sexta-feira, maio 01, 2009

Página de Rosto - Thich Quang Do, 80 anos pela paz


por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 1 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 14


Thich Quang Do, monge budista (Vietname)

O rosto, emoldurado por uma rala barba branca, não permite quaisquer dúvidas: é um monge budista. Um rosto tão característico que não pode deixar de evocar as composições que o cinema nos costuma oferecer. Lembram-se do mestre de Caine, no mosteiro Shaolin, na série de televisão Kung Fu dos anos 70? Thich Quang Do podia ter feito o papel na perfeição, apesar de ser vietnamita e não chinês.

Só que, por trás da tranquilidade deste olhar que exala uma calma confiança, da dignidade da pose, da determinação que ela denuncia, os olhos pequenos brincam e fecham-se frequentemente, ao mesmo tempo que a boca se rasga num sorriso. Às vezes quando fala de coisas terríveis, das suas inúmeras prisões, da falta de democracia no seu país. Um sorriso que vem da sua inabalável certeza de que tudo isso passará e que, um dia, os vietnamitas poderão viver em liberdade e em segurança, poderão escolher os seus líderes políticos e dizer o que pensam sem receio de represálias.

Thich Quang Do tem hoje 80 anos e viveu mais de trinta sob prisão – nas piores enxovias ou em prisão domiciliária – e conheceu a repressão durante toda a vida. Repressão oriunda de diferentes regimes, de direita e de esquerda, primeiro no Vietname do Norte, onde nasceu; depois no Vietname do Sul, para onde fugiu em 1954; e depois de 1975 no Vietname unificado, sob regime comunista. A razão? A exigência de democracia, de pluralismo político, de liberdade religiosa, de liberdade de expressão, de respeito pelos direitos humanos, uma constante actividade em prol dos mais pobres, uma infatigável denúncia pública – em reuniões, artigos, manifestos, petições – dos atropelos aos direitos humanos, dos abusos da polícia, da tortura, das prisões arbitrárias, da miséria. Sempre no respeito dos mandamentos budistas, respondendo à violência com protestos pacíficos, tentando mostrar aos seus carrascos os seus erros, com a desarmante convicção e a infinita paciência dos homens abençoados pela verdadeira fé.

Do nasceu em 27 de Novembro de 1928 e tornou-se monge aos 14 anos mas, segundo o próprio conta num relato autobiográfico, a sua vida só começou às 10 da manhã do dia 19 de Agosto de 1945, quando o poder colonial francês foi derrubado pelas forças revolucionárias comunistas no Vietname do Norte. Foi nesse dia que aprendeu como a violência mais brutal se pode abater sem sentido sobre os mais inocentes e como os homens são capazes dos mais terríveis requintes de crueldade.

“Eu tinha só 17 anos”, conta Do. “Nesse dia, vi o meu mestre, o muito venerável Thich Duc Hai, superior do pagode Linh Quang, ser executado pelas forças comunistas. Amarraram-lhe as mãos atrás das costas com arame farpado e penduraram-lhe ao pescoço dois cartazes: num deles, sobre o peito, estava escrito ’Traidor vende-pátrias’. No outro, sobre as costas, ‘Colaboracionista’. Ele estava no meio de uma multidão armada com paus e lanças, foices e ancinhos. Outro grupo de homens, que se intitulavam ‘juízes’ do tribunal popular, estava numa plataforma e conduzia o julgamento. Ordenaram ao meu mestre que se ajoelhasse e que baixasse a cabeça enquanto eram lidas as acusações contra ele. Ele recusou-se a obedecer. Um dos ‘juízes’ desceu da plataforma, postou-se à sua frente e disse-lhe ‘Tu és um traidor e não tens o direito de ser teimoso’. Começou a bater-lhe na cara até que a sua boca ficou cheia de sangue. O sangue pingava no cartaz que lhe cobria o peito. Condenaram o meu mestre à morte. Levaram-no para o campo frente à casa da aldeia. O sangue pingava sobre a sua roupa e no chão. Obrigaram-no a deitar-se e um dos homens deu-lhe três tiros na cabeça. Saiu um jorro de sangue e o meu mestre morreu. O sangue cobria a sua cara, a sua roupa, as suas pernas, a terra onde ele estava deitado, os cartazes que lhe penduraram ao pescoço. A imagem do meu mestre caído numa poça de sangue, imóvel, com as mãos atadas atrás das costas, ficou gravada para sempre na minha memória. Ainda a recordo como se fosse ontem”.

O crime de Thich Duc, oficialmente causado de ser um agente japonês, foi ter montado uma operação de auxílio para distribuir alimentos aos camponeses que estavam a ser vitimados por uma terrível fome.

“Quantos mais inocentes não terão sido mortos em nome da revolução durante estas sanguinárias campanhas de luta?” pergunta Do.

“Foi nesse dia que tomei a decisão que iria determinar o curso da minha vida. Nunca iria aceitar a violência, a crueldade, o ódio, a discriminação, por muito nobres que parecessem ser as causas que defendessem tudo isso. Naquele dia e naquele sítio, jurei que iria fazer tudo o que pudesse para combater o fanatismo e a intolerância e que iria dedicar a minha vida ao combate pela justiça, seguindo os ensinamentos budistas da não-violência, da tolerância, da compaixão. Nunca lamentei esta decisão. Mas não fazia ideia que este simples voto me iria levar ao longo de um caminho marcado pela prisão, pela tortura e pelo exílio durante tantos anos. Estive preso por vários regimes políticos e depressa aprendi que todos os tiranos receiam a verdade e que temos de estar dispostos a pagar o preço – por vezes um preço elevado – para defender as ideias e os valores nos quais acreditamos”.

As memórias de Do estão recheadas de histórias de horror como a execução do seu mestre. Um ano depois, em 1946 um irmão religioso do seu mestre foi também preso e morreu na prisão. Um mentor do seu mestre suicidou-se para não ser preso e torturado.

Em 1963, ainda durante o brutal regime do presidente Ngo Dinh Diem, no Vietname do Sul, Thich Quang Do foi preso na sequência de protestos organizados contra a morte de manifestantes budistas que agitavam bandeiras comemorativas para celebrar o nascimento de Buda, em Maio desse ano. O exército de Diem – que era um católico fanático, cujos antepassados tinham sido educados por missionários portuigueses, e que seria assassinado num golpe nesse mesmo ano – disparou sobre a multidão, causando muitos mortos e feridos.

Foi poucos dias depois, em 11 de Junho de 1963, que o monge Thich Quang Duc se imolou pelo fogo, numa rua de Saigão, em protesto contra a perseguição de que os budistas eram alvo. As fotografias do sacrifício, do jornalista americano Malcolm Browne – que ganharam o prémio World Press desse ano –, chamaram a atenção do mundo, mas a perseguição continuou.

Thich Quang Do foi preso e barbaramente torturado. “Lembro-me de ter de gatinhar quando saía da cela para ser interrogado, porque não me conseguia pôr de pé”. Mesmo assim, entre sessões de tortura, traduzia para vietnamita artigos de jornais estrangeiros em inglês que lhe eram trazidos clandestinamente, para manter informados os dissidentes da atenção que a sua luta merecia a nível internacional. O inglês tinha-o aprendido durante a sua formação universitária, feita em parte na Índia e no Sri Lanka.

Durante a guerra do Vietname, a Igreja Budista Unificada do Vietname (UBCV, na sigla inglesa), de que Do era um dos dirigentes, manifestou-se activamente contra as hostilidades.

Depois do fim da guerra e da unificação, o seu ciclo de prisões recomeçou, deste vez sob o regime comunista. Em 1977 foi preso em conjunto com outros dirigentes budistas, na sequência de um manifesto em defesa da liberdade religiosa e da sua igreja. ”Mantiveram-me fechado durante vinte meses numa cela de isolamento, com 90 centímetros de largura e 1,9 metros de comprimento. Havia um postigo com o tamanho da minha mão, que abriam só para me passar a comida. Para além disso, estava sempre fechada e era difícil suportar o ar abafado”.

Foi torturado de novo e tentaram obrigá-lo a confessar que trabalhava para a CIA. Quando foi levado a tribunal tudo o que puderam fazer foi acusá-lo de perturbar a ordem pública. Foi libertado, mas os trinta anos seguintes foram de prisão quase permanente, até à actualidade. Mesmo quando as autoridades lhe garantiam que estava livre, polícias colocados em torno do mosteiro Thanh Minh Zen, em Saigão, onde ainda vive, impediam-lhe a saída. Ou a entrada de visitantes que o queriam ver, como aconteceu com o deputado europeu Olivier Dupuis, que o tentou visitar em 2001, na sequência de uma das suas muitas prisões arbitrárias, sem julgamento, e que foi impedido de o fazer. De 1982 a 1992 foi condenado ao exílio interno, numa região particularmente fria e húmida, em condições horríveis, e a sua mãe, de 84 anos, foi condenada a acompanhá-lo. A mãe morreria em 1985, de frio e de fome. Pouco depois de regressar do exílio publicou um manifesto pela liberdade religiosa e condenando a perseguição da UBCV, que o levou de novo à cadeia.

Muitas dessas prisões têm como argumento a simples existência da sua igreja – que Hanói não reconhece, pois criou uma igreja budista oficial, a Igreja Budista do Vietname (VBC), dirigida por uma estrutura controlada pelo Estado, à qual tenta obrigar todos os monges a aderir. Outras devem-se a protestos em prol da democracia.

Thich Quang Do já foi nomeado várias vezes para o Nobel da Paz. Este ano havia quem jurasse que o Nobel iria para um dos dissidentes chineses (Hu Jia e a sua mulher Zeng Jinyan, ou Wei Jingsheng) ou para Do – mas todas estas hipóteses provocariam o desagrado da China, amiga do regime de Hanói.

Num vídeo gravado clandestinamente em 2007, disponível no YouTube, Do aparece a falar, no seu mosteiro. “No Vietname de hoje não somos livres”, diz. “Somos prisioneiros no nosso próprio país. Prisioneiros de um regime que decide quem tem o direito de falar e quem é obrigado a calar-se. No momento em vos falo, encontro-me em prisão domiciliária no mosteiro Thanh Minh Zen, em Saigão. A polícia secreta vigia-me dia e noite e estou proibido de viajar. Tenho sido vítima da repressão do regime comunista desde 1975. Não tenho receio de nada por mim, porque sei que estou a lutar pela causa justa, pela verdade. Não temos partidos de oposição, não temos liberdade de imprensa, não temos sindicatos livres, não temos sociedade civil. Todas as religiões independentes foram proibidas. Todos os cidadãos que reclamam reformas políticas, democracia e o respeito dos direitos humanos são imediatamente presos. Devemos ter pluralismo, o direito de realizar eleições livres, de escolher o sistema político que queremos, de gozar as liberdades democráticas, em suma, o direito a moldar o nosso próprio futuro, de moldar o destino da nossa nação. Há 32 anos que nos dirigimos aos outros países. O que esperamos é que vocês, estrangeiros, ouçam o nosso apelo.”

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