por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009
Esta foi a década em que vimos mais caras de pessoas que sabíamos que iam morrer
Fim de ano é tempo de balanço do passado e de votos para o futuro. Fim de década é tempo de dez vezes mais balanços e, por amor à simetria, mãe da ordem, da beleza e da verdade, de tentativas de escrutinar os próximos dez anos – como se isso fosse preciso para equilibrar o olhar que lançamos para trás, para nos garantir que não vamos ficar presos para sempre no passado, com o pêndulo do relógio atolado no lodo negro daquilo que já passou, e que poderemos seguir em frente. Fazemo-lo ainda que saibamos como é fútil pretender espreitar o futuro, como a década passada mostrou (quem adivinhou no ano 2000 o dia 11 de Setembro do ano seguinte?), como num exorcismo divinatório, através do qual tentamos pelo menos evitar o pior e sugerir o melhor, atirando umas sementes de optimismo para a frente do caminho.
É claro que a primeira década do terceiro milénio desta era só acaba no fim de 2010, mas o milénio mítico começou em 2000, quer gostemos quer não, e por isso toda a gente se lançou alegremente no exercício decenal em 2009.
Que a década passada não deixa saudades no Ocidente à maior parte dos observadores parece claro, ainda que a situação seja diferente na China, onde cada ano arrancou umas quantas dezenas de milhões de indivíduos ao oceano da pobreza. Para mim, a década que está a acabar, nascida, como o século e como o milénio, a 11 de Setembro de 2001, é a década do medo. O medo do terrorismo, claro, mas mais do que isso.
O medo que nasce da consciência da total desprotecção perante o ódio, o medo que nasce da consciência desse ódio ubíquo que não percebemos, mas também o medo instrumental, estimulado pelos poderes para aumentarem a sua força e ampliarem o seu raio de acção, o medo que faz homens livres prescindir da liberdade em troca de uma ilusória segurança. O medo que faz pessoas normalmente justas e sensatas e sociedades tradicionalmente democráticas aceitar que em certos casos se deve pôr a liberdade, a justiça e a humanidade na gaveta para reduzir o perigo – como se isso reduzisse o perigo e como se pudesse haver um mundo, digno de ser salvo, sem liberdade, sem justiça e sem humanidade.
A década que passa foi também a década da Internet e da informação global, a década em que, mais do que em qualquer outra década da história do mundo, soubemos o que se passava do outro lado do planeta, soubemos quantos homens como nós morreram em guerras sem sentido e quantas crianças como os nossos filhos morreram de fome.
Esta foi a década da desigualdade social crescente, dos 200 milhões de trabalhadores desempregados, da deslocalização das empresas, do império da rentabilidade económica, da alienação dos direitos e da dignidade dos trabalhadores por medo do desemprego e da fome. Esta foi a década em que vimos na televisão e na Internet mais caras de pessoas que sabíamos que iam morrer e foi a década em que não fizemos nada por elas. Esta foi a década em que nos comprometemos a acabar com a fome e com a pobreza e em que percebemos que não o íamos fazer – por comodismo e por cobardia.
Esta foi a década em que nos comprometemos a proteger o globo para as gerações futuras e em que percebemos que não o iríamos sequer tentar fazer – a não ser quando já for tarde de mais. Esta foi a década em que percebemos que não é por não sabermos que não agimos. É porque não queremos. Esta foi a década em que percebemos que não é só dos outros que devemos ter medo. É de nós. (jvmalheiros@gmail.com)
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