por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009
Texto publicado no jornal Público a 23 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009
É preciso algum cinismo para dizer que Copenhaga foi “um passo no bom sentido”
A cimeira do clima de Copenhaga serviu pelo menos para uma coisa: conseguimos finalmente medir a importância que as alterações climáticas e a sustentabilidade têm para os principais países industrializados, para além dos discursos eleitorais. Por exemplo: para os Estados Unidos, as alterações climáticas são cerca de 200 vezes menos preocupantes do que a crise financeira do ano passado. Como é que se pode saber? Porque no ano passado a Administração americana não teve grandes engulhos em aprovar um pacote de 700.000 milhões de dólares para comprar os “títulos tóxicos” que as instituições financeiras tinham acumulado em operações de duvidosa legalidade e menos que duvidosa honestidade, mas apenas conseguiu desta vez prometer um apoio financeiro de 3600 milhões (e não para já, mas a ser concedido até 2012) para ajudar os países menos desenvolvidos a enfrentar o aquecimento global e a não aumentar a sua pegada de carbono. A UE prometeu três vezes mais (10.600 milhões) e o Japão também (11.000 milhões), mas os números são da mesma ordem de grandeza.
Estas quantias são enormes? Representam um empenhamento sério? Não e não. São gotas num balde vazio, que não vão chegar a humedecer o fundo, quanto mais matar a sede aos que esperam na fonte. Os números empalidecem, quando os comparamos com o carinho com que é tratado o menor soluço de um banqueiro. Ponhamos os números em perspectiva: o compromisso assumido pelos EUA é pouco mais do que um quarto (não quatro vezes mais: um quarto) do buraco de 9700 milhões de euros que o Ministério Público diz ter sido deixado nas contas do Banco Insular pela equipa de José Oliveira e Costa. Claro?
É verdade que todos estes países dizem que isso será apenas o início e dizem-se dispostos a multiplicar estas verbas por dez para chegar à redonda verba de 100.000 milhões por ano, mas ninguém se atreveu a assumir essa verba como um verdadeiro compromisso. É apenas “um objectivo”. E um objectivo ridiculamente escasso.
Será Copenhaga, como dizem tantos políticos, pelo menos “um passo no bom sentido”? É preciso algum cinismo para o dizer, porque enquanto o dizemos há milhões que morrem devido à fome, à sede e a catástrofes naturais cujos efeitos poderiam ser mitigados pelo empenhamento internacional e há muitos mais milhões que sabemos que vão morrer devido à nossa inacção.
Será que, se encontrarmos uma pessoa que está a morrer de sede e formos buscar água à fonte, estamos a ir na direcção certa? Certamente. Mas se depois nos sentarmos à frente dessa pessoa, com a água que fomos buscar nas nossas mãos, e observarmos a sua agonia enquanto morre de sede, será que podemos dizer que demos de facto um passo no bom sentido? Será que fazer a milésima parte do caminho que temos de fazer para obter os resultados que temos a responsabilidade de alcançar é um passo no bom sentido? Não será antes a mais vergonhosa das acções? Não será isso não só não fazer o que nos manda a consciência, como, para mais, encobrir essa falha com uma monstruosa mentira, a mentira de que “estamos a dar passos no bom sentido”?
A constatação que se impõe fazer depois de Copenhaga é que, para os líderes mundiais que elegemos ou suportamos, o nosso futuro vale pouco, os nossos filhos valem pouco e os filhos dos outros não valem nada. Nos anos 70 dizíamos com assombro que o homem tinha conseguido reunir instrumentos de destruição suficientes para destruir a vida na Terra em poucos minutos. Mas, pelo menos, esses instrumentos de destruição foram mantidos dentro da caixa. Copenhaga constituiu outro marco: o momento em que a nossa capacidade de destruição, em curso, demonstra ser muito maior do que a nossa vontade para inflectir o seu curso. Haverá sinal mais claro de decadência? (jvmalheiros@gmail.com)
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