos de direitos da mulher e da permissividade relativamente à violência contra as mulheres pode ser bem avaliado através de um episódio contado pela própria Abeysekera numa entrevista dada no ano passado à revista de direitos humanos Combat Law: “Quando o Women’s Support Group anunciou a sua intenção de organizar uma conferência nacional sobre sexualidade, um popular jornal de língua inglesa publicou uma carta ao director onde um leitor sugeria que, nesse dia, as prisões soltassem os violadores que estivessem presos, para que estes pudessem mostrar a essas ‘Jezebéis’ o que era bom”.
Os que conhecem Abeysekera falam das suas qualidades de contadora de histórias, do seu vivo sentido de humor e da sua energia inesgotável. E é evidente em todas as suas intervenções uma aguda inteligência, que vai sempre para além do imediato, para além do fácil, numa abordagem que é simultaneamente pragmática e exigente. Numa intervenção para a televisão, gravada na passagem de ano 2007/2008, onde lhe pedem uma previsão para o ano que chega, Abeysekera termina, rindo-se, pedindo desculpa por ser “tão pessimista”. Ontem também não estava optimista sobre o futuro do Sri Lanka. Esperemos que se engane redondamente.
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