por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Abril de 2010
Crónica 15/2010
Texto publicado no jornal Público a 13 de Abril de 2010
Crónica 15/2010
Com Sandel, o exercício da cidadania desdobra-se em milhentas opções, a fervilhar de paixões e de razões conflituantes
Frequentei recentemente um curso leccionado pelo filósofo americano Michael Sandel na Universidade de Harvard. O curso intitula-se “Justiça” ( Justice) e tem como subtítulo a pergunta “Qual é a maneira correcta de agir?” (“What’s the right thing to do?”). Na realidade trata-se de um curso de flosofia moral ainda que a expressão não seja usada na sua identificação – imagina-se que para não assustar os alunos.
O curso é composto por uma série de 24 conferências onde Sandel aborda (e põe os alunos a discutir) temas da actualidade, do uso da tortura à legitimidade dos impostos, do casamento entre pessoas do mesmo sexo ao serviço militar obrigatório. É a partir de questões morais concretas, de dilemas que nos surgem no dia-a-dia, que Sandel vai introduzindo as contribuições de vários pensadores clássicos e contemporâneos, de Jeremy Bentham a Kant e de Mills a Rawls, alimentando com as ideias de todos eles o debate e a sua exposição. As aulas de Sandel são imensamente estimulantes, as ideias que expõem são sempre provocantes e solicitam-nos de uma forma irrecusável.
As perguntas que Sandel deixa no ar são raramente respondidas mas a viagem intelectual em que elas nos lançam é sempre fascinante, às vezes surpreendente e frequentemente divertida. O que é mais espantoso nas suas aulas, porém, é a maneira como o exercício da cidadania deixa de ser aquela coisa chata e burocrática para se converter numa aventura de milhentas opções, com consequências que nunca tínhamos imaginado, cheia de possibilidades e de escolhas arriscadas, a fervilhar de paixões e de razões conflituantes.
O mais interessante de tudo isto, porém, é o facto de eu ter podido frequentar este curso sem estar inscrito em Harvard, sem ter ido a Cambridge e sem gastar um tostão.
O curso – um dos mais famosos de Harvard, que conta por vezes com mais de mil alunos, o que obriga Sandel a dar as aulas no majestoso Sanders Theater da Universidade de Harvard – está todo filmado e disponível na Internet (http://www.justiceharvard.org) e foi aí que eu o frequentei, assistindo a todas as conferências no meu computador, em full screen e alta definição.
Assisti às 12 horas de aulas, às vezes de dia, outras vezes à noite, parando com frequência para consultar um texto, verificar um dado na Wikipedia ou para ler a bibliografia aconselhada, às vezes paralisando Sandel a meio de uma frase para tomar notas, como faziam os meus colegas que estavam live no Sanders Theater (mas que não podiam parar o professor), outras vezes voltando atrás para rever um excerto que tinha perdido por ter começado a divagar, levado pelas questões em discussão.
No total, contando as leituras apensas, terei gasto umas trinta horas no curso, que me agradou mais do que se tivesse passado esse tempo no cinema, e sinto-me privilegiado por ter podido usufruir da oportunidade (pelo caminho fui obrigando amigos e família, mais ou menos contrafeitos, a ver um ou outro pedaço das aulas).
Cursos online em vídeo deste tipo existem às centenas na Internet (mais nos EUA que na Europa) cobrindo as mais diversas áreas, das Humanidades às Ciências, e constituem uma área de investimento crescente. Podem ver-se nos sites das universidades, nalguns casos em sites comerciais, e todos eles estão no YouTube – que com frequência oferece melhores condições em termos de comunicações. Se por um lado eles permitem a qualquer pessoa assistir a aulas dadas a milhares de quilómetros de distância e meses ou anos antes pelos mais interessantes e competentes professores das diversas áreas, eles são também uma forma de rentabilizar aulas espantosas que ficariam, de outra forma, limitadas ao usufruto de um número limitadíssimo de alunos. Além de que os blogues e fóruns que existem anexos a todas estas aulas permitem uma interacção com professores e participantes que, se não é a mesma coisa que a presença física… às vezes é melhor.
A promessa da educação online é imensa, como já foi a da televisão. Mas, no caso da Web, podemos ter tudo o que a televisão oferecia e mais, ao ritmo que queremos, no momento que escolhermos: as aulas, as conferências, a biblioteca, os artigos, os livros, os debates. Só é preciso é usar a ferramenta. (jvmalheiros@gmail.com)
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