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sexta-feira, maio 19, 2017

Grandes poderes, nenhum escrutínio - Crónica no Jornal Económico

Por José Vítor Malheiros

Empresas globais como a Google e o Facebook possuem um poder ilimitado de manipulação dos comportamentos.

19 Mai 2017 - Crónica no Jornal Económico/5 e última

“Um grande poder acarreta uma grande responsabilidade”. A frase tem vários autores ilustres, desde Churchill a Jesus Cristo, mas a versão que conquistou a imortalidade (“With great power comes great responsibility!”) é a de Benjamin Parker, o “Tio Ben” de Peter Parker, mais conhecido como Homem-Aranha.

A noção é central na filosofia política e no exercício da política em democracia, onde a preocupação em equilibrar um poder com outros poderes e em construir formas de escrutínio, controlo, limite e responsabilização de todos os poderes é tanto maior quanto maior for o seu alcance.

Nenhum sistema político moderno defende a concentração de poderes numa só pessoa ou organização e muito menos uma concentração de poderes isenta de escrutínio. Apesar disso, assistimos hoje a uma concentração crescente de poder na mão de um número limitado de empresas globais que, precisamente devido ao seu carácter global e à sua não-territorialidade, não são submetidas a nenhum escrutínio digno desse nome e cujo poder não é praticamente limitado por nenhuma instância jurídica ou outra.

De uma forma geral, olhamos com complacência estes poderes, que nos parecem benignos e que nos fornecem a baixo preço serviços sem os quais hoje viveríamos dificilmente. Mas qual é o verdadeiro preço que estamos a pagar?

Nos últimos meses, foram publicados na imprensa vários artigos sobre o envolvimento de empresas especializadas em guerra psicológica nas campanhas de Donald Trump nos EUA e do referendo do Brexit no Reino Unido. Estas empresas, ligadas aos meios da direita e extrema-direita globais, podem ter influenciado o comportamento de votantes indecisos através de campanhas de publicidade online extremamente eficazes, construídas com base em dados coligidos, nomeadamente através do Facebook, que permitem conhecer os valores, gostos, atitudes e comportamentos de grupos de pessoas mesmo sem conhecer a identidade pessoal dos seus membros. A questão é que um poder desta dimensão, capaz de manipular o comportamento de massas, exige um enorme escrutínio e controlo, sem o que a nossa actual e imperfeita democracia se pode ir transformando, insensivelmente, num sistema totalitário onde apenas julgamos fazer escolhas livres.

O Google, por seu lado, determina hoje quase toda a informação a que temos acesso. No passado, jornais e TV com um poder infinitamente menor, eram submetidos a regras estritas para limitar a sua influência, mas o Google, escudando-se atrás de uma falsa neutralidade dos seus algoritmos, possui um poder virtualmente ilimitado de manipulação de crenças e comportamentos. O debate sobre o controlo destes poderes é essencial, se queremos manter alguma esperança de democracia.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

sexta-feira, abril 21, 2017

Vacinação: obrigar ou pressionar? - Crónica no Jornal Económico

Por José Vítor Malheiros

Apresentação do boletim de vacinação ou da declaração da oposição dos pais à vacina deveria ser obrigatória no acto de matrícula escolar.

21 Abr 2017 - Crónica no Jornal Económico/3

Entre 1987 e 1989 ocorreram em Portugal 12 mil casos de sarampo, 30 dos quais mortais. Em 2016, a OMS declarou a doença erradicada em Portugal.

A razão da erradicação da doença? A generalização da vacina gratuita e a sua inclusão no Programa Nacional de Vacinação.

Na passada quarta-feira, morreu uma adolescente com sarampo internada num hospital de Lisboa. E os dados da Direcção-Geral de Saúde indicam que houve, nos primeiros quatro meses de 2017, mais casos de sarampo em Portugal (23 casos confirmados) que nos dez anos anteriores. O panorama é semelhante noutros países.

A razão do regresso da doença? A ausência de vacinação causada pelo desleixo ou ignorância dos pais e por um movimento crescente de pessoas que são contra a vacinação (a do sarampo e a vacinação em geral) por considerarem que ela é perigosa ou desnecessária. Uma das principais razões da oposição destes pais à vacinação dos seus filhos é um falso artigo científico publicado em 1998 na prestigiada revista médica The Lancet por um médico britânico, Andrew Wakefield, onde este declarava que a vacina tríplice que tantos de nós tomámos na infância (contra o sarampo, papeira e rubéola) causava autismo. O artigo era comprovadamente fraudulento e foi retirado pela revista, mas continua hoje a ser citado como verdadeiro por muitos dos críticos das vacinas.

O reaparecimento do sarampo e o receio de que a mesma coisa possa acontecer com outras doenças actualmente erradicadas graças à vacinação fez reaparecer o debate sobre a necessidade e a legitimidade de tornar a vacinação obrigatória (não o é em Portugal) com oponentes da obrigatoriedade a invocar o argumento da liberdade individual e os seus defensores a invocar a defesa da saúde pública e o dever da sociedade de proteger as crianças da negligência ou ignorância dos pais.

Não tenho dúvidas sobre a legitimidade do recurso à obrigatoriedade da vacinação (ou “quase obrigatoriedade”, através da sua exigência para efeitos de frequência da escola pública e outros serviços), pelas razões referidas, que são as mesmas que nos levam a decretar outras medidas compulsivas de protecção das crianças, mesmo contra a vontade dos pais. No entanto, antes de chegar a esse ponto, penso que é razoável explorar o modelo actual de não obrigatoriedade, que se tem revelado eficaz e não levanta qualquer dúvida quanto à sua legitimidade.

É necessário no entanto que o modelo seja de facto reforçado, com mais informação disponibilizada aos pais e à população e com, por exemplo, a real obrigatoriedade de apresentação do boletim de vacinação ou da declaração da oposição dos pais à vacina no acto de matrícula escolar.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

Link para o artigo no site do Jornal Económico: http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/vacinacao-obrigar-ou-pressionar-148984

terça-feira, maio 20, 2014

A lei da rolha disfarçada de código de ética

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Maio de 2014
Crónica 26/2014


O objectivo não é defender o Estado, mas garantir a opacidade dos organismos do Ministério da Saúde.

1. Chamam-lhe o novo Código de Ética do Ministério da Saúde. Ainda não entrou em vigor, mas está em fase de consulta e o texto foi enviado a várias organizações, algumas das quais já fizeram os seus comentários.

Entre as disposições do documento de que a imprensa se fez eco consta o dever, para todos os funcionários que trabalhem no Serviço Nacional de Saúde, de “guardar absoluto sigilo e reserva” sobre qualquer informação que possa “afectar ou colocar em causa” o interesse da organização.

Para além desta disposição, determina-se que todos os “colaboradores e demais agentes” dos organismos sob a tutela do Ministério da Saúde “devem abster-se de emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem da (nome do serviço ou organismo), em especial fazendo uso dos meios de comunicação social”.

A primeira curiosidade do documento é o facto de se chamar “Código de Ética”, mas esse facto deve atribuir-se ao newspeak adoptado pelo Governo, que chama “libertação” a despedimentos, “ajustamento” ao empobrecimento, “oportunidade” ao desemprego, “privilégios” a pensões, etc. Um nome mais adequado para o documento seria "Procedimentos de intimidação e controlo”, mas como de cada vez que um membro do Governo usa uma designação honesta lhe cai uma orelha, Paulo Macedo não quis correr o risco.

Repare-se que esta proibição não se aplica apenas quando as eventuais declarações dos colaboradores e demais agentes “possam pôr em causa a imagem” do organismo, mas em todos os casos. O “nomeadamente” está lá para vincar que isso é proibido, mas o resto também.

É particularmente reveladora a expressão que considera uma agravante (“em especial”) a difusão não autorizada de informações aos meios de comunicação social.

À primeira vista parece estranho que os media apareçam singularizados como o inimigo principal (não faria mais sentido ser especialmente duro com a partilha de informações sensíveis com o crime organizado? Com organizações terroristas? Potências estrangeiras? Corretores de Bolsa? Fornecedores do Estado?), mas a intenção é clara: o objectivo não é defender o Estado ou os organismos do Ministério da Saúde de qualquer perigo particular, nem defender a lisura de procedimentos ou garantir uma leal concorrência nos contratos públicos ou outra qualquer razão admissível. O que se pretende é, simplesmente, garantir a opacidade dos organismos do Serviço Nacional de Saúde e intimidar os seus funcionários, de forma a impedir que o público seja informado do seu funcionamento interno, mesmo quando ele apresente problemas graves, e desresponsabilizar os dirigentes pelas suas decisões.

Um verdadeiro código de ética deveria estabelecer que a principal responsabilidade dos funcionários do SNS é para com os cidadãos e que é seu dever denunciar e divulgar qualquer situação que, em consciência, lhes pareça atentatória da qualidade técnica e humana que esses serviços devem garantir, de forma a garantir os altos padrões de funcionamento que o público exige. É lamentável que a lei da rolha e a intimidação a priori de qualquer eventual whistleblower seja a prioridade de Paulo Macedo.

Sobre este ponto merece menção a atitude da Ordem dos Médicos, cujo Conselho Regional do Sul decidiu apoiar os seus membros que falem publicamente sobre o que se passa nos seus locais de trabalho e prometeu estar “ao lado de cada médico que seja ameaçado por denunciar situações de grave prejuízo para os doentes no seu serviço ou instituição”.

2. O mesmo “Código de Ética” pretende obrigar os funcionários do SNS a entregar à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde todas as ofertas que recebam para que elas sejam posteriormente doadas a instituições de solidariedade social. O objectivo é meritório, ainda que o procedimento pareça excessivamente pesado e ineficaz (se não promotor de maior clandestinidade). Gastar 50 euros em procedimentos administrativos, transporte, armazenamento e arquivo digital para que um funcionário não guarde para si um brinde de um euro é um disparate. Mas o que é mais surpreendente é que seja o Governo do PSD-CDS, partidos cujos militantes são conhecidos pelo seu apreço às prendas, a tentar impor esta disciplina aos funcionários do SNS.

O intento moralizador de Paulo Macedo seria mais credível se os partidos do Governo, antes de tentarem impor esta frugalidade aos funcionários públicos, anunciassem que todos os membros do Governo e deputados das suas fileiras passarão a recusar qualquer prenda que lhes queiram dar. Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, ex-futuro ministro das Finanças de Passos Coelho e verdadeiro padrinho da troika, gabava-se de receber “pratas, vinhos raros e livros” quando era ministro e queixava-se de ter perdido prendas quando deixou de ser ministro, o que achava não só natural como muito agradável. Que tal começar a moralização por cima?

jvmalheiros@gmail.com


terça-feira, julho 30, 2013

Temos o direito de exigir que os ministros não mintam nos currículos?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Julho de 2013
Crónica 29/2013


Um dos melhores exemplos da "podridão dos hábitos políticos" é a prática de mentira por omissão sobre os cargos e funções exercidos

1. Rui Machete esqueceu-se de mencionar a sua passagem pela Sociedade Lusa de Negócios/BPN na sua biografia oficial. Detectada a lacuna, um assessor do primeiro-ministro apressou-se a justificá-la com o argumento de que o currículo referia apenas os cargos públicos de Machete. A desculpa é falsa (o currículo referia cargos de Rui Machete noutras empresas) mas é, além disso, uma desculpa esfarrapada. Se houvesse algum critério que restringisse a cargos públicos os currículos dos ministros esse seria um mau critério. É evidente que a elisão da passagem de Machete pela SLN/BPN é apenas uma manobra de branqueamento do seu currículo, confiando na falta de memória dos portugueses e na distracção dos media.


O branqueamento de currículos não é raro na política portuguesa. Recentemente, o ex-secretário de Estado da Inovação e do Empreendedorismo Franquelim Alves também se esqueceu da sua passagem pela SLN e o próprio Pedro Passos Coelho esqueceu no seu currículo que foi administrador da Tecnoforma, uma empresa cuja actividade está a ser investigada pelo Organismo Europeu de Luta Antifraude da União Europeia por suspeita de uso fraudulento de fundos comunitários.

Mas o problema é geral: não há um currículo de ministro que não seja editado para lhe retirar os elementos mais problemáticos, com a desculpa de que não são relevantes. Não é por acaso que a maior parte dos currículos dos políticos não têm datas. É para que as lacunas não sejam tão visíveis.

Os currículos que os ministros deste Governo apresentam no seu site oficial são uma demonstração de falta de vergonha e representam uma descarada colecção de mentiras por omissão.

Alguém em seu perfeito juízo contrataria para um lugar de responsabilidade um profissional que apresentasse um currículo tão cheio de lacunas como aqueles que os nossos ministros apresentam? Ninguém. E não o faria porque um currículo de onde são suprimidas algumas linhas nos faz desconfiar da integridade do seu autor, se não da legitimidade das próprias actividades exercidas.

Alguém aceitaria referências tão vagas como “na última década conciliou a gestão de empresas com a docência” ou “dirigiu um centro de sondagens”?

A opacidade dos currículos dos governantes é um bom exemplo da podridão dos hábitos políticos de que se tem falado ultimamente.

É evidente que Rui Machete não tem de incluir no seu currículo que o embaixador dos Estados Unidos suspeitava em 2008 que ele, durante as duas décadas em que ocupou a presidência da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, tinha atribuído “bolsas para pagar favores políticos e manter a sua sinecura”, mas esperamos que ele nos diga onde trabalhou e a fazer o quê. Mais: temos o direito de saber e ele tem o dever de nos dizer. E temos o direito de saber porque (isto corre o risco de ser um choque para Machete) os ministros trabalham para nós, para os cidadãos.

É admissível que um currículo seja editado para colocar em evidência aquilo que se se considera mais relevante. Mas não é admissível que as partes embaraçosas sejam apagadas. E, se se pode colocar num comunicado de imprensa uma versão reduzida do currículo, é indispensável que, no site do Governo exista uma versão integral de todos os currículos, com todas as datas e todos os cargos, incluindo as organizações a que se pertenceu e pertence (de clubes desportivos a partidos, da Opus Dei à Maçonaria), as organizações para que se trabalhou, etc.. No caso de Rui Machete, por exemplo, o seu currículo deveria incluir as dezenas ou centenas de cargos que ocupou nos diversos órgãos de gestão das diversas empresas por onde passou, como qualquer dirigente do PSD que se preze.

E, para que não se diga que é fácil criticar sem propor nada de positivo, aqui vai: proponho que todos os políticos eleitos disponibilizem na Internet, nos sites dos organismos a que pertencem, currículos completos, não editados, com a relação de todas as actividades e de todos os cargos que exerceram.

2. Há outro caso onde algum grau de formalidade, de transparência, de honestidade e de preocupação com o rigor histórico seria igualmente bem vindo: as passagens de pastas entre os governantes de um governo cessante e os do governo começante. Não se trata apenas do folhetim de Maria Luís “Não Menti” Albuquerque. As queixinhas dos ministros que não contaram, que contaram mas não contaram tudo, que contaram tudo mas eu não percebi metade não têm lugar no mundo de responsabilidade que nós gostamos de sonhar que é o mundo dos governantes.

E cá vai outra sugestãozinha: será que os serviços da Presidência do Conselho de Ministros não poderiam definir um protocolo a ser seguido nestes casos, que seja aceite por todos os partidos, que seja mesmo seguido, onde os documentos rejam registados e onde as reuniões tenham actas que sejam de facto guardadas e que nos evitem o sacrifício de ter de assitir ao contorcionismo ético-semântico de outras Marias Luíses? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 11, 2012

Da meritocracia considerada como uma das belas-artes

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Dezembro de 2012
Crónica 49/2012

Há quem pense que o mérito é um critério tão bom que apenas devem gozar de direitos humanos as pessoas que os mereçam

A palavra é bonita: mérito. Ter mérito. Merecer. Há uma ideia de justiça, de bondosa racionalidade associada ao mérito, de exigência e de justa recompensa. Ou não fôssemos nós um país tradicionalmente cristão, onde nos ensinam que a vida deve ser um longo caminho para merecer a bem-aventurança celestial. Ter mérito é bom. Ter mérito é merecer e todos queremos merecer. Merecer é ser digno de alguma coisa. Conquistar o direito a alguma coisa. Tornar-se merecedor. E todos queremos ser dignos, conquistar direitos, tornar-nos merecedores. Ter mérito também é ter uma aptidão especial que se soube desenvolver com perseverança, um talento que conseguimos desenvolver para nos tornarmos melhores que os outros, para ganhar, para vencer. E todos queremos ser melhores, ter aptidões e talentos e vencer. Há uma ideia de competição no mérito, mas uma justa competição, feita de esforço somado a habilidade natural, feita de regras consensualmente aceites, de confrontos leais, de vitórias dignas, de recompensas merecidas. As medalhas são sempre de mérito.
A meritocracia tem uma história longa (ainda que a expressão tenha pouco mais de cinquenta anos) e uma história nobre. O conceito da meritocracia nasceu em oposição aos privilégios herdados da aristocracia e ao direito divino, aos direitos de sangue da família e da raça, ao favoritismo e ao nepotismo, aos poderes passados de pais para filhos, à exclusão de qualquer tipo de mérito ou justiça na distribuição da riqueza e de poder, à perpetuação de uma casta no exercício do poder. E foi uma coisa boa.
A primeira organização onde surgiu a preocupação em premiar o mérito, a competência, para escolher os seus dirigentes e não os privilégios de família ou a riqueza foi a administração públicaet pour cause. Sem uma escolha baseada no mérito, as castas dirigentes entregavam a administração das riquezas do Estado aos filhos e sobrinhos ou aos seus correligionários políticos com o resultado que se conhece: o sequestro do Estado por grupos sem escrúpulos (aquilo a que hoje se chama os “partidos do arco do poder”). Foi a meritocracia que impôs os concursos públicos na Administração Pública em substituição das cunhas, ainda que seja possível defender que a única coisa que mudou foi a mecânica da cunha (onde antes se escrevia “Se V.Exa. se quisesse interessar pelo meu sobrinho...” hoje sussura-se “Tu podias fazer um concurso para um rapaz lá da distrital...”).
Em termos simples, a meritocracia quer dizer apenas isto: se uma pessoa tiver qualidades excepcionais, ela poderá alcançar o topo da organização onde trabalha e o topo da sociedade onde vive, seja qual for a sua origem social. Parece bonito e louvável. E hoje, além da Administração Pública, há muitas organizações que se gabam de ser meritocracias, das Forças Armadas à Universidade, e outras tantas que são criticadas por não o serem.
A meritocracia tem um problema: tem implícita a ideia de que nem todos merecem. Há quem mereça e há quem não mereça. Há uma ideia de selecção, de recompensa dos mais aptos. Isto não seria um problema em si se soubéssemos definir e delimitar os campos onde o mérito deve ser um critério. É evidente que nem toda a gente merece ganhar uma medalha de ouro na maratona, nem toda a gente merece ser chefe de uma repartição de finanças e nem toda a gente merece ser coronel dos Comandos. O problema não é esse. O problema é que há quem pense que o mérito é um critério tão bom que ele deve ser estendido a todos os domínios, mesmo aos direitos humanos. Ou seja: há quem mereça ter direitos e quem não os mereça. Está bem que há quem lhes chame Humanos e Universais mas isso é secundário.
É esta a posição do neoliberalismo, que critica por esse facto políticas como o Rendimento Social de Inserção (pobres ignorantes e sem trabalho não merecem nada) e que considera que não só há cidadãos que não merecem emprego (não sabem fazer nada) como, se estiverem desempregados algum tempo, até deixam de merecer subsídio de desemprego, casa, tratamentos médicos ou alimentação e devem apenas ter acesso a tudo isso se alguém lho dispensar como esmola.
E esta é a fronteira onde a bela meritocracia se torna fascista.
A facilidade com que esta fronteira é cruzada pode constatar-se pela frequência com que podemos ouvir reputados professores universitários, com uma formação que sugeriria maior sensatez e um cargo que recomendaria maior humanidade, defender a transformação da sociedade portuguesa numa sociedade meritocrática e defender que o mérito seja o único critério de acesso a qualquer benesse que a sociedade disponibilize ao cidadão. Dar-se-ão conta de que foi esta a argumentação usada pelos nazis para defender a eutanásia dos deficientes, aqueles que tinham “uma vida que não merecia ser vivida”, uma vida sem mérito?
E dar-se-ão conta de como é tristemente cómico vê-los, a todos estes defensores da meritocracia e da excelência académica, beijar o anel de Miguel Relvas sempre que a ocasião se proporciona? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 13, 2010

A melhor educação do mundo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Abril de 2010
Crónica 15/2010

Com Sandel, o exercício da cidadania desdobra-se em milhentas opções, a fervilhar de paixões e de razões conflituantes

Frequentei recentemente um curso leccionado pelo filósofo americano Michael Sandel na Universidade de Harvard. O curso intitula-se “Justiça” ( Justice) e tem como subtítulo a pergunta “Qual é a maneira correcta de agir?” (“What’s the right thing to do?”). Na realidade trata-se de um curso de flosofia moral ainda que a expressão não seja usada na sua identificação – imagina-se que para não assustar os alunos.

O curso é composto por uma série de 24 conferências onde Sandel aborda (e põe os alunos a discutir) temas da actualidade, do uso da tortura à legitimidade dos impostos, do casamento entre pessoas do mesmo sexo ao serviço militar obrigatório. É a partir de questões morais concretas, de dilemas que nos surgem no dia-a-dia, que Sandel vai introduzindo as contribuições de vários pensadores clássicos e contemporâneos, de Jeremy Bentham a Kant e de Mills a Rawls, alimentando com as ideias de todos eles o debate e a sua exposição. As aulas de Sandel são imensamente estimulantes, as ideias que expõem são sempre provocantes e solicitam-nos de uma forma irrecusável.

As perguntas que Sandel deixa no ar são raramente respondidas mas a viagem intelectual em que elas nos lançam é sempre fascinante, às vezes surpreendente e frequentemente divertida. O que é mais espantoso nas suas aulas, porém, é a maneira como o exercício da cidadania deixa de ser aquela coisa chata e burocrática para se converter numa aventura de milhentas opções, com consequências que nunca tínhamos imaginado, cheia de possibilidades e de escolhas arriscadas, a fervilhar de paixões e de razões conflituantes.

O mais interessante de tudo isto, porém, é o facto de eu ter podido frequentar este curso sem estar inscrito em Harvard, sem ter ido a Cambridge e sem gastar um tostão.
O curso – um dos mais famosos de Harvard, que conta por vezes com mais de mil alunos, o que obriga Sandel a dar as aulas no majestoso Sanders Theater da Universidade de Harvard – está todo filmado e disponível na Internet (http://www.justiceharvard.org) e foi aí que eu o frequentei, assistindo a todas as conferências no meu computador, em full screen e alta definição.

Assisti às 12 horas de aulas, às vezes de dia, outras vezes à noite, parando com frequência para consultar um texto, verificar um dado na Wikipedia ou para ler a bibliografia aconselhada, às vezes paralisando Sandel a meio de uma frase para tomar notas, como faziam os meus colegas que estavam live no Sanders Theater (mas que não podiam parar o professor), outras vezes voltando atrás para rever um excerto que tinha perdido por ter começado a divagar, levado pelas questões em discussão.

No total, contando as leituras apensas, terei gasto umas trinta horas no curso, que me agradou mais do que se tivesse passado esse tempo no cinema, e sinto-me privilegiado por ter podido usufruir da oportunidade (pelo caminho fui obrigando amigos e família, mais ou menos contrafeitos, a ver um ou outro pedaço das aulas).

Cursos online em vídeo deste tipo existem às centenas na Internet (mais nos EUA que na Europa) cobrindo as mais diversas áreas, das Humanidades às Ciências, e constituem uma área de investimento crescente. Podem ver-se nos sites das universidades, nalguns casos em sites comerciais, e todos eles estão no YouTube – que com frequência oferece melhores condições em termos de comunicações. Se por um lado eles permitem a qualquer pessoa assistir a aulas dadas a milhares de quilómetros de distância e meses ou anos antes pelos mais interessantes e competentes professores das diversas áreas, eles são também uma forma de rentabilizar aulas espantosas que ficariam, de outra forma, limitadas ao usufruto de um número limitadíssimo de alunos. Além de que os blogues e fóruns que existem anexos a todas estas aulas permitem uma interacção com professores e participantes que, se não é a mesma coisa que a presença física… às vezes é melhor.

A promessa da educação online é imensa, como já foi a da televisão. Mas, no caso da Web, podemos ter tudo o que a televisão oferecia e mais, ao ritmo que queremos, no momento que escolhermos: as aulas, as conferências, a biblioteca, os artigos, os livros, os debates. Só é preciso é usar a ferramenta. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 17, 2006

Ética e lei

O comportamento dos homens públicos é um dos terrenos clássicos de discussão da ética

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 17 de Janeiro de 2006
Crónica 3/2006

Há alguns dias, em jeito de resposta à acusação de comportamento impróprio devida ao facto de ocupar a presidência de uma empresa que poderá ter beneficiado enquanto ministro e às vozes que sugeriam a sua demissão ou pediam a sua censura, o deputado socialista Joaquim Pina Moura decidiu responder que a única ética que reconhecia na República era a lei da República. E, não tendo ele cometido nenhum acto ilegal, não via qualquer razão para se demitir nem qualquer base para as críticas que lhe eram dirigidas.

O argumento considera que os princípios éticos da República estão todos plasmados na lei e não existem fora dela. Como a condenação da lei é algo que não se pode decretar “a priori”, apenas com base numa interpretação pessoal dos textos legais – e, pelo contrário, exige o devido processo –, decorre das declarações de Pina Moura que só desrespeita a ética republicana quem é condenado pelos tribunais. Inversamente, bastará não ser apanhado nas malhas da lei para viver como exige a ética. O raciocínio tem a dúbia virtude de transformar a ética em algo indistinguível daquilo a que em linguagem comum se chama “esperteza saloia”.

A lógica é maniqueísta e tem, para os suspeitos, a vantagem pragmática de reduzir a possibilidade de que algum acto venha a ser considerado não ético. É a aplicação da lógica hipergarantista à ética.

Mais: apaga de facto o julgamento ético, substituindo-o pelo julgamento legal. Deixa assim de haver falhas éticas, actos eticamente reprováveis ou de conformidade ética duvidosa para passar a haver apenas ilhas de infracções e crimes num mar de absolvições.

Esta posição é tanto mais chocante num deputado quanto a ética é eminentemente democrática (ao contrário da lei, que não o é por natureza), pois parte do desejo de procurar uma verdade mutável através do debate aberto na sociedade.

A declaração é, por outro lado, tanto mais ridícula quanto o comportamento dos homens públicos foi desde sempre um dos terrenos clássicos de discussão e de aplicação da ética.

E é tanto mais disparatada para um deputado quanto ela menoriza o julgamento dos cidadãos e o substitui pelos critérios do poder judicial – como se um fosse redutível ao outro.

De facto, não é a lei a ditar a escolha dos homens e mulheres que exercem o poder legislativo ou executivo mas a vontade popular. E este, entre outras coisas, vive do julgamento ético que continuamente fazemos dos dirigentes que escolhemos. Quanto mais não seja por esse facto, a ética não é redutível à lei.

Ao querer subtrair a sua actuação ao julgamento ético e ao pretender reconhecer apenas o poder judicial, Pina Moura quer recusar aos cidadãos o seu direito à discussão dos seus actos, à crítica e à censura. Seria aceitável se Pina Moura fosse apenas um gestor; é inaceitável num deputado.

Que a lei não fornece a única grelha de análise dos nossos actos, todos o sabemos. Os actos de um homem público estão, entre muitos outros, submetidos ao escrutínio da opinião pública (e da imprensa como expressão da liberdade dessa opinião), dos eleitores (que se manifestam nas eleições e não só) e dos próprios pares (no caso vertente, dos deputados da Assembleia da República). E um homem público é aquele que aceita a legitimidade desses julgamentos. Aparentemente, Pina Moura não aceita.

É evidente que o julgamento ético não pode ser algo vago, sujeito aos humores dos julgadores. Deve basear-se em critérios conhecidos, possuir formalidade, ter referências escritas e uma memória, de forma a garantir a equidade. Não é preciso que se transforme em lei para o fazer. Mas esse julgamento ético deve ser feito, num exercício contínuo, aberto e participado, justo mas exigente. Se a lei não se pode confundir com a ética, isso não significa que esta não aplique os seus julgamentos. Nos domínios da ética esses princípios estão plasmados em linhas de conduta, em códigos deontológicos, no julgamento dos pares, em normas de boas práticas, em constante discussão mas que não devem ser levadas menos a sério por isso. Cabe aos deputados que fazem as leis para os outros, zelar para que a ética não seja descurada nas suas bancadas.