sexta-feira, maio 08, 2009

Página de Rosto - Pete Seeger, um banjo contra o ódio

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 8 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 8



Pete Seeger, músico (Estados Unidos)

Pode parecer estúpido, mas penso que o mundo tem uma grande dívida para com Pete Seeger. A mesma dívida que tem para com tantos outros dos seus artistas, é verdade, mas uma dívida, mesmo assim. E que é do mundo em geral – ou pelo menos daquele onde chegou a sua música e o impacto do movimento pelos direitos cívicos nos Estados Unidos dos anos 60, o que quer dizer uma grande parte dele.

Falo da música de Pete Seeger e da luta pelos direitos cívicos na mesma frase porque não é possível separar uma da outra. É impossível imaginar as suas canções sem essa razão e esse sentimento, é impossível imaginar aquelas vagas de mobilização, de reivindicação, de solidariedade, de coragem, de emoção, de juventude, de amor da liberdade e de sonho de um mundo melhor sem os hinos de Pete Seeger. Porque muitas das suas canções são os hinos da liberdade que uma geração inteira aprendeu a cantar – na América e no mundo. E se a América ainda merece um lugar especial no coração de tanta gente, é antes de mais por causa de momentos como esses, onde a liberdade parecia estar a ser inventada de novo do outro lado do Atlântico e onde os males do mundo pareciam estar à beira de ser resolvidos.

Pete Seeger comemorou 90 anos no domingo passado, a 3 de Maio, e participou num concerto-festa no Madison Square Garden de Nova Iorque, onde cantou e tocou todos os seus velhos êxitos com um entusiasmo e um vigor que surpreenderam os que lhe tinham perdido o rasto nos últimos anos. A sua voz já não é aquele tranquilo tenor serpenteante e sedutor dos anos 60 e 70, mas o simples facto de ainda conseguir cantar, tocar o banjo e aguentar a pressão de um grande espectáculo não pode deixar de se considerar notável. No concerto participaram muitas dezenas de amigos, entre os quais os velhos Joan Baez e Arlo Guthrie e o apenas ligeiramente mais novo Bruce Springsteen – responsável, com o seu disco We Shall Overcome: The Seeger Sessions, de Abril 2006, por uma vaga de redescoberta da música de Seeger.

Entre os menos-de-50-anos é raro quem saiba quem seja Pete Seeger. O nome soa familiar, mas a maioria não se lembra porquê. Mas as canções, essas, toda a gente continua a reconhecê-las, ainda que, nalguns casos, a versão que vem à memória seja a de outros intérpretes (“Ah, não era a Marlene Dietrich que cantava esta?”. Também era. Marlene gravou We Shall Overcome em inglês, francês e alemão). E muitos outros cantaram Where have all the flowers gone, Amazing Grace, If I Had a Hammer, This Little Light of Mine…

We Shall Overcome, que Seeger celebrizou mas não compôs (a letra é de um gospel com cem anos, baseada numa velha canção de escravos, a música é de um hino religioso com raízes no século XVIII), tornou-se o verdadeiro hino dos direitos cívicos e foi cantado em milhares de protestos e desfiles, às vezes com alterações na letra, para a adaptar às circunstâncias. Os seguidores de Martin Luther King, durante as jornadas de luta contra a segregação – onde Seeger esteve sempre activamente, desde antes do primeiro momento – juntaram-lhe os versos “we will walk together, someday, black and white together, someday".

Muitas das canções de Seeger, como esta, possuem letras de uma simplicidade desarmante, que lhes dão uma força insuspeita. Imaginam o que deve ter sido estar nos degraus do Lincoln Memorial em Agosto de 1963, durante a Marcha de Washington, e ouvir We Shall Overcome cantado por duzentos mil manifestantes? Ou ouvir a canção, com o acrescento de um verso improvisado (“We are not afraid… We are not afraid, today”) cantado por um grupo de jovens manifestantes negros arrebanhados pela polícia e obrigados a deitar-se no chão? Hoje parece simples e inócuo mas houve pessoas que morreram, no nosso tempo, para que uma pessoa negra pudesse andar de mão dada com uma branca.

O significado do gospel é um pouco diferente quando é cantado numa manifestação contra o apartheid e os cenários das canções de Pete Seeger eram quase sempre dessa índole: protestos contra a segregação racial nas escolas e no trabalho, manifestações contra a brutalidade da polícia, reivindicação de igualdade perante a lei, salário mínimo, segurança no trabalho, direito à greve… De outras vezes concertos para recolha de fundos para apoiar greves, concertos de solidariedade por esta ou aquela causa.

A mensagem política adquiria uma força inimaginável à boleia destas letras espirituais (Seeger é crente), destas frases simples e incontestáveis, de uma verdade evidente, sempre sublinhando a força da razão, a não-violência, a liberdade e a igualdade. E imaginam um protesto de estudantes, brancos e negros, cantando em conjunto o clássico folk de Woody Guthrie (amigo e mestre de Pete Seeger) “This land is your land, this land is my land/This land was made for you and me”? Haverá melhor símbolo de empowerment?

A mensagem gravada no banjo de cinco cordas e braço extralongo, que se transformou na marca registada de Seeger, diz tudo: “This machine surrounds hate and forces it to surrender” (Esta máquina cerca o ódio e força-o a render-se). A frase é uma marca da influência de Guthrie, que tinha escrito na sua viola "This machine kills fascists” (Esta máquina mata fascistas). Seeger adoçou-o ao sabor da sua música e da sua vida.

Pete Seeger nasceu em Manhattan, numa família da classe média, filho de pais músicos (ele, musicólogo; ela, violinista), ambos professores na famosa Juilliard School de Nova Iorque. Os pais proporcionaram-lhe uma formação musical sólida mas relativamente livre e tentaram que Pete se dedicasse à música clássica, mas o género não o atraía especialmente. Aos dezasseis anos, num festival de música, ouviu o banjo de cinco cordas e ficou apaixonado pelo instrumento, que nunca mais deixou – apesar do seu gosto pela guitarra de doze cordas, outra preferida, e dos muitos outros instrumentos que toca episodicamente. O seu livro How to Play the Five-String Banjo, publicado em 1948, continua a ser considerado uma referência.

Seeger conseguiu uma bolsa para Harvard (onde foi colega de John Kennedy), decidido a estudar sociologia e a tornar-se jornalista, mas os estudos não o entusiasmaram e deixou a universidade para viajar pelos Estados Unidos, desenhando pelo caminho (uma paixão de sempre) e fazendo música. Foi nessa viagem pelo país que conheceu Woody Guthrie, com quem criou em 1940 os Almanac Singers, grupo de cantores-activistas itinerantes que apoiava com a sua música os movimentos sindicalistas. Durante a Segunda Guerra Mundial cantou para entretenimento das tropas e depois de sair do exército criou o People's Songs, Inc., uma associação de músicos dedicada a apoiar movimentos sindicais e preocupada com a recolha e reabilitação da música folk. Em 1948 fundaria outro grupo, os Weavers, que conheceria uma fama comercial considerável.

Em parte por influência do pai, comunista convicto, um entusiasta que acreditava que a música devia ser posta ao serviço do povo e da transformação social, Pete Seeger aderiu com 17 anos à Liga Comunista da Juventude e seis anos depois ao Partido Comunista dos EUA. Muito mais tarde, já nos anos 90, diria que começou a afastar-se do partido nos anos 50 (o pai saiu em 1938), ao tomar conhecimento das atrocidades cometidas por Estaline, mas a fama de “estalinista” manter-se-ia colada ao seu nome por muitos anos, alimentada frequentemente por conservadores que o criticavam por defender a liberdade nos EUA e a ditadura na URSS.

Forçado a testemunhar durante o McCarthyismo perante a Comissão de Actividades Anti-Americanas, em 1955, Pete Seeger recusou-se a responder às perguntas, a acusar fosse quem fosse e a invocar a Quinta Emenda – o que daria origem a uma condenação a um ano de prisão, que seria revogada e que nunca cumpriu.

“Gosto de dizer que sou mais conservador que Goldwater”, disse numa entrevista dada ao New York Times em 1995. “Ele só quer voltar ao tempo em que não havia imposto sobre o rendimento. Eu gostava de voltar ao tempo em que as pessoas viviam em aldeias e tomavam conta umas das outras”. Sobre Estaline, na mesma entrevista, lamenta “ter seguido a linha do partido como um carneiro” e “não ter percebido que Estaline era um dirigente supremamente cruel”. Em 2007, escreveria uma canção condenando explicitamente o líder soviético, Big Joe Blues ("I'm singing about old Joe, cruel Joe”). Demasiado tarde, disseram alguns.

Se há um fio condutor na mensagem das músicas de Seeger, esse fio é a paz, a não-violência, o respeito pelos outros e pela natureza, a solidariedade entre todos os seres humanos, a recusa de todas as segregações e a defesa da justiça social, da dignidade humana. Além, claro, da fé no poder da música como forma de unir as pessoas. Não há concerto de Seeger em que não diga às pessoas para cantarem consigo. Seeger não gosta de cantar sozinho.

Hoje, Pete Seeger é uma lenda viva e um repositório de algumas das mais nobres lutas políticas do último século nos Estados Unidos: os direitos dos trabalhadores e em particular o direito à greve, os direitos cívicos e em particular o fim da segregação racial – Seeger cantou This Land Is Your Land depois da tomada de posse de Obama –, a luta contra o McCarthyismo e pela liberdade de associação, a oposição à guerra do Vietname e a todas as formas de agressão internacional e a defesa do ambiente – que nos últimos anos se tornou a sua causa de eleição. Não é mau para 90 anos.

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