por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009
Texto publicado no jornal Público a 8 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009
Um crime grave: Haidar deixou em branco o campo da nacionalidade no impresso da polícia fronteiriça…
A ilha canária de Lanzarote é conhecida como destino turístico e por ser a residência de José Saramago, mas, nas últimas semanas, tem aparecido no noticiário internacional por outra razão: numa sala do aeroporto da ilha, mergulhada num estado de extrema debilidade, a activista sarauí Aminetu Haidar está em greve de fome desde o dia 16 de Novembro, sem ingerir senão água com açúcar. A sua situação clínica é preocupante, tanto mais que a sua saúde, fragilizada por muitas prisões e torturas – esteve “desaparecida” nas prisões marroquinas durante quatro anos –, já há muitos anos que não é robusta. Haidar, cuja luta pacífica em defesa dos direitos humanos e da autodeterminação do Sara Ocidental, ocupado por Marrocos desde 1975, são reconhecidos e respeitados em todo o mundo, iniciou a sua greve da fome depois de ter sido expulsa de Marrocos, no dia 14.
Haidar tinha regressado no dia anterior de uma viagem a Nova Iorque, onde tinha ido receber mais um dos muitos prémios que já recebeu pela sua defesa dos direitos humanos, e tinha acabado de aterrar no aeroporto de Laâyoune, a capital do Sara Ocidental, quando foi detida pelas autoridades, lhe foi confiscado o seu passaporte, foi acusada de “traição” e embarcada à força num avião para as Canárias. Pela sua militância independentista? Não. A acusação, neste caso, deveu-se ao facto de ter deixado em branco o campo da nacionalidade no impresso da polícia fronteiriça e escrito como local de residência “Sara Ocidental”.
Crimes graves para o regime de Mohammed VI, que tem endurecido nos últimos meses as suas posições contra os independentistas. Num discurso feito n início do mês passado, precisamente para comemorar os 34 anos da “Marcha Verde” – a designação oficial para a anexação do Sara Ocidental – o monarca marroquino deixava bem clara a opção: “Ou se é um patriota, ou se é um traidor. Não há meio-termo. Não se podem gozar os direitos e privilégios da cidadania para abusar deles e para conspirar com os inimigos da mãe-pátria.”
Aminetu Haidar é apenas o exemplo mais visível da nova política e Marrocos parece decidido a levar o exemplo até ao fim. O Governo espanhol de Zapatero, por seu lado, joga o jogo dúplice e vergonhoso de manter o discurso da defesa dos direitos humanos desde que isso não ofenda os poderosos. Ofereceu asilo a Haidar, mas não quer ofender o ditador de Marrocos. E fala com a voz suave da mais indefensável cobardia, a cobardia de quem se põe ao lado de uma ditadura que impõe uma medida ilegal contra uma cidadã indefesa que apenas pode ser causada por um crime de opinião.
A posição de Espanha é infame. O que esperam os outros países da União para salvar a honra da Europa? O que falta à Europa para perceber que, se não é pelos direitos humanos, sempre e em todas as circunstâncias, não é nada senão uma casca vazia? A comissária europeia para as Relações Externas, Benita Ferrero-Waldner, lamentou a situação e mostrou-se preocupada com a “deterioração do estado de saúde” de Haidar, mas considerou que se tratava de “uma questão bilateral” entre Madrid e Rabat. Desde quando é que os direitos humanos são “uma questão bilateral”?
José Saramago, António Guterres e José Ramos-Horta estão entre os muitos que já manifestaram a sua solidariedade a Aminetu Haidar, que mostra a sua vontade de ferro de sempre e que continua a recusar alimentação. O que exige? Regressar ao seu país. Um direito que todas as leis reconhecem. É assim tão difícil dizer a Marrocos que deve parar de tremer de medo perante esta mulher? É assim tão difícil dizer a Marrocos que, se quer entrar no clube das democracias, tem de respeitar a lei? É assim tão difícil defender a justiça mesmo a partir do conforto dos gabinetes, quando mulheres como Aminetu Haidar arriscam a sua vida todos os dias? (jvmalheiros@gmail.com)
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