por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Abril de 2010
Crónica 16/2010
Crónica 16/2010
Ser pago a peso de ouro para enganar os consumidores e os investidores
O processo levantado pela Securities and Exchange Commission (SEC) americana ao todo-poderoso banco Goldman Sachs, acusando-o de fraude, tem a virtude de refrescar na memória do público os procedimentos seguidos no mundo da finança que deram origem à crise dos últimos anos.
O prémio Nobel de Economia Paul Krugman concluía a sua última crónica no New York Times, dedicada à iniciativa da SEC, com estas palavras: “O facto é que uma grande parte da indústria financeira se transformou num racket – num jogo onde uma mão-cheia de pessoas são pagas principescamente para enganar e explorar os consumidores e os investidores. E, se não punirmos severamente estas práticas, o racket vai continuar a ser a regra”.
O Goldman Sachs não só convenceu uma quantidade de clientes a comprar milhares de milhões de dólares de produtos financeiros que sabia terem um valor e rendimento duvidosos, como apostou na queda do valor dos próprios produtos que estava a vender. Ou seja: o banco ganharia tanto mais dinheiro quanto pior fosse a qualidade dos produtos que vendia (baseados muitos deles em dívidas incobráveis). Isto não faria levantar o sobrolho de indignação a nenhum especialista de finanças se não se juntasse a isto a acusação de que o Goldman Sachs terá feito tudo o que podia para incluir nestes pacotes títulos “tóxicos” de valor virtualmente inexistente. É isto que escandaliza os analistas, já que a aposta na queda dos títulos que se vende é, segundo parece, prática corrente e legal. E não parece preocupar ninguém o facto de haver uma pequenina contradição entre o facto de que para vender seja necessário garantir a qualidade do produto e para ter lucro seja necessário ter a garantia de que o produto não tem qualidade.
O Goldman Sachs admitiu no passado que agiu de forma “claramente errada” (palavras do seu CEO, Lloyd Blankfein) mas defende-se agora dizendo que os investidores a quem vendeu os seus títulos tóxicos sabiam o que faziam. E, se o banco ganhou com a perda dos outros... é assim que funciona o mercado.
O êxito do processo levantado pela SEC está longe de estar assegurado. O que, porém, se pode dizer desde já, é o facto de a actividade do Goldman Sachs (e de outros bancos que neste momento não estão na berlinda mas fizeram a mesma coisa) ser aos olhos de qualquer cidadão de uma absoluta imoralidade.
De facto, vender algo (sejam batatas ou títulos) é um gesto que tem de transportar consigo um aval, algum grau de responsabilização pelo que se vende. Não se pode permitir que, quando mais podres sejam as batatas que se vendem, mais dinheiro ganhe o vendedor. E permitir que se façam legalmente fortunas à custa dos incautos, dizendo que deviam inspeccionar as batatas antes de as comprar, não é mais que legalizar o conto do vigário. E não falemos sequer dos bónus pagos aos gestores de todas estas empresas financeiras nos últimos anos, em recompensa pelas malfeitorias que levaram a cabo, nem do comportamento inqualificável das empresas de rating, que classificaram como boas dívidas que sabiam incobráveis.
Pode dizer-se, como diz o Goldman Sachs, que quem comprou os seus títulos conhecia o risco. Só que, mesmo que isso fosse assim, a verdade é que esses compradores acabaram por distribuir esse risco por milhões de contribuintes que não escolheram o investimento, não foram informados sobre ele e tiveram de pagar dos seus magros bolsos, coercivamente, os milhões de quem ganhou.
Os esforços da SEC poderão cortar alguns dos ramos mais podres da árvore das finanças, mas a questão de fundo é que há algo de profundamente imoral na sua lógica. E esse algo deveria ser profundamente discutido em vez de continuarmos a dizer que os banqueiros e os corretores são essenciais à economia e que devemos por isso continuar a louvar o bom gosto das casas que compram com o dinheiro que nos roubam. (jvmalheiros@gmail.com)
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