terça-feira, setembro 14, 2004
Call center
Texto publicado no jornal Público a 14 de Setembro de 2004
Crónica 32/2004
“Não precisa de saber quem eu sou para me dizer a vossa morada.”
“Bom dia, fala a Sandra, em que é que lhe posso ser útil?”
“Bom dia, é da Companhia de Seguros Oriental?”
“É sim, bom dia, fala a Sandra, posso saber com tenho o prazer de estar a falar?”
“Precisava de saber a vossa morada por favor.”
“Mas posso saber com quem estou a falar?...”
“Não precisa de saber o meu nome… Só preciso de saber a vossa morada...”
“É pra poder tratar o senhor pelo nome, com um tratamento mais personalizado…”
“A única informação de que preciso é a vossa morada, para mandar uma carta. É uma informação pública, não precisa de saber quem eu sou para me dizer a vossa morada…”
“É só pra poder tratar o senhor pelo nome, com um tratamento mais personalizado…”
“Isto é uma gravação?...”
“Não, eu já disse ao senhor que fala a Sandra…”
“O Hal também tinha um nome mas isso não o impedia de… Não interessa. O que lhe estou a dizer é que não precisa de saber o meu nome e mesmo que lhe diga o meu nome isso não torna o atendimento mais personalizado. Se nós tivéssemos de facto uma relação pessoal, seria razoável dizer-lhe o meu nome porque você me iria reconhecer. Como não nos conhecemos, não é o facto de eu lhe dizer o meu nome que vai personalizar a nossa relação. Além de que eu não quero personalizar a minha relação consigo e algo me diz que você também não. Percebe? O facto de me perguntar o meu nome só quer dizer que você está a olhar para um monitor onde está escrito que me deve perguntar o nome ou alguma coisa do género. O que não só não é pessoal como é até bastante impessoal e até um bocadinho desagradável….
“Eu acho que não estou a ser desagradável para o senhor… Se o senhor não quiser dizer o nome não tem de dizer o nome, mas é só para poder tratar o senhor pelo nome e se não me disser o nome não o posso tratar pelo nome…”
“É evidente que não pode…”
“É só o que eu estou a dizer ao senhor… Eu disse ao senhor o meu nome…”
“Sim eu sei. Sandra. Mas isto não é um baile de debutantes, não precisamos de nos apresentar uns aos outros antes de fazer uma pergunta.”
“…Eu acho que estou a ser correcta com o senhor… Eu estou só a perguntar ao senhor o nome do senhor porque…
“ Para o tratamento personalizado, já sei… (suspiro) José Vítor Malheiros!...”
“Bom dia senhor Zé, em que posso ajudá-lo?”
“Tem a certeza de que isto não é uma gravação? Eu…”
“ Não é uma gravação senhor Zé, eu estou a falar com o senhor a perguntar em que posso ser útil ao senhor, senhor Zé…”
“…só queria saber a vossa morada.”
“Em que localidade, senhor Zé?”
“A morada da vossa sede, Suponho que é em Lisboa, mas não sei se é.”
“Mas nós temos muitas agências e sem me dizer a cidade…”
“Lisboa!”
“Temos muitas moradas em Lisboa. Tem preferência pela rua, senhor Zé?”
“Tenho. A rua onde está a vossa sede. Quero-mandar-uma-carta!”
“Posso saber se é um assunto relativo a seguro de vida, automóvel, de acidentes pessoais…”
“Ouça, Sandra. Acho que já percebi esta questão do tratamento personalizado… Em vez de estarmos aqui a falar ao telefone porque é que não nos encontramos pessoalmente? Isso ia ser muito personalizado. Aí eu podia explicar-lhe pessoalmente porque é que quero escrever a carta, podíamos discutir a epistolografia no século XVIII e, quem sabe, com o tempo, à medida que nos fôssemos conhecendo melhor, talvez conseguisse convencê-la a dar-me a morada. Não digo no primeiro encontro porque estas coisas às vezes levam o seu tempo, mas talvez no segundo ou terceiro… O que me diz, Sandra?…
“… eu só estou a perguntar ao senhor Zé… e acho que estou a ser correcta com o senhor Zé…eu não disse ao senhor Zé que não dava a morada ao senhor Zé…”
“Claro que não disse. Aliás ainda não me disse nada. Mas o que acha do meu convite? Acha que se pode escapar amanhã para nos encontrarmos? Eu podia levar um cravo na lapela para me reconhecer… ou acha muito marcado politicamente? Uma gabardine! Posso levar uma gabardine! Já ninguém usa gabardine. Ou um chapéu de coco. Ia ser fácil reconhecer-me. Acha que podia levar a morada escrita numa folhinha de papel e, se simpatizasse comigo…”
“A morada da sede é…”
terça-feira, setembro 07, 2004
Borndiep
Texto publicado no jornal Público a 7 de Setembro de 2004
Crónica 31/2004
Os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos.
Regressar de um período de férias sem contactos com a realidade portuguesa para mergulhar de novo na actualidade nacional tem com frequência o sabor de um duche de água fria.
A primeira surpresa do regresso foi que o ministro Paulo Portas decidiu (invocando a segurança nacional, a defesa da ordem e a saúde pública) enviar a Marinha de Guerra impedir a entrada em águas territoriais portuguesas de um navio-clínica holandês com meia dúzia de tripulantes, que realiza abortos em águas internacionais, de acordo com a lei do país sob cuja bandeira navega. Deve registar-se como gesto imbuído de alguma racionalidade que o ministro tenha decidido não confiar apenas na Nossa Senhora de Fátima para afastar o navio das nossas costas e tenha recorrido às Forças Armadas. Só que o gesto provavelmente deve mais ao gosto do ministro pelos gestos de opereta que à sua distância do anti-racionalismo.
Que Paulo Portas e o seu partido são contra o aborto já se sabe e essa posição é, em princípio, respeitável. O que é menos respeitável é que um membro do Governo (para mais extravasando as suas funções no que respeita à jurisdição do Presidente da República) venha invocar falsos argumentos para limitar de uma forma inaceitável a liberdade de movimentos de um navio de um país da União Europeia, tripulado por elementos que não são (que se saiba, pelo menos tal não foi invocado) criminosos internacionais.
Que os argumentos invocados podem ser objecto de discussão jurídica é evidente. É claro que um país pode impedir o acesso de um navio que coloque de facto problemas de segurança ou de saúde pública. A questão neste caso, porém, não é de interpretação jurídica mas de substância política. Não é possível sustentar de forma séria que a presença do navio coloca em risco a soberania nacional ou suscita problemas de saúde pública. A ordem de Portas é uma medida autocrática, onde uma limitação das liberdades de uns quantos cidadãos europeus é ditada por razões exclusivamente ideológicas e defendida publicamente com base numa mentira popular. A prática tem seguidores notáveis, de Bush a Putin, em particular nesta era “anti-terrorista”, onde de novo os meios justificam os fins.
A questão que se coloca em relação ao “Borndiep” é simples: o navio ou algum dos seus tripulantes violou a lei portuguesa? Há razões concretas para recear que isso aconteça? Não havendo é evidente que a sua liberdade de movimentos não pode ser limitada. Dizer que o navio não violou a lei mas a contorna e que isso justifica a limitação dos direitos cívicos dos seus tripulantes é regressar aos tempos em que tudo o que não era expressamente permitido devia por uma questão de prudência ser considerado proibido.
E se é esse o argumento que dita a razão do Governo não se percebe a razão por que, usando o mesmo critério, não há-de também perseguir aqueles que conseguem pagar menos impostos através de habilidades legais para contornar as leis fiscais. O Estado de Direito não pode ser um jogo de plasticina à mercê de uma criança caprichosa e os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos. O instrumento é brutal, desproporcionado em relação à “ameaça” e o seu uso gratuito um insulto ao papel das Forças Armadas.
É tristemente significativo dos tempos que, num inquérito feito pelo PÚBLICO, cerca de 40 por cento dos respondentes tenha concordado com Portas (imagina-se que exaltados com os arroubos de patriotismo do prócer ou simplesmente discordantes das práticas do navio holandês). Os argumentos nacionalistas colhem sempre um apoio desproporcionado em relação à sua verdade, sensatez ou bondade e Portas é pródigo na sua aspersão. Seria bom que eles fossem sistematicamente desmontados desde a sua origem pela oposição. Os atentados à liberdade e os atropelos à lei, principalmente quando são feitos apelando ao patriotismo (e mesmo quando são discursos de opereta em voz de falsete), não podem ser acolhidos com um encolher de ombros displicente. A história está cheia de palhaços trágicos que gostavam de puxar da pistola.
terça-feira, agosto 10, 2004
Beba mais um copo
Texto publicado no jornal Público a 10 de Agosto de 2004
Crónica 30/2004
Temos a sorte de a ideia ter surgido numa altura em que ao volante do país está alguém que não hesita em carregar no acelerador.
A ideia vem da Grã-Bretanha e tem a virtude de ser uma solução imaginativa e eficaz a baixo custo. A descoberta foi feita por acaso, como aconteceu com tantas outras revoluções científicas, mas isso não lhe deve retirar o brilho.
O facto conta-se em duas palavras: a Environment Agency do Reino Unido constatou que a água potável que os britânicos andam a beber contém pequenas quantidades de Prozac, a famosa droga anti-depressiva. Aparentemente, isso deve-se ao facto de o consumo da droga estar a aumentar de forma acentuada e de os seus utilizadores excretarem parte do medicamento sem este ser metabolizado. Essas moléculas vão dar aos esgotos e, depois de passarem pelas estações de tratamento, tornam a entrar no sistema hídrico, a partir de onde reentram no sistema de recolha e distribuição de água a domicílio, para chegar às torneiras. O tratamento dos esgotos deveria eliminar todos os resíduos de Prozac, mas não é isso que acontece. Segundo a Inspecção da Água Potável do Reino Unido (Drinking Water Inspectorate) a quantidade de Prozac presente na água é por enquanto demasiado pequena para fazer efeito. Porém, considerando que os anti-depressivos são um dos grupos de medicamentos onde o consumo mais cresce (no Reino Unido e em Portugal), é evidente que a concentração irá crescer. A própria Environment Agency mostra-se preocupada com o facto pois, se a quantidade ingerida é pequena, a verdade é que a administração é contínua e ninguém sabe quais poderão ser os efeitos. Os Democratas Liberais dizem que se trata de uma “administração maciça e encoberta de medicamentos” à população e os ambientalistas também entraram em histeria (sinal de que não estarão a beber água suficiente), mas onde tantos vêem razões para alarme não há motivo para nós não vislumbrarmos uma oportunidade.
Desde há décadas que a água de consumo público e os alimentos têm sido utilizados para administrar de forma generalizada substâncias de que uma dada população carece. Os casos mais conhecidos são os do flúor, adicionado à água para combater as cáries, ou o iodo, adicionado ao sal para combater o hipertiroidismo nas regiões onde este é endémico, para não falar dos suplementos revitalizantes administrados nas rações de combate dos soldados americanos. Ora se isto é assim, por que não começar a adicionar Prozac na água da rede portuguesa? Não estamos todos deprimidos, os nossos neurónios não estarão carentes de serotonina como de pão para a boca, tanto ou mais do que os dos ingleses? A medida poderia fazer hesitar políticos mais convencionais mas temos a sorte (quem sabe se não mais uma feliz intervenção de Nossa Senhora) de a ideia ter surgido numa altura em que ao volante do país está alguém que não hesita em carregar no acelerador e que não permite que a sua energia seja sorvida pelo vórtice estéril da reflexão. O momento de avançar é agora, tanto mais que os próprios peritos não sabem se existe ou não alguma contra indicação. Haverá algum mal em dar um pouco de descontracção aos portugueses, em deixá-los usufruir de um pouco de felicidade, pelo menos nestes meses de férias? O custo pode ser negligenciável se se usarem genéricos e deve ser tomado em conta que, a partir de um certo teor de Prozac na água (massa crítica) o círculo virtuoso se pode alimentar a si próprio numa reacção em cadeia. Podemos ser felizes! E não há razão para ficar por aqui. Porque não juntar um pouco de Viagra no cocktail para tornar as nossas conversas mais animadas? E porque não um pouco de nandrolona para dar um pouco de cabedal? Reparem que não sugerimos o recurso a substâncias ilegais (a nandrolona é apenas proibida aos atletas), mas apenas a medicamentos aprovados pelo Infarmed.
Porque é que o Governo não usa o seu poder para aumentar a felicidade dos portugueses da única forma que sabe? É que disto nós sabemos que o nosso Governo é capaz e não há razão para colocar a nossa felicidade num objectivo inatingível como o desenvolvimento ou a justiça social – noções aliás cuja simples definição pode gerar os conflitos mais violentos. Sobre o Prozac estamos todos de acordo.
terça-feira, agosto 03, 2004
A política pimba
Crónica 29/2004
O estilo de Santana Lopes é descontraído e isso é percebido pelos cidadãos como um ganho – e de certa forma é.
Um dos grandes mistérios da governação portuguesa acaba de ser esclarecido graças a uma investigação do jornal “24 Horas”.
Até ontem, ninguém senão os íntimos do poder sabiam o que era uma estranha pulseira que Santana Lopes vinha ostentando no pulso direito. Seria um objecto de joalharia? Um amuleto haitiano? A pulseira de elástico do vestiário da piscina do Tamariz onde Santana teria esquecido a sua roupa? Estaria o primeiro-ministro a testar um modelo de pulseira electrónica para presos preventivos? Estaria Santana Lopes sujeito a uma medida de coação cuja divulgação tinha sido ciosamente defendida da rapacidade dos media? Seria a chapinha metálica que se via no seu pulso o meio de que se estariam a servir alienígenas para comandarem à distância o nosso primeiro-ministro, como defendiam alguns (o que justificaria a latência na leitura dos discursos)?
Toda esta história é naturalmente ridícula mas os gestos de Santana Lopes são-no frequentemente. O que é de notar é que eles são merecedores de notícia (sempre foram, mas são-no mais ainda desde que SL se guindou à testa dos destinos da nação) e que essas notícias se encontram fora do circuito informativo sério, fora do meio do noticiário político, fora do meio dos líderes de opinião. Elas não deixam por isso de influenciar a opinião pública e de criar adeptos que se revêem em alguém cujos gostos conhecem.
É sabido, desde que os americanos reinventaram as eleições, que os políticos precisam de se apresentar ao eleitorado como pessoas, com gostos próprios, famílias, sentimentos, “hobbies” e até fraquezas (vide Clinton). Em Portugal, porém, a vida pessoal dos políticos sempre andou tão afastada dos holofotes noticiosos que muitos dos nossos dirigentes são para a maior parte dos eleitores simples figurantes de telejornal. Atrevemo-nos no Verão a perguntar-lhes a que praia vão e qual o restaurante preferido e pouco mais. E, no entanto, é normal que os eleitores queiram saber que autores lê o primeiro-ministro, de que música gosta, que amigos tem, o que mais o irrita e o que faz nas férias. Porque tudo isso revela a pessoa e afinal votamos em pessoas.
Santana Lopes não tem vida cultural mas tem pulseiras e festas e óculos de sol e uma vida sentimental que as pessoas pensam conhecer e isso basta para criar um sentimento de proximidade.
Não interessa se isso é feito de uma forma pimba ou refinada, se incendeia a imaginação de intelectuais ou caixeiras. Interessa que vende e tem seguidores. Como a música pimba. O estilo de Santana Lopes é descontraído e isso é percebido pelos cidadãos como um ganho – e de certa forma é.
Tudo isto tem consequências políticas. A alternativa política a Santana Lopes não pode apresentar-se no plano eleitoral com uma sisudez franciscana de gato-pingado (para demonstrar que é diferente e séria), nem pode tentar bater Santana no palco do “entertainment” (para demonstrar que pode ser igual e divertida). Há que encontrar uma posição que seja alternativa em política e que consiga simultaneamente aproximar-se do eleitorado.
Algo que já seria um ganho seria, por exemplo, um líder político alternativo que usasse uma pulseira da moda mas sem poderes mágicos.
terça-feira, julho 27, 2004
Barack Obama
Ler no Washington Post ou no site da Convenção.
Ortografia
Texto publicado no jornal Público a 27 de Julho de 2004
Crónica 28/2004
A ortografia é uma narrativa, diz-nos quem são as palavras, de onde vêm e por vezes até para onde vão.
O editor espanhol Mario Muchnik costuma dizer que o caminho dos campos de concentração começa por um erro ortográfico. Trata-se é claro de uma “boutade”, género em que o personagem em causa é versado e pródigo, mas há nela algo de profundamente certeiro. Não porque o respeito da ortografia seja um sinal de veneração pela regra e porque isso seja bom, mas porque a ortografia é, pelo contrário, o respeito da história, da nossa cultura, dos relatos, da memória e dos sonhos. Mais do que algo que se pretenda impor-nos, a ortografia é o que somos.
Cada palavra é um fóssil profundamente humano e um desafio à curiosidade e à criação, um laço entre o passado e o futuro. A ortografia é ela própria uma narrativa, contém uma história, diz-nos quem são as palavras, de onde vêm e por vezes até para onde vão – que é mais do que alguma vez saberemos de nós próprios. A grafia evolui, como tudo, em contínuo ou aos saltos, às vezes com golpes de Estado (como os acordos ortográficos), outras com revoluções populares que transformam sanduíches em sandes, é enriquecida por corrupções às vezes com sentido, ricas e imaginativas, que conquistam os seus espaços, definindo novas ortodoxias simultaneamente democráticas e meritocráticas, onde o uso manda e os peritos arbitram.
Mas se a ortografia vive uma perpétua mutação, é evidente que nem todas as cambiantes são aceitáveis, imaginativas e justificáveis. E muitas surgem por pura ignorância e pertencem ao domínio da calinada arrogante que não sabe, não quer saber e tem raiva a quem sabe - como Goering quando ouvia falar de cultura.
Nos últimos anos, com a expansão do acesso aos meios de comunicação (do lado dos produtores e dos consumidores) e a explosão de mensagens, o panorama mediático poluiu-se com tais atropelos à ortografia (falo apenas no sentido estrito da correcta escrita das palavras) que se tornou capaz de injectar a dúvida nos mais letrados.
Mesmo “slogans” de empresas que se imagina deverem passar pelo mais exigente crivo de competências deixam passar estas pequenas infâmias (o “Sempre ao seu dispôr” [sic], que o Modelo-Continente usou durante anos), assim como títulos de filmes (“Exterminador Implacável 3 - A Ascenção [sic] das Máquinas”) e a publicidade às empresas mais reputadas ("Diriga-se [sic] já a um balcão Totta", publicidade num “outdoor”). Os exemplos podem multiplicar-se: uma empresa de recolha de entulhos tem contentores em Lisboa onde se vê escrito “Os golutões [sic] do entulho”, o “Jornal de Negócios” faz uma campanha onde diz "Não substime [sic] a importância de uma boa parceria"; outra empresa envia comunicados assinados pela "Acessoria [sic] de Imprensa". Uma cadeia de restaurantes de comida a peso chama-se “À grama” como se quisesse incentivar-nos a lançar-nos sobre a relva em vez de se preparar para nos vender comida ao quilo e ao grama. Um grande empreendimento imobiliário escolhe para designação “Quinta do Perú [sic]”. Claro que um simples dicionário podia ajudar estas pessoas, mas para quê consultar dicionários quando elas já sabem como é que as coisas se escrevem?
A ortografia é importante porque encerra uma parte da história das palavras e da relação entre elas. A grafia das palavras contém uma biblioteca de relações, um jogo de reflexos, um rasto pleno de significados, um mundo hipertextual cheio de “links”, que permitem saltar de significado para significado num jogo sem fim. E a verdade é que “ascenção” já deixou de ter alguma coisa a ver com o ascensor – ainda que a corruptela “acessoria [sic]” seja plena de novos significados talvez mais de acordo com o que se espera dela.
Enquanto noutros países as classes dominantes fazem gala da sua competência e apostam numa preparação de escol, em Portugal as nossas pindéricas elites políticas ou empresariais apostam na displicência, na descontracção, dizem “pugama” e “pecebe”, não estudam muito e apesar disso até chegam ao Governo, desde que tenham os pais certos e escolhido bem os amigos. O amor das palavras está bem longe disso. A ortografia vai tornar-se certamente cada vez mais criativa.
terça-feira, julho 20, 2004
S. Bento “light”
Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Julho de 2004
Crónica 27/2004
À primeira vista, o que transparece da estrutura do Governo de Santana Lopes (uma expressão a que temos de nos habituar, apesar de parecer uma contradição nos termos) pode fazer sentido e até parece conter uma ideia mobilizadora. Autonomizar o Ambiente e o Turismo e dar-lhes dignidade de ministérios poderia até corresponder a uma aposta estratégica no turismo e na qualidade de vida – o que é, em princípio, razoável e até atraente.
Só que, como que para demonstrar a vacuidade de pensamento de Santana Lopes e que este tanto pode dizer uma coisa como o seu contrário conforme o momento e o interlocutor, acontece que o novo primeiro-ministro tinha acabado de lançar a sua ideia da “descentralização” do Governo, provando que não há na sua mente nenhuma verdadeira reflexão (ou convicção) sobre a valorização do território, sobre aquilo que serão os novos eixos de acção governativa ou sequer sobre a forma como os seus ministérios se devem articular.
Significativamente, os ministros “de fora de Lisboa” também desapareceram até à tomada de posse, como irão desaparecer ao longo da semana muitos outros “sound bytes” lançados nos telejornais da noite, sempre inesperados para poderem ser confundidos com ideias inovadoras, mas capazes de convencer os mais distraídos de que está ali um homem inventivo, activo, optimista e voluntarista, desenvolto, sem preconceitos e sempre ansioso por dar um passo em frente.
É toda esta chuva de ideias surpreendentes e polémicas, de casinos e túneis, que poderá fazer com que os media se tornem “aliados objectivos” do consulado de Santana Lopes (sejam seus partidários ou não). É que é da natureza dos média estarem sempre famintos de novidades e gostam tanto delas quanto mais originais elas forem, quanto mais superficialmente puderem ser apresentadas e quanto mais rapidamente se sucederem umas as outras. Santana Lopes é um político instantâneo: basta juntar água e sai uma manchete. E é, por isso, a maravilha dos telejornais e da imprensa popular. A atracção entre os dois é como a da chama e a borboleta, ambos se consomem na paixão do efémero.
A “descentralização” foi um bom exemplo. Santana Lopes nem sequer prometeu instalar a secretaria de Estado do Turismo em Faro ou o Ministério da Economia no Porto – tratou-se de puro verbo. Bastou dizer que considerava essas medidas admissíveis, atirando a ideia para cima da mesa no meio de uma entrevista. Isso foi suficiente para ouvirmos autarcas entusiásticos, cheirando a proximidade de um poder mais permeável, outros reivindicando a implantação nas suas coutadas, tudo acompanhado dos inevitáveis inquéritos “Acha bem que o Ministério dos Negócios Estrangeiros vá para o estrangeiro?” com que todos nos pudemos entreter.
Alguém tentou discutir alguma coisa com seriedade? Pode dizer-se que não valia a pena, porque as pessoas sérias sabiam que era a brincar e as outras não estavam interessadas numa discussão séria, mas o espaço público foi ocupado por esse fogo-fátuo.
Que as notícias têm um valor de entretenimento já se sabe, como se sabe que essa face dos media se tem reforçado enormemente nos últimos tempos, com a consequente redução do espaço de intervenção cívica, de debate sério, de reflexão, de construção de opinião pública. O que é necessário ter presente é que o valor de Santana Lopes como “entertainer” é imenso e que esse valor é directamente proporcional à dificuldade que os media vão ter em fazer jornalismo ou análise política (digamos “análise das políticas”, para sermos mais claros) de forma eficaz.
O populismo (e Santana Lopes) não só garante representar os verdadeiros interesses do homem comum, como gosta de afirmar que os problemas são fáceis de equacionar e de resolver e que só é preciso vontade para o fazer (“8 meses para tratar do Parque Mayer!”). Se nada foi feito antes a culpa foi dos outros, da oposição, de Espanha, da Europa, dos intelectuais, dos políticos, dos grupos de estudo, dos emigrantes, da legislação que obriga a estudos de impacto ambiental e não deixa as coisas andar para a frente... O populismo substitui o bom senso pelo senso comum, a erudição e a análise pelo sentir do homem da rua – daí a necessidade de Santana Lopes se apresentar como um homem simples, que “fala com o coração ao pé da boca”, que “pensa como nós”.
Se é um dever do jornalismo mostrar como funciona o mundo, explicar os acontecimentos e dar voz a perspectivas diferentes para dar instrumentos ao público para que este forme a sua opinião, é evidente que a sua tarefa será particularmente pesada quando concorre na ocupação do espaço público com alguém cujos princípios não o obrigam a retratar a realidade com a mesma preocupação de fidelidade, independência ou profundidade e que tenta agir antes de mais não sobre o real mas sobre a sua representação – sobre o próprio espaço mediático, onde se ganham as eleições. Onde a imprensa tenta ser realista, o populista fornece uma narrativa simples e emotiva, desculpabilizadora e adormecente. O debate democrático é apresentado como confuso ou elitista, as consultas democráticas como perdas de tempo, a negociação como fraqueza, a reflexão como hesitação, a análise como estéril exercício intelectual. O populismo não tem um programa, uma ideologia, não tem sequer uma estratégia - é uma táctica de conquista e manutenção do poder.
O consulado de Santana Lopes coloca, por isso, um particular desafio aos jornalistas em particular. No fundo, vamos ter de concorrer com mais um tablóide sensacionalista e uma revista cor-de-rosa que faz sonhar. Só que, desta vez, eles estão em S. Bento.
terça-feira, julho 13, 2004
Tempos interessantes
Texto publicado no jornal Público a 13 de Julho de 2004
Crónica 26/2004
O facto de Jorge Sampaio ser o Presidente de todos os portugueses não o obriga a tornar-se o lugar do vazio da política.
Nos últimos dias, os portugueses tiveram ocasião de ver amplamente justificada a sua desconfiança em relação aos políticos. Depois de terem escolhido Durão Barroso para primeiro-ministro, vêem-no abandonar inesperadamente o Governo a meio mandato e propor como substituto um Santana Lopes que ninguém elegeu para tal; depois de terem elegido Santana para presidente da Câmara de Lisboa, vêem-no abandonar o cargo a meio mandato para ser substituído por não se sabe quem; depois de terem elegido um presidente em nome de um passado político e dos seus valores de esquerda, vêem-no adoptar uma posição que apenas pode ser justificada em nome de uma leitura estreitamente jurídica e tecnocrática da política; e, finalmente, vêem o líder da oposição abandonar o seu cargo dias depois de ter garantido que iria manter-se à frente do seu partido e disputar a sua liderança aos rivais. É rara tal enxurrada de desprezo pelos compromissos pessoais e pelos eleitores. Para tornar a situação ainda mais deprimente, aconteceram as mortes de Sophia e de Maria de Lourdes Pintasilgo, dois exemplos luminosos de participação cívica, como se o céu nos quisesse confirmar que se avizinham tempos negros para a cidadania.
Perante a decisão de Sampaio houve quem tenha sido lesto a dizer que o presidente tinha traído a sua base eleitoral, o que não pode deixar de ser considerado como um disparate. A base eleitoral de um presidente dissolve-se no momento da sua eleição e este não deve nenhuma “lealdade qualificada” àqueles que o elegeram. Para o Presidente da República só há portugueses – todos iguais e dignos da mesma lealdade.
O que é verdade, porém, é que o facto de Jorge Sampaio ser “o Presidente de todos os portugueses” não o obriga a ser o seu mínimo denominador comum ou a apagar as suas convicções e valores até se tornar o lugar do vazio da política. Quando os portugueses escolheram Sampaio elegeram não um notário mas um líder político – e um líder vindo da esquerda, com valores bem definidos e claramente apresentados ao eleitorado. Não se espera de um tal líder que faça uma guerrilha institucional a um Governo de direita, longe disso, mas que, nos momentos em que é chamado a escolher, o faça de acordo com os seus valores.
Ao eleger uma pessoa de esquerda como Presidente esperamos que esse presidente privilegie (com maioria de razão nos casos de dúvida sobre o melhor caminho a seguir, quando as opiniões dos cidadãos estão divididas e quando de ponto de vista legal todas as opções são possíveis) princípios democráticos sobre princípios oligárquicos, escolhas eleitorais sobre escolhas dinásticas, a democracia sobre a tecnocracia, a soberania do povo sobre a soberania dos partidos, a opinião das eleições à opinião dos patrões. A escolha de Sampaio é legítima, mas é uma escolha distante dos valores pelos quais foi eleito. Se ela fornecesse uma garantia de estabilidade, poderia ser defendida – mas essa estabilidade não está garantida. Além de que um democrata de esquerda não pode hesitar se tiver de escolher entre a estabilidade e a democraticidade (ainda que haja questões de grau que têm de ser equacionadas). Essa é precisamente uma das linhas divisórias entre a esquerda e a direita.
A inopinada demissão de Ferro (compreensível mas inaceitável de um líder da oposição no momento em que toma posse o que ele considera o pior governo de sempre) é o único gesto que pode dar razão “a posteriori” ao gesto de Sampaio. Será que alguém que desiste como Ferro o fez poderia ser um bom chefe de Governo? Se acrescentarmos essa dúvida de Sampaio a todas as outras poderíamos encontrar um argumento em favor da sua decisão. Mas, nesse caso, Sampaio teria de fazer essas considerações “ad hominem” em relação também a Santana Lopes – e estas não seriam vantajosas ao homem do PPD-PSD. A não ser que o presidente quisesse com a sua decisão proteger o Partido Socialista do risco de formar um Governo fraco – mas claro que essa razão seria inaceitável para o Presidente de todos os portugueses.
Olhe-se de que lado se olhar, a decisão de Sampaio foi errada – mas, paradoxalmente, pode acabar por ser uma bênção para a oposição, se esta aproveitar o tempo para se organizar e souber responder taco a taco, didacticamente, às investidas demagógicas de Santana, que já começaram.
terça-feira, junho 29, 2004
O golpe
Texto publicado no jornal Público a 29 de Junho de 2004
Crónica 25/2004
Um mínimo de coerência pessoal não deveria permitir a Durão Barroso abandonar o Governo a meio da legislatura.
Durão Barroso tem todo o direito de aceitar a sua nomeação para Presidente da Comissão Europeia e é normal que se sinta honrado pela escolha. Há argumentos que se podem avançar para defender essa opção em nome não só da carreira pessoal do primeiro-ministro mas também do interesse nacional.
É evidente, porém, que um mínimo de coerência pessoal não deveria permitir a DB abandonar o Governo a meio da legislatura, depois das críticas dirigidas a Guterres pelo mesmo gesto.
DB dirá que a situação é diferente – mas di-lo-á apenas porque o seu coração já está em Bruxelas. Há vários dias que as reacções internas deixaram de lhe interessar e arranjará todos os argumentos para se convencer a si próprio da correcção ética e da conveniência nacional da sua decisão.
DB dirá que não foge, que sai em nome de Portugal. É um argumento. Mas Guterres também tinha argumentos: tinha havido um resultado eleitoral que o punha em causa e saiu acatando esse resultado e desencadeando eleições que esclarecessem o desejo do povo (que aliás o PS perdeu). É certamente criticável, mas haverá algo mais democrático? Enquanto que DB sai a meio da legislatura, depois de ter jurado que nunca sairia, na sequência da mais pesada derrota eleitoral do PSD, sem aceitar eleições antecipadas e, pelo contrário, tentando assegurar uma sucessão de carácter dinástico, contestável no país e mesmo no seio do PSD.
Se DB nunca tivesse dito de Guterres o que disse e se tivesse aceitado o lugar de Presidente da Comissão entregando ao Presidente da República a solução da questão interna - dispondo-se o PSD a assegurar o Governo ou a apresentar-se a eleições depois de substituir o seu presidente – não haveria nada a dizer.
O que é inaceitável é esta situação de sequestro da República – em que, depois de se ter ganho eleições com promessas eleitorais que se quebram no dia seguinte, se fazem promessas de fidelidade ao Governo que se quebram passados uns meses e se tem o desplante de, escassos dias após uma derrota eleitoral, pretender impor ao país e ao Presidente da República um primeiro-ministro que nunca foi a votos para tal e cuja prática nem sequer dá garantias de idoneidade ou continuidade da acção governativa. Que essa possibilidade existe do ponto de vista legal é evidente, mas ela é carente de qualquer legitimidade eleitoral.
Que o PR pode convidar o PSD a indicar novo primeiro-ministro já se sabe – e existem boas razões, em tese, para o fazer, em nome da estabilidade. Que o PSD pode escolher Santana Lopes ou Quim Barreiros também se sabe.
Mas o que se espera em seguida do PR é que avalie essa escolha. Não apenas de um ponto de vista juridico-legal (se apenas existisse para isso podíamos substituir o PR pelo Tribunal Constitucional) mas de um ponto de vista político. É para isso que ele é eleito por sufrágio universal. E essa avaliação política deve debruçar-se sobre questões de legitimidade política, de garantia de estabilidade, de competência e até de carácter.
Façamos uma redução ao absurdo para se perceber melhor do que falamos: imagine-se que o PSD decidia indicar para primeiro-ministro da República um outro dos seus dirigentes mediáticos: Alberto João Jardim, experiente governante, vencedor de esmagadoras vitórias eleitorais. Será que Sampaio o deveria indigitar? Os sensatos concordarão que seria uma escolha demente. O que se espera do PR não é que aja como um algoritmo jurídico, nem como o mestre de cerimónias a cujo papel o PSD o pretende remeter mas que aja como o líder político que foi eleito para ser.
Há casos em que o povo fala de uma forma inequívoca. Nesses casos não há nada a fazer senão o que ele determina.
Há casos em que a legitimação democrática de uma opção é menos clara (como acontece agora). Quando a esta dúvida democrática se somam dúvidas sobre a estabilidade dessa opção e mesmo sobre a sua credibilidade pública, não há dúvida de que se deve voltar a pedir ao povo que se manifeste – sejam quais forem os custos dessa opção. De outra forma, não estaremos senão a afirmar que a democracia e os mecanismos formais que a consubstanciam (como as eleições) não são a melhor forma de governo.
terça-feira, junho 22, 2004
Bandeiras
Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Junho de 2004
Crónica 24/2004
Confesso que é com um arrepio de horror que vejo a febre da bandeira portuguesa que invadiu Portugal – como vejo com o mesmo horror as massas ululantes que abandonam os estádios na febre da vitória, agitando os cachecóis e atravessando-se à frente dos carros com aquele sentimento destruidor de invulnerabilidade, invencibilidade e impunidade que invade os adeptos das equipas vencedoras, aproveitando a oportunidade para gritar uns palavrões, humilhar os fracos e os vencidos e ir beber umas cervejas.
Sei que são coisas antigas, comportamentos seleccionados e gravados no nosso cérebro primitivo, a que ninguém foge totalmente, que foram essenciais durante milénios para garantir a sobrevivência da espécie contra os inimigos humanos e naturais. Mas sei também que sob eles se esconde o direito do mais forte e a irracionalidade, a agressão fácil e o desprezo dos fracos, o sentimento de superioridade e o orgulho nacionalista que justificam todos os abusos e o ódio pelos outros – sejam eles quem forem.
Não é por acaso que as claques futebolísticas estão tão próximas de uma ideologia precisa e não de outras. O culto da violência, a ideologia supremacista que os clubes professam (pelo menos em relação a si próprios), a adesão aos símbolos mais do que às pessoas ou às ideias e a necessidade de integração acéfala num colectivo e de seguir uma cor, uma bandeira e um chefe desenham um claro perfil de comportamento.
Não há, nesta febre da bandeira, nada de nobre, nada de bom, nenhuma ideia positiva. Só muito raramente e durante curtos períodos as bandeiras são capazes de apelar ao melhor que há nas pessoas e esta vez não é uma dessas excepções. Uma bandeira pode ser um grito de liberdade e de independência, uma afirmação de inteligência e solidariedade perante uma agressão que os ponham em causa. Mas não é esse o caso.
A bandeira apela à mobilização, à vitória e à fé, mas não apela a nada daquilo que nos últimos anos se tentou convencer os portugueses que devia ser a nossa aposta: a criatividade, a inteligência e a excelência, a educação e a formação, a qualidade e a beleza, o progresso e o bem-estar. Nem sequer à solidariedade, pois o fervor patriótico tem uma afinidade especial com a superioridade nacionalista, com a xenofobia e com o racismo. A bandeira só define uma solidariedade depois de definir cuidadosamente a fronteira onde ela se esgota e se transforma em ódio. A bandeira não apela ao neo-córtex mas ao cérebro primitivo, não apela à arte e à ciência mas à força e ao medo.
Sampaio ficou satisfeito por os portugueses assumirem a nacionalidade e há, de facto, algo positivo em abandonar a triste vergonha em que temos vivido, essa auto-comiseração estéril, e em conseguir encontrar ânimo para acreditar em alguma coisa.
É apenas triste que esta energia e esta mobilização não tenham tradução em nada de realmente importante, algo de que realmente nos pudéssemos orgulhar. É triste que aquilo em que acreditamos seja apenas isto em que podemos acreditar sem custo, seja esta mobilização que em nada nos compromete e nada nos exige senão beber cerveja e buzinar nas ruas.
terça-feira, junho 15, 2004
O caso da herança
Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Junho de 2004
Crónica 23/2004
A fundação possui como mácula original o facto de Champalimaud ter escolhido para sua presidente Leonor Beleza
O anúncio do testamento de António Champalimaud e da doação de 24,33 por cento da sua fortuna para a constituição de uma fundação dedicada à “pesquisa científica no campo da medicina”, que terá Leonor Beleza como presidente, deu origem à habitual enxurrada de encómios ao empresário, misturados com loas à sua “grande nobreza de sentimentos” e à sua “generosíssima dádiva”.
Nunca conheci António Champalimaud e não posso confirmar nem desmentir os adjectivos que lhe são endereçados. Posso dizer que foi apenas depois da sua morte que ouvi falar de “nobreza de sentimentos” ou de “generosidade” a seu respeito.
A constituição da fundação pode ser uma boa notícia. De facto, são evidentes as insuficiências da investigação portuguesa (devidas, em grande parte, ao pára-arranca do financiamento público) e uma entidade com objectivos ambiciosos e sensatos, com gestão estável e com uma avaliação transparente e rigorosa pode ser um trunfo.
Digo “pode ser” porque, infelizmente, nada garante que as coisas se passem da melhor maneira.
De facto, não é improvável que o Estado, com o álibi da existência desta fundação, passe a negligenciar a área que ela cobre, provando que a emenda pode ser pior que o soneto.
Algo do género seria de esperar do actual Governo, que acha que o Estado já faz mais do que a sua obrigação em matéria de investigação e que não se cansa de repetir que cabe à iniciativa privada realizar o investimento em ciência e em tecnologia que o Estado não realiza e pôr em prática a política de emprego científico que o Estado não pratica.
A fundação possui como mácula original o facto de Champalimaud ter escolhido para sua presidente Leonor Beleza, que foi certamente a ministra da Saúde sobre cuja gestão recaíram as mais violentas críticas devido, entre outros episódios, à forma como geriu a crise da sida e dos hemofílicos. Imagino que Champalimaud sentiu um secreto prazer em impor esta personagem controversa, com quem partilhava talvez a exigência de eficácia, mas também o perfil impiedoso e impopular.
Sobre a herança de Champalimaud não resisto a citar um homem insuspeito nestas matérias, um capitalista que construiu uma das maiores fortunas do mundo, o americano Andrew Carnegie (1835-1919). Carnegie era um daqueles milionários que achava que os ricos tinham obrigação de devolver à comunidade aquilo que ela lhes dera (e não apenas sob a forma de criação de empregos, que não é mais do que a garantia de continuar a ganhar dinheiro e dificilmente um gesto de solidariedade). Carnegie abominava a caridade, como distribuição indiscriminada de benesses, mas dedicou os últimos 18 anos da sua vida à filantropia, depois de ter vendido as suas participações em empresas por 250 milhões de dólares (em 1909). Criou escolas, fundações, bibliotecas, parques, museus – que ele considerava como “escadas” disponíveis para os mais desfavorecidos conseguirem melhorar a sua situação.
Num dos seus livros (“The Gospel of Wealth”) Carnegie escreve sobre o destino a dar a uma fortuna acumulada e explica que existem três possíveis: deixá-la aos descendentes (“a menos judiciosa”), deixá-la em testamento para fins públicos (aceitável ”desde que um homem esteja disposto a esperar pela sua morte antes de fazer algum bem ao mundo”) e, finalmente, “atarefando-se, durante a sua vida, em criar benfeitorias das quais as massas dos seus concidadãos possam retirar vantagens duradouras e dignificar as suas vidas”.
Carnegie defendia impostos pesados para as heranças e um dos seus aforismos favoritos era “o homem que morre rico morre desonrado” ("The man who dies rich dies disgraced"). Sobre os ricos que deixam dinheiro para obras públicas nos seus testamentos dizia que se fica sempre na dúvida se o deixariam na mesma caso lhes fosse possível levá-lo com eles.
terça-feira, junho 08, 2004
#%&»#@!...
Texto publicado no jornal Público a 8 de Junho de 2004
Crónica 22/2004
A campanha nem sequer permite saber que “questões europeias” são essas que devíamos ter debatido e que não debatemos.
1. O PÚBLICO de ontem publicava na última página o resultado de um dos seus habituais inquéritos feitos através da Internet. Estes inquéritos, como o site do PÚBLICO aliás sublinha, não são sondagens nem obedecem aos critérios científicos de auscultação da opinião pública, mas têm algum valor empírico, como o têm aqueles exercícios onde perguntamos aos nossos colegas ou aos nossos vizinhos o que pensam do estacionamento ou o melhor filme em exibição. A pergunta feita era “Acha que os partidos estão a debater os temas europeus na campanha para as eleições europeias?” Uma pergunta relativamente simples, sem juízos de valor, que não parece destinada a distinguir esquerda e direita, nortenhos e sulistas, homens e mulheres ou qualquer outra coisa. O resultado era um dos mais expressivos jamais atingidos num destes inquéritos: 3 (três) por cento dos 3514 respondentes achava que sim; 97 por cento achava que não.
A resposta coincide com o pensamento dos analistas. Esta campanha, para desgraça de nós todos, não só não permitiu debater as questões europeias, como não permitiu ficar a saber o que cada partido pensava delas como nem sequer permitiu que os portugueses ficassem a saber que “questões europeias” são essas que devíamos ter debatido e não debatemos e quais as alternativas que os vários partidos representam. A primeira responsabilidade cabe, certamente, aos políticos, mas cabe também aos media que não souberam mostrar as ditas “questões europeias” e interpelar os partidos sobre elas e, finalmente, à famosa “sociedade civil” (eleitores, “lobbies”, clientelas, corporações, freguesias, o que se queira), cujos constituintes não surgem a público nestas ocasiões para exigir o que querem exigir e para forçar os partidos a tomar posição pública perante essas exigências, sejam o fim da PAC, os casamentos gay ou a defesa europeia.
Que a maioria não está interessada em dar importância às eleições é claro, que a oposição pretende retirar-lhes todo o cariz europeu que tenham e “domesticá-las” quanto possível também é claro. Que a esmagadora maioria dos portugueses não sabe sobre o que vai votar nem como o seu voto vai influir no mundo é também claro. O que resta? A possibilidade de um excelente fim-de-semana.
2. A questão dos insultos foi de todas a mais mobilizadora que atravessou a campanha até hoje. Ficámos por exemplo a saber que pouca gente sabe o que seja um insulto mas que muitos gostam de se sentir insultados. Houve quem achasse um insulto o irónico comentário de Paulo Portas sobre Sousa Franco ser “pai, mãe, avó, avô, gato e periquito do défice”. De facto não é um insulto, é um achado. E tem um claro significado político, que até pode ser discutido – e que não se compara com insinuações sobre as orelhas ou a careca de Sousa Franco.
Do outro lado ficámos a saber que o PP considera um insulto dizer (como disse Sousa Franco), que certo tipo de comentários (como os que fez um líder do PP) se situam na antecâmara do racismo. A reacção do PP deixa-nos uma dúvida linguística: será que se Sousa Franco chamasse simplesmente “imbecil” ao dito líder isso seria considerado pelo PP uma crítica política a seu gosto?
Não é por acaso que o insulto entrou na campanha (como objecto real ou como pretexto de debate) pois ele é o resultado da inexistência de ideias ou de vontade de as debater. Por isso debatemos a forma. A campanha vai-se assim transformando toda ela num daqueles insultos de banda desenhada, vazio de conteúdo, sem demasiada animosidade mas exprimindo um claro sentimento de frustração: #%&»#@!...
terça-feira, junho 01, 2004
23.480 euros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Junho de 2004
Crónica 21/2004
Talvez Paulo Macedo mereça 23.480 euros por mês, mas será o único director-geral que os merece?
Os políticos em Portugal ganham pouco. Pode contrapor-se que isso é inevitável porque em Portugal toda a gente ganha pouco e o produto nacional é escasso. Mas não é assim. Os políticos em Portugal ganham menos do que poderiam ganhar em muitas outras actividades e isso tem consequências. Uma delas, muito discutida, é que a política não constitui uma actividade financeiramente atraente para os melhores. Algumas pessoas poderão levar a sua abnegação ao ponto de sacrificar o bem-estar material para se dedicar à causa pública, mas é evidente que isso nunca será verdade para a maioria. A política corre assim o risco de alienar os melhores e só atrair os medíocres.
Como penso que os cidadãos devem ser servidos pelos melhores, que deve haver uma política de atracção dos melhores para a causa pública e que o sistema de remuneração deve ser parte dessa política, considero que é necessário melhorar a remuneração dos políticos. A política salarial que nós, o povo, temos seguido em relação aos nossos servidores políticos é, provavelmente, uma das causas das suas insuficiências. Devíamos rever essa política e, coerentemente, reforçar a nossa exigência em relação ao seu desempenho.
É evidente que isto também é verdade para a Administração Pública - sendo que aqui o problema é mais difícil de resolver devido ao número de pessoas envolvidas.
Serve isto para dizer que não tenho em relação ao facto de se pagar 23.480 euros mensais a um director-geral nenhuma objecção de princípio. Talvez um director-geral valha isso. Talvez pagar um salário deste nível seja um bom investimento para nós, o povo. (E não se pense que isso é necessariamente impopular: alguém acha que Figo ganha demais?)
Existem fortes argumentos para justificar a medida da requisição do novo director-geral dos Impostos, Paulo Macedo: a sua competência (que não conheço mas não ponho em causa), o facto de ser nomeado com objectivos precisos que garante cumprir e de ser alguém passível de penalização no caso de o seu desempenho ser insatisfatório. Tudo coisas que parecem boas.
A questão é que a Administração Pública deve ser regida por critérios aplicados de forma equitativa. Ou seja: talvez Paulo Macedo mereça 23.480 euros por mês, mas será o único director-geral que os merece? É que, no actual estado de coisas, é mesmo preciso vir do BCP (ou, pelo menos, não estar na Função Pública) para que o Estado se disponha a pagar este salário. A questão que se coloca é se isso será justo e se será uma boa forma de mobilizar os recursos humanos da Administração Pública.
Não vejo razão nenhuma para que os directores-gerais não sejam escolhidos por concurso, ao qual se poderiam apresentar os quadros do BCP mas também funcionários públicos de carreira. E a ocupação dos cargos poderia ser feita nos termos em que nos garantem que esta vai ser feita: com um contrato claro, objectivos definidos, compromissos, recompensas e sanções. Se o Estado considera que pode subir de forma considerável os salários dos directores-gerais, óptimo. Mas que os escolha de forma transparente, depois de permitir que todos os interessados se candidatem. Num processo de selecção entram sempre elementos subjectivos e isso não é condenável, mas um concurso permite alargar o leque da escolha possível e dar lealdade ao processo. Enquanto a competência dos directores-gerais nomeados nos for garantida pelos ministros, mas o seu método de selecção continuar a ser não o do concurso mas as preferências pessoais (ou dos aparelhos partidários), os cidadãos têm o direito de desconfiar.
Outra questão que a nomeação de Paulo Macedo suscita é a da consabida promiscuidade entre funções no Estado e no sector privado. Se não em defesa do Estado, pelo menos em defesa da honra destas pessoas que saltam de um sector para o outro, não haverá um único deputado que queira levantar a questão e propor regras nestas transferências? Podiam ver como se faz nos EUA, que não são suspeitos de anti-capitalismo.
terça-feira, maio 25, 2004
No cameras, please
Texto publicado no jornal Público a 25 de Maio de 2004
Crónica 20/2004
A mensagem que é dada é que, para a administração americana, o que é grave não é que os atropelos tenham sido cometidos, mas que tenham sido divulgados.
Donald Rumsfeld tomou finalmente uma medida clara relativamente à tortura e às humilhações infligidas a prisioneiros iraquianos pelas forças armadas dos EUA. Pode ter demorado a reagir, pode ter tido relutância em admitir a responsabilidade dos militares sob as suas ordens, pode ter tentado esconder a sua própria responsabilidade, pode ter tentado minimizar os factos, mas acabou por tomar uma medida desprovida de ambiguidade sobre a questão. A medida tomada pelo Pentágono, noticiada por um semanário britânico, é a proibição aos militares americanos de usar telemóveis equipados com máquina fotográfica, máquinas fotográficas digitais e câmaras de vídeo no interior das instalações militares no Iraque.
A determinação do Pentágono aplica-se, para já, apenas ao Iraque, mas será futuramente aplicada a todas as instalações militares americanas.
Aceita-se sem rebuço que haja limitações à captura de imagens dentro de instalações militares – sejam elas quais forem e seja em que país for. A questão não é essa. A questão é que esta medida é uma reacção à divulgação dos maus tratos a prisioneiros de Abu Ghraib. É isso que é revelador da sua intenção.
Se o verdadeiro objectivo do Pentágono fosse pôr fim aos abusos dos prisioneiros, a divulgação destas imagens só poderia ser vista como um passo no bom sentido (por muito prejudiciais que tenham sido para a imagem dos EUA), pois permitiria extirpar uma prática condenável. A mensagem que é dada é que, para a administração americana, o que é grave não é que os atropelos tenham sido cometidos, mas que tenham sido divulgados. E para evitar que esse erro grave se repita, basta proibir a captação de imagens. Os EUA não querem que ninguém veja a forma como tratam os seus prisioneiros. Como mensagem é preocupante, pois alimenta os piores receios – nomeadamente o de que Abu Ghraib não seja uma excepção mas a norma e de que os maus tratos prossigam (ou recrudesçam) uma vez garantida a ausência de câmaras.
Proponho uma experiência conceptual àqueles que pensam que todos somos iguais mas que os EUA são mais iguais do que os outros: se tivessem sido divulgadas imagens semelhantes passadas numa prisão portuguesa, acham que se deveria sugerir que a entrada de câmaras nas prisões passasse a ser mais controlada? Seria esta a coisa certa a fazer? Ou isso seria inaceitável como reacção no nosso caso mas é aceitável no caso dos EUA porque eles têm sobre as suas costas o fardo do império?
A proibição dos telefones fotográficos é mais um tique, daqueles que os EUA exibem com preocupante frequência nos últimos tempos: um tique totalitário. (Alguém se recorda das posições americanas em relação à China a propósito das tentativas de controlar o acesso à TV por satélite e à Internet?)
Que as imagens são preocupantes para os poderes já sabemos (veja-se o recente caso do vídeo do casamento iraquiano bombardeado pelos EUA), que a multiplicação dos meios de captação e de difusão está a mudar a geografia dos poderes no mundo também tem sido amplamente glosado nos últimos tempos, mas a incomodidade perante as imagens, num regime democrático, não pode ser gerida através da censura. Pode argumentar-se que isto apenas é verdade na vida civil mas não na esfera militar. Acontece porém que o fito do segredo militar é proteger o segredo de operações – não a prática de crimes.
terça-feira, maio 18, 2004
Jardins
Texto publicado no jornal Público a 18 de Maio de 2004
Crónica 19/2004
Em Lisboa há jardins belíssimos que estão quase sempre às moscas, para espanto dos turistas que constituem o seu público quase exclusivo.
Agora que o bom tempo regressa, como todos os anos, os portugueses regressam às praias e ao campo, para gozar o ar livre, os banhos e a paisagem (nos raros casos em que ela existe em estado gozável). O que espanta é a utilização rarefeita que os lisboetas fazem nestes dias dos seus jardins – que não são abundantes mas existem.
Enquanto noutras capitais europeias menos dotadas pelo clima os nativos se lançam sobre os relvados e se deitam ao sol à menor réstia do dito e exploram ao máximo os seus espaços verdes, em Portugal em geral (e em Lisboa em particular) deixamos quase ao abandono os jardins para nos lançarmos nos engarrafamentos que levam à praia.
Em Lisboa há jardins belíssimos que estão quase sempre às moscas, para espanto dos turistas que constituem o seu público quase exclusivo (Jardim Botânico da Rua da Escola Politécnica, o Jardim Botânico da Ajuda, o Jardim Tropical, o Jardim das Necessidades…), enquanto outros, agradáveis e soberbamente situados (como os de Belém) atraem um número limitado de passeantes domingueiros. É evidente que algumas das razões de falta de uso se devem a simples falta de hábito, mas isso não isenta as autarquias de responsabilidades no estímulo ao uso destes espaços públicos que fazem cidade. Outros são de entrada paga, o que desincentiva de forma tão radical o seu uso que deve permitir gerar fundos suficientes para varrer a entrada uma vez por mês.
A grande ideia de Santana Lopes para estimular o uso dos espaços verdes de Lisboa foi interditar as vias mais importantes de Monsanto ao tráfego automóvel – como se Monsanto fosse de acesso fácil a pé, de bicicleta ou autocarro a partir de qualquer ponto da cidade; como se tivesse parques de estacionamento na sua periferia para acomodar os visitantes; como se dispusesse de um sistema confortável de transporte interno – num gesto de pura demagogia e típico de quem não usa de facto a cidade.
É que basta usar os jardins para perceber as suas limitações, desde a falta de chafarizes ou de casas de banho utilizáveis pelas crianças, à falta de bancos agradáveis (móveis, muitos, à sombra das árvores e não de bancos de pedra ao sol). Já experimentaram ir passear com os vossos avós para um jardim onde apenas é possível sentarmo-nos no chão sobre a terra? Ou passar uma tarde com crianças num jardim sem casa de banho?
Os jardins de Lisboa precisam de ser divulgados, de passar a ter acesso livre, de ser equipados com os equipamentos mínimos (WC, chafarizes, bancos, balouços) de ser decorados com equipamentos que possuam potencial de uso (caramanchões, fontes, tanques, coretos) e de ter um programa de atracção dos cidadãos e de animação, que conviria que fosse o mais variado possível. Para além de fazer desfilar ciclistas nas avenidas seria interessante que começássemos a ver os nossos jardins ocupados com grupos de ginástica ou de dança, de bordados ou de tai-chi, de escultura ou de arranjos florais, com lançamento de papagaios ou corridas de carros telecomandados, com aulas de música ou de cerâmica, com concertos de coros e de bandas, com exposições ou teatro ao ar livre. Será assim tão difícil?
terça-feira, maio 11, 2004
Abu Ghraib
Texto publicado no jornal Público a 11 de Maio de 2004
Crónica 18/2004
Retracção dos direitos cívicos, agudização da discriminação religiosa e racial, propaganda supremacista branca. É este libreto que os tristes soldados de Abu Ghraib interpretam, à sua triste maneira.
A divulgação dos actos de tortura e humilhação a que foram submetidos prisioneiros das tropas americanas no Iraque deram origem, num primeiro momento, à esperada condenação unânime e, num segundo momento, à inevitável bifurcação moral. Enquanto uns consideraram a revelação como uma prova em si da superioridade moral da democracia americana e exprimiram a sua convicção de que os responsáveis seriam identificados e castigados, o que provaria de forma ainda mais cabal a dita superioridade, outros apressaram-se a comparar a actual situação no Iraque em termos de direitos humanos aos tempos do ditador Saddam.
Ainda que se deva admitir o princípio da responsabilidade dos dirigentes pelos actos dos subordinados (eventualmente sem culpa) é consensual que a responsabilidade política de Rumsfeld e Bush (porquê parar em Rumsfeld?) seria nula se se tivesse tratado de actos isolados de uns quantos soldados (um ou vinte, é irrelevante), claramente desenquadrados da prática geral, da vontade das chefias militares e das ordens expressas recebidas.
Porém, já sabemos que não é assim. Sabe-se hoje que, pelo menos na prisão em causa, Abu Ghraib, esta prática estava generalizada, que era conhecida das chefias militares e era tolerada, que tinha sido investigada e posta preto no branco num relatório militar, que tinha prosseguido após essa investigação e parece ser mesmo resultado de ordens directas dos serviços secretos. A multiplicação de provas fotográficas e videográficas é, aliás, a melhor prova da convicção de impunidade dos protagonistas desses actos.
Para os adeptos mais fervorosos da política de Bush, os episódios de tortura não são senão um pequeno desvio (lamentável) a algo que é a justa linha do partido que representa a vanguarda da História – o Partido Republicano americano.
No entanto, é sabido (por quem queira saber) que existem nas prisões americanas em geral - não é preciso chegar ao Iraque – os mais chocantes e sistemáticos abusos dos direitos humanos, bem documentados e com constantes condenações de organizações domésticas e internacionais. Mas, como “os EUA são uma democracia” e precisamente porque muitos destes abusos são denunciados, eles podem ser ignorados com um comentário desculpabilizador. Numa operação de branqueamento moral, as constantes denúncias dão origem não a uma condenação mas a uma ilibação do sistema.
Que a guerra traz ao de cima o que de pior existe nas pessoas já se sabe e não havia razão para esta ser excepção. Mas há outra razão para não haver surpresa nos casos de tortura na prisão de Abu Ghraib. É que eles inscrevem-se na lógica, que tem vindo a ser seguida nos EUA desde o 11 de Setembro, de constante atropelo dos direitos humanos em nome da segurança – na qual o caso de Guantánamo ganhou maior destaque, mas não é único. A lógica de Guantánamo – que não é da responsabilidade individual de uns quantos soldados – é a lógica das leis de excepção, do parêntesis nos direitos humanos, justificado em nome da defesa nacional. Esta deriva securitária, denunciada por inúmeras organizações americanas, traduz-se numa retracção radical dos direitos cívicos, numa agudização da discriminação religiosa e racial, num moralismo asfixiante e numa propaganda supremacista branca e cristã que se transformou de facto no coração do regime – para tristeza dos democratas que reconhecem sólidas virtudes no sistema americano. É este libreto que os tristes soldados de Abu Ghraib interpretam, à sua triste maneira. Nesse sentido, os seus actos inscrevem-se na lógica do sistema – como Guantánamo, que talvez um dia Rumsfeld venha dizer que não sabia que existia…
Nesse sentido, os responsáveis políticos americanos, com Bush à cabeça, são certamente responsáveis por eles.
terça-feira, maio 04, 2004
Solidariedade
Texto publicado no jornal Público a 4 de Maio de 2004
Crónica 17/2004
Quando Durão manifesta a sua “solidariedade pessoal” com Valentim Loureiro é evidente aqui alguma distância, mas uma declaração de solidariedade não pode deixar de ter consequências.
As notícias de suspeitas e de prisões preventivas ou não desencadeiam em geral uma cascata de declarações de solidariedade das pessoas próximas dos suspeitos. Isso acontece em todas as investigações policiais e não foi excepção no caso da operação Apito Dourado, como não o tinha sido no caso da Casa Pia ou de Felgueiras.
Quando uma acusação séria se abate sobre alguém a quem nos liga uma relação pessoal e que convictamente julgamos uma pessoa de bem, há várias reacções possíveis, da surpresa e do choque à indignação ou à dúvida, mas acaba sempre por se manifestar um sentimento de solidariedade, que surge e se justifica pela relação existente. Essa solidariedade pode adquirir a forma da ajuda concreta ou ir além disso e tomar a forma de declarações públicas de apoio e confiança. Estas declarações têm uma função retórica (no sentido de que pretendem persuadir o público) e desempenham um evidente papel político. Quando alguém declara publicamente a sua solidariedade por um acusado, pretende em geral ir além da solidariedade que se deve a qualquer membro da espécie humana e visa persuadir os ouvintes da inocência do acusado ou, no mínimo, difundir a sua convicção pessoal dessa inocência.
Quando é um político que fala, uma declaração de solidariedade significa mais do que uma promessa de apoio: é uma declaração de co-responsabilização. Estar solidário com alguém significa ficar ao seu lado, dispor-se a partilhar o seu destino.
As declarações de solidariedade (e de apoio) são particularmente importantes em política porque são elas que geram as cadeias de confiança que se estendem até aos cidadãos. Não é possível a um eleitor conhecer todos os candidatos a deputados, mas votamos naqueles em quem as pessoas em quem confiamos nos dizem que podemos confiar.
Criam-se assim cadeias de referência e recomendação, cadeias de confiança que formam o nosso tecido social.
E esperamos dos nossos líderes que não só desempenhem os seus papéis de forma honesta e competente, mas nos recomendem pessoas igualmente honestas e competentes.
As declarações de solidariedade são avales que os políticos passam, garantias de idoneidade, certificados de qualidade. Se Paulo Pedroso for condenado, Ferro Rodrigues deverá pôr fim à sua carreira política (pelo menos como dirigente partidário), porque as suas declarações e actos de solidariedade o amarram necessariamente àquele. Se Paulo Pedroso for um criminoso, isso significa que não podemos confiar no julgamento de Ferro Rodrigues.
Esta “condenação solidária”, que pode parecer (e ser) injusta, é a garantia de que os dirigentes se preocupam em escolher sempre os mais idóneos e competentes. Daí que se use tanto a expressão “pôr as mãos no fogo” ou “ a cabeça no cepo” por alguém. O aval só vale, só dá alguma garantia de seriedade, quando o avalista corre um risco, quando é obrigado a pagar ele próprio pelas falhas do avalizado, quando joga nesse aval algo seu, seja dinheiro seja a sua reputação.
Quando Durão manifesta a sua “solidariedade pessoal” com Valentim Loureiro é evidente aqui alguma distância - “solidariedade pessoal” é menos que “solidariedade” - mas uma declaração de solidariedade não pode deixar de ter consequências. Seria bom que os cidadãos portugueses soubessem, em relação aos seus dirigentes, sem ambiguidade, quem está solidário com quem, quem põe as mãos no fogo por quem, para sabermos quais são as cadeias de confiança que afinal se revelam viciadas e sabermos quem devemos sancionar por isso.
terça-feira, abril 27, 2004
Revolução "light"
Texto publicado no jornal Público a 27 de Abril de 2004
Crónica 16/2004
A revolução tem de ser feita por alguém, tem uma conjugação pessoal, enquanto que a evolução é algo que apenas acontece, de forma impessoal.
É claro, para todos os que não possuem uma profunda má-vontade contra a História, que no 25 de Abril ocorreu uma revolução. Essa revolução traduziu-se em profundas roturas (algumas violentas) a todos os níveis da vida nacional, do poder político ao exercício quotidiano da cidadania e das liberdades, da administração pública à defesa, da economia à cultura, do ambiente à ciência, do papel das mulheres à relação de Portugal com o mundo. Não é possível fazer uma história da arte ou da economia portuguesas do século XX sem marcar o 25 de Abril com uma pedra (que poderá ser ou não branca, conforme os gostos, mas que é certamente diferente de lhe pôr uma pedra em cima).
É também inegável que houve, desde o 25 de Abril, uma enorme evolução em inúmeros (não todos, infelizmente) indicadores de desenvolvimento, que a última campanha governamental sobre a data quis pôr em evidência.
À partida, quando se pensa em mobilizar cidadãos para uma comemoração, a colocação da tónica na evolução em vez da revolução, percebe-se e até parece correcta. Enquanto que falar de "revolução" nos atira forçosamente para o passado (revolução é o que houve e já não há, nem haverá), falar de "evolução", remete-nos para algo novo (o que houve, ainda há e, com alguma sorte, vai continuar a haver).
A imagem dos cravos "à la Warhol" parece querer sublinhar essa releitura "modernizada" e "light" do 25 de Abril.
Acontece porém que as palavras transportam sempre mais do que uma ideia consigo. A ideia de revolução está certamente velha e doente, esconde debaixo da cama muitos segredos sórdidos e não traz grandes promessas para o futuro, mas possui uma história que é uma apologia da atitude insurreccional, iconoclasta, desrespeitadora da ordem instituída, que não agrada à cultura da direita conservadora hoje no poder.
A "evolução", por seu lado, tem subjacente a ideia de um progresso gradual, estável e sem sobressaltos, disciplinado e ordeiro.
Outra propriedade afasta os dois conceitos. É que a revolução tem de ser feita por alguém, tem uma conjugação pessoal, enquanto que a evolução é algo que apenas acontece, de forma impessoal. A revolução tem actores, protagonistas, agentes activos, é voluntarista, só acontece porque alguém quer e quer muito, tem um tempo e um lugar. A evolução é difusa, acontece em todo o lado e nenhum, sem darmos por isso, mesmo quando não queremos, está inscrita na ordem natural das coisas (vide Darwin), é fatal como o destino, está escrita nos astros ou noutro sítio qualquer, é involuntária. Pode-se evoluir sem vontade, mas não se pode fazer a revolução sem vontade.
Há uma ideia conservadora, que encontramos (com sabores diferentes mas a mesma conclusão) na direita e na esquerda representada por José Saramago que diz que a revolução foi irrelevante. A evolução gradual e impessoal (sem a paixão e certamente sem a rebelião), ter-nos-ia trazido aqui, mesmo sem termos tentado, deixando-nos levar.
É contra esta visão que há que valorizar a aprendizagem fundamental que os portugueses fizeram no 25 de Abril, que é o património genético da nossa democracia e que deve continuar a dar forma à nossa cidadania diária: a revolta é legítima e necessária, os direitos conquistam-se pela vontade e pela acção e o futuro está (também) nas nossas mãos. Nem todos gostamos de ser levados.
terça-feira, abril 20, 2004
Poeira
Texto publicado no jornal Público a 20 de Abril de 2004
Crónica 15/2004
Quantos projectos de investigação "aplicada" foram dinheiro deitado à rua? E quantos projectos de ciência "pura" não levaram a novos produtos?
O novo modelo de financiamento da investigação científica e tecnológica que a ministra da Ciência e do Ensino Superior apresentou na semana passada tem na sua génese alguma ideias que, a ir avante, irão comprometer por mais uns anos o desenvolvimento da ciência portuguesa.
É infeliz que, mais uma vez, um governante pretenda reinventar a roda e lançar um novo ciclo glorioso, marcado com o seu cunho iluminado, em vez de colher na experiência passada alguns princípios básicos e algumas ideias que funcionam para o financiamento da investigação. Poderíamos certamente avançar mais depressa e no caminho certo. Mas a principal preocupação do Governo neste domínio — como em muitos outros — foi mais uma vez a de tentar convencer o mundo de que está tudo por fazer e que não há alternativa senão recomeçar do zero. É um desperdício infeliz.
É infeliz que, mais uma vez, aquilo que devia ser um plano sério — ainda que eventualmente árido — seja apimentado com algumas medidas avulsas hollywoodescas, capazes talvez de captar a atenção de alguns media, mas que nada contribuem para resolver o problema da ciência em Portugal. São exemplo disso a anunciada contratação dos cérebros fugidos de Portugal e que poderão voltar (com uma extraordinária bolsa por dois-anos-dois!) caso possuam 100 artigos científicos publicados em revistas indexadas internacionalmente e 200 citações. O grande divertimento dos blogues de cientistas dos últimos dias tem sido tentar encontrar investigadores que preencham as condições. Parece que António Damásio as preenche. Estamos certos de que se lhe acenarem com a perspectiva de trabalhar com uma bolsa durante dois anos em Portugal abandonará o seu instituto no Ohio.
É infeliz que, mais uma vez, as ciências fundamentais e as ciências sociais e humanas sejam preteridas (e note-se que desta vez não se trata de ser preterido num concurso ou num programa, mas de o ser na filosofia de base do financiamento do Estado, o que é uma condenação perpétua) com base na ideia vendável mas falsa de que só a tecnologia contribui para o desenvolvimento e o bem-estar e de que a ciência de base é (como a cultura) um luxo bom para os ricos mas a que os remediados não se podem dar. A ideia é falsa quanto mais não seja porque não se sabe à partida numa investigação o que será de facto aplicado. Quantos projectos de investigação "aplicada" foram dinheiro deitado à rua? E quantos projectos de ciência "pura" não levaram a novos produtos e novos desenvolvimentos? E as ciências sociais, para além do seu etéreo contributo cultural, difícil de medir em euros, não terão nada a ver com o desenvolvimento?
É infeliz que medidas desta importância sejam postas à discussão durante pouco mais de duas semanas. E é exemplar da credibilidade deste "período de discussão pública" o facto de, passada uma semana, haver no site do ministério da Ciência... um único comentário.
É infeliz, finalmente, que mais uma vez reapareça a ideia messiânica das "áreas prioritárias a anunciar por portaria", cuja inutilidade se conhece tão bem. Não penso que a excelência científica intrínseca de um projecto deva ser o único critério de avaliação e financiamento da investigação — mas voltar à ideia das listas de áreas prioritárias é de uma ingenuidade que seria tocante se não fosse ridícula. Este tipo de esforço voluntarista poderia compreender-se se Portugal fosse os EUA mas, com o nível de financiamento da investigação portuguesa, é particularmente absurdo.
Porque é uma actividade de longo prazo a ciência precisa antes de mais de estabilidade, de um financiamento basal garantido de bom nível, atribuído com exigência, rigor e transparência; precisa de uma política de emprego científico que dê perspectivas para além de dez anos de profissão e precisa depois de grandes apostas consensuais, bem enquadradas institucionalmente, mantidas com flexibilidade mas também com tenacidade, durante anos e anos. Não ao sabor da última sondagem de popularice.
terça-feira, abril 13, 2004
Buc 2
Texto publicado no jornal Público a 13 de Abril de 2004
Crónica 14/2004
Podia ser "combinado", porque há os passes combinados, os pratos combinados e não havia razão nenhuma para não haver módulos combinados.
Quem anda de autocarro em Lisboa e não tem passe mensal tem a possibilidade de adquirir bilhetes pré-comprados da Carris nos quiosques da empresa. Os pré-comprados dão pelo nome comum de "módulos", saem a metade do preço de um bilhete comprado a bordo dos autocarros e cada um deles dá direito a duas viagens, devendo um dos extremos ser obliterado quando se entra a bordo do autocarro (ou os dois extremos, caso o trajecto a fazer inclua um percurso urbano e um percurso suburbano).
Nada disto teria mistério não fosse a sigla que aparece no meio do dito bilhete: Buc 2.
Em momentos de viagem urbana sem livro nem jornal próprio ou alheio para me entreter (ou espaço para os abrir), dei por mim a ler cuidadosamente as duas faces do bilhete sem conseguir descodificar a sigla e o passatempo foi ganhando alguma capacidade de entretenimento (dizer que se transformou num desafio intelectual seria excessivo).
O "B" não tem mistério, é certamente "bilhete" — até porque o objecto dá pelo nome comum de "módulo" e todos sabemos a aversão que as empresas têm a usar os nomes comuns das coisas. Chegados ao "u" as coisas tornavam-se mais complicadas: "urbano"? Uma colega a quem propus a charada, mais conhecedora da perversidade do mundo, garantiu que "u" devia ser "unimodal" mas não foi capaz de fazer nenhum proposta para o "c".
O "u" também podia ser "unidade" ou "unitário", até porque vinha seguido do algarismo 2 e "unidade 2" é algo que parece poder ser fruto do espírito criativo da Carris, mas leva-nos a um choque frontal com o "c": "bilhete unitário c..."?
O "c" não podia ser de Carris porque vinha em minúscula. Alguém disse que o "c" queria com certeza dizer "combinado" porque há os passes combinados, os pratos combinados e não havia razão nenhuma (a não ser a lógica, que constitui um fraco argumento) para não haver módulos combinados mas, se todas estas propostas podiam conter uma peça do "puzzle", faltava-lhes coerência global.
Os três parágrafos do verso do módulo não ajudavam. Repetiam tautologicamente que uma viagem urbana "corresponde a uma validação (1 BUC)" mas falavam às tantas em "Coroa urbana" o que poderia ser uma pista. Buc seria uma sigla em inglês? Algo como "B... Urban Crown"?
Não quis dar-me por vencido e perguntar aos motoristas dos autocarros, telefonar para a Carris ou consultar o seu site. Além de que me tinha afeiçoado ao mistério. Às vezes imaginava que a sigla não queria dizer absolutamente nada e tinha sido subrepticiamente incluída nos módulos como uma mensagem em código sobre o absurdo da vida, um hino ao devaneio, um apelo subliminar à Revolução capaz de fazer corar de prazer o Bloco de Esquerda. E a convicção reforçou-se quando não consegui encontrar nenhum condutor da Carris que fizesse a mínima ideia do que aquilo queria dizer. O Buc tinha-se transformado num mistério e é sabido como as nossas vidas precisam de mistério, principalmente quando estamos dentro de um autocarro.
Deixei de tentar saber o que queria dizer o Buc até que há uns dias, ao perguntar mais uma vez a um grupo de amigos o que achavam que queria dizer a sigla — imaginando que os ia fascinar com o mistério — recebi a resposta mortal: "Bilhete único de coroa. Fui ver à Internet". Era batota, mas o mal estava feito. Aquilo que tinha parecido uma cúmplice e irónica piscadela de olho, era afinal uma designação estúpida e inútil, criada por uma dúzia de burocratas sem imaginação.
terça-feira, abril 06, 2004
Negro
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Abril de 2004
Crónica 13/2004
Não é por não se votar ou por se votar em branco que um lugar do Parlamento fica vazio, mostrando ao mundo uma perturbadora cárie democrática.
Votar em branco é indubitavelmente um direito. Um direito importante e que deve ser garantido a todos os cidadãos. A liberdade de escolher deve incluir a liberdade de não escolher e uma das muitas maneiras de escolher não escolher é o voto em branco. Poderá ser, para um eleitor consciente e em eleições livres, a maneira de dizer que recusa as opções que lhe propõem, aceitando ao mesmo tempo a regra da eleição.
Há casos em que o voto em branco pode ser até a única opção do homem livre: quando o voto é obrigatório mas as eleições não são livres e as opções são todas iníquas. A única forma de não participar na cobertura da fraude é votar em branco.
A maneira como se decide não escolher tem três sabores: a abstenção, o voto branco e o voto nulo. E a sua leitura política está bem definida: eles representam o desinteresse, a hesitação e a iliteracia. O que é mais grave (ou menos eficaz) é que esta ausência de escolha não tem qualquer repercussão no desenlace da eleição. Não é por não se votar ou por se votar em branco que um lugar do Parlamento fica vazio, mostrando ao mundo uma perturbadora cárie democrática. As eleições escolhem sempre alguém. Pode-se participar nessa escolha ou não, mas alguém será escolhido. Alguém escolhe pelos que não votaram, pelos que votaram em branco, pelos nulos.
Muitas organizações políticas portuguesas ao longo dos anos apelaram à anulação do voto "com uma frase revolucionária" como forma de recusar a "farsa das eleições burguesas". Alguém sabe quantos o fizeram? Cada um deste votos fez ver a sua frase revolucionária a dois ou três escrutinadores e foi somado aos votos onde pobres analfabetos tinham escrito diligentemente cruzinhas em todos os quadrados.
O problema do voto em branco é a sua utilidade. O voto em branco consciente, de alguém que recusa todas as opções que lhe colocam na bandeja e que clama pela possibilidade de outra escolha é exactamente igual ao voto em branco analfabeto, ao voto em branco imbecil e ao voto em branco enfastiado.
O voto em branco, para ter peso político, tem de ser acompanhado de uma declaração de voto, que se anexa em geral na roda de amigos: "Não vou votar em nenhum daqueles sacripantas". O voto não vale nada, a declaração pode valer alguma coisa. O voto em branco só terá peso se houver uma declaração que ponha o preto no branco. Em Portugal desde Abril o voto em branco terá servido certamente para exprimir muitas opções, adesões e desgostos. Ninguém sabe quais.
O apelo de Saramago ao voto em branco não tem nada de espantar vindo de quem vem e constitui mais um ataque, veemente e consciente, a um dos pilares da periclitante democracia que temos. O que espanta é a benevolência com que a sua proposta foi recebida, pois Saramago apela à demissão dos cidadãos de uma parte essencial da sua escolha. Que essa escolha esteja demasiado condicionada (antes e depois das eleições) é de facto um problema, mas ele não se resolve com a demissão dos cidadãos e a entrega da liderança a uma vanguarda esclarecida que há-de aparecer numa manhã de nevoeiro.
O défice de democracia existe mas ele deve ser colmatado precisamente através do combate ao abandono, à rendição, à desistência, ao voto branco, à abstenção, ao voto nulo. Consegue-se através da participação cidadã nas eleições e nas organizações cívicas, certamente, e, de forma ainda mais importante, nos empregos, nas escolas, no dia-a-dia.
A proposta de Saramago é um gesto de eugenismo político: estando esta democracia frágil e doente, Saramago quer aproveitar para matá-la de vez. Haverá certamente alguma hiena à espreita para lhe comer os restos e um espectro para lhe tomar o lugar.
terça-feira, março 30, 2004
A adjunta
Texto publicado no jornal Público a 30 de Março de 2004
Crónica 12/2004
A função de um adjunto de um ministro quando fala com a imprensa é representar a instituição a que pertence e não outra.
A propósito do trabalho do PÚBLICO sobre a fome em Portugal, foi publicada neste jornal uma "Carta ao Director" de Jacinta Oliveira, adjunta do Ministro da Segurança Social e Trabalho, que suscita algumas reflexões sobre o papel dos assessores dos governantes e a sua relação com os media. Queixa-se Jacinta Oliveira de que uma declaração sua citada naquele trabalho foi não só retirada do contexto como citada como representando a posição do seu Ministério, quando ela teria sido proferida numa "conversa informal" (o adjectivo aparece duas vezes) com uma jornalista do PÚBLICO. A adjunta diz que nunca prestou declarações como "porta-voz" ou "fonte oficial" e rebela-se contra o facto de as suas declarações terem sido consideradas como tendo "carácter oficial".
Tentemos tecer algumas considerações de ordem geral a partir daqui e ser claros: quando um jornalista fala a um adjunto de um ministro é porque pretende ou recolher dados de uma fonte oficial ou recolher um depoimento dessa fonte oficial — que, quase sempre, apenas têm valor por virem dessa fonte oficial.
Se um jornalista se apresenta como tal num contacto com um elemento de um gabinete ministerial ou com um responsável de uma instituição, é evidente que as informações ou declarações que recolhe se destinam a publicação, com indicação da fonte onde foram colhidas.
Esta é a regra e ela é boa. Ela visa a transparência da vida pública e a responsabilização dos cidadãos e das instituições. Há excepções a esta regra? Há casos em que uma fonte pode pedir para não citarem o seu nome, pode dizer que apenas falará com o jornalista se lhe for garantido o anonimato? Claro que sim, mas são excepções. E devem ter uma justificação óbvia (receio de represálias, por exemplo). E as excepções devem ser negociadas expressa e previamente com o jornalista. Nunca se deve pressupor (nem o jornalista deve permitir que essa convicção se instale) que uma conversa com um jornalista é em princípio confidencial. (No caso vertente, que fique claro, não houve qualquer pedido de anonimato, mas apenas o entendimento unilateral, por parte da adjunta de Bagão Félix, de que as suas declarações eram feitas a título "informal").
O pedido de anonimato e as declarações em "off", apesar de frequentes (em particular no meio político), são difíceis de aceitar por parte de um elemento de um gabinete ministerial que está ao serviço de um Governo eleito pelo povo, a quem deve prestar contas e perante quem tem um dever de transparência. Dito de outra forma: a função de um adjunto de um ministro quando fala com a imprensa é representar a instituição a que pertence e não outra. E tudo o que diz (tenha ou não a função oficial de "porta-voz") é em nome dessa mesma instituição. Não em nome pessoal. Não anonimamente. É para isso que é pago (por nós). Para assumir o que faz e o que diz.
Um assessor pode eventualmente pedir para o seu nome não ser referido e para ser identificado como fonte oficial do gabinete X (o que não significa que não assuma publicamente o que disse) precisamente porque as suas declarações são oficiais (e não pessoais) e obrigam o gabinete, o ministro e o Governo. Mas não pode pedir para ser identificado como uma "fonte anónima do gabinete". Os cidadãos em geral e os jornalistas em particular não podem permitir que os gabinetes ministeriais e o Parlamento sejam ocupados por "fontes anónimas".
Quando um assessor ganha o hábito de prestar declarações em "off" está apenas a defender a sua impunidade e a do seu Governo — pode assim dizer as barbaridades que entender, cometer os erros e as indiscrições que quiser, espalhar boatos, mentir e difamar. Isso é tanto mais inaceitável quanto essa impunidade é em geral obtida através do tráfico de informações: quem não aceita o segredo fica fora do círculo e a fonte oficial seca. O contrato não escrito é leonino e, a ser aceite por todos os jornalistas, acabaria no limite por impor o controle político dos media.
terça-feira, março 23, 2004
Negociar
Texto publicado no jornal Público a 23 de Março de 2004
Crónica 11/2004
A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.
Mário Soares provocou um pequeno terramoto político com a sua declaração de que é aceitável e mesmo necessário negociar com os terroristas, fazendo à sua volta um unânime vazio indignado, mas vale a pena debruçarmo-nos sobre o seu conteúdo em termos políticos.
Quando se diz que "não se negoceia com a Al Qaeda" isso significa que não se pode ceder à chantagem do terror — e aqui todos estamos de acordo. Um Estado não pode deixar de tomar uma medida que julga justa e necessária (ou tomar uma outra) por recear represálias da Al Qaeda.
Mas será que este princípio da não cedência em termos de substância deve ser um princípio absoluto e sem matizes?
Antes de mais, existe o pormenor não despiciendo de que a Al Qaeda (ao contrário do IRA ou da ETA) não tem um objectivo político definido. O seu terrorismo não é uma continuação por outros meios de um confronto político, de objectivos passíveis de discussão. O seu terrorismo é a tradução de um desejo de aniquilar uma forma de viver que considera suja e indigna: a sociedade democrática, liberal e igualitária. Não é a política externa dessas sociedades que a Al Qaeda põe em causa, mas a sua própria existência, a sua história e mesmo o seu direito à vida. A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.
É difícil, nestes termos, conceber uma negociação. Não se pode negociar quando uma das partes tem como único objectivo (que julga sagrado) a liquidação da outra. A negociação é impossível devido aos termos em que a Al Qaeda define o seu papel e o seu inimigo.
Pode negociar-se com inimigos ("Com quem é preciso fazer a paz senão com os nossos inimigos?", perguntava Rabin) mas é difícil negociar com quem se coloca do lado de fora da Humanidade.
Se "não se negoceia com a Al Qaeda" em termos globais e em princípio — porque não há nenhum bem negociável em disputa — é bem ter presente que, em qualquer conflito, se negoceia sempre de uma forma limitada. E isso é não só positivo como mesmo inevitável.
Há situações onde se deve tentar negociar (e seria criminoso não o tentar), como são as situações onde haja reféns — ainda que haja fronteiras que um estado livre não possa cruzar.
De uma forma geral, deve-se (e seria criminoso não o tentar) negociar não com "a Al Qaeda" mas com todas as estruturas e grupos no seu interior onde haja a possibilidade de explorar dissensões, rivalidades e dúvidas.
Deve-se da mesma forma negociar (e muitos grupos terroristas foram desmantelados desta forma) com elementos que tenham a potencialidade de se transformar em "arrependidos".
Como se deve negociar e tentar aproximações, a outro nível, com grupos e sectores radicais que, não sendo "a Al Qaeda", fornecem a zona de penumbra onde a Al Qaeda se move, se financia, recruta e reproduz a sua matriz cultural e religiosa.
Em termos práticos — e cínicos — até se negoceia porque isso pode permitir ficar a conhecer a forma como funciona a organização do lado de lá da mesa, quem são e como pensam os seus dirigentes ou simplesmente porque isso permite ganhar tempo — tudo objectivos preciosos num conflito.
Alguém pensará com seriedade que, se por hipótese o futuro Senhor Terrorismo da União Europeia recebesse um telefonema de Bin Laden, lhe deveria desligar o telefone na cara?
A expressão de Mário Soares foi infeliz porque confere credibilidade política à Al Qaeda — ainda que seja compreensível num político que conhece as virtudes da negociação e que sabe que só se cede o que se quer. Foi infeliz porque parece uma cedência — ainda que seja uma posição de princípio. Foi infeliz porque pareceu amoral — ainda que seja uma posição de realismo político. Mas foi principalmente infeliz porque foi dita em público — quando apenas seria adequada para o Conselho de Estado.
Por outro lado, é fundamental que Soares reafirme o combate ao terrorismo como uma acção política — e não apenas policial ou militar — de onde nenhuma vertente deve ser excluída.
terça-feira, março 16, 2004
Contra o medo
No momento em que o espectro do terrorismo se materializa sobre a Europa — não em alguns pontos do continente, reflectindo conflitos localizados, mas ameaçando globalmente a Europa democrática — e passados os primeiros dias de luto solidário e na tentativa de racionalizar o horror dos atentados de Madrid, é chegada a hora de encarar algumas novas realidades.
A Europa em geral vive a partir de agora sob uma ameaça credível de atentado terrorista que não tem paralelo na história recente. Não há, neste capítulo, nenhuma isenção para Portugal, como tantas vezes aconteceu no passado, devido à sua posição marginal em termos geográficos, económicos, políticos e de fluxos. A intenção dos terroristas é espalhar o terror, da forma mais mortífera possível, e nenhum país se pode imaginar a salvo desta sanha, como já tem sido dito. Se a pequenez de Portugal define uma probabilidade mais baixa de ser um alvo, é também verdade, em contraponto, que a nossa inclusão na União Europeia torna esse argumento hoje menos válido e que a nossa relativa fragilidade em termos de segurança aumenta por sua vez aquela probabilidade. Devemos, para todos os efeitos práticos, considerar-nos tão ameaçados como os nossos vizinhos.
Perante este estado de coisas a primeira tentação é a securitária: tentar garantir a ilusão de segurança através da multiplicação de controlos, de restrições às liberdades cívicas, da coacção de todos os suspeitos, por leve que seja a suspeita (ou ainda que ela se chame apenas medo).
É evidente que a segurança é uma dimensão que terá de ser reforçada, nomeadamente através da vertente dos serviços de informação — nenhuma outra opção seria razoável perante uma ameaça credível, próxima e grave. Mas é também evidente que os cidadãos devem manter-se atentos perante eventuais atentados às liberdades. Se a defesa da sociedade aberta se traduzir na destruição dos seus valores, não haverá nada que valha a pena preservar. Não há receitas para encontrar o ponto de equilíbrio entre segurança e liberdade. Mas esse debate deverá ser um dos que devemos manter mais vivos nos próximos tempos. A segurança, a autoridade e a eficácia têm de coexistir com o escrutínio e o debate democrático e com o exercício pleno das liberdades. A abertura das sociedades democráticas europeias pode ser uma fragilidade perante o terrorismo, mas o seu fechamento seria a sua morte.
A vigilância cidadã não pode porém ficar por aqui. A forma mais eficaz de aumentar a segurança é a vigilância quotidiana de todos. Como aprenderam a seu tempo os britânicos, os espanhóis, os italianos. Não a paranóia, mas uma vigilância colectiva e partilhada, feita por todos em nome de todos. Há um valor precioso que aqui abandonamos, tristemente: a despreocupação em que até hoje, com altos e baixos, apesar de tudo pudemos viver nas nossas cidades.
A acção vigilante e democrática dos cidadãos europeus tem de se estender a uma terceira vertente: o diálogo com os outros povos, os migrantes, os muçulmanos, os indivíduos de outras cores, outras crenças e culturas, que muitos tentarão demonizar. Um risco mortal seria considerar que, se a Europa está sob ameaça, os não-europeus são o inimigo, ou outro paralogismo semelhante.
No respeito pelo outro floresceram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade sobre que construímos as nossas sociedades. É essa a nossa alma, a nossa razão de ser, e não podemos permitir que ela seja substituída pelo terror e pelo ódio.
O terrorismo não é apenas — com alguns pretendem — um problema de polícia. É um problema político maior, que exige empenhamento político, a todos os níveis, de todos nós. Que não se negoceia com terroristas é um facto aceite. Mas não se pode confundir essa fronteira com a necessidade de destruir, pela argumentação, pela acção política, pela acção solidária, social e cultural as razões que fazem com que seja possível recrutar jovens para matar os nossos filhos.
terça-feira, março 09, 2004
Lista negra
Texto publicado no jornal Público a 9 de Março de 2004
Crónica 9/2004
Esta lista negra é, na melhor das hipóteses, um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores.
Existe uma hierarquia na nossa convicção pessoal da culpa que tem um paralelo nas diferentes figuras do processo de acusação judicial. Pode ser-se investigado, suspeito, arguido, acusado, pronunciado, julgado e condenado. Apesar de todos os cuidados da lei e da moral, que estabelecem a presunção de inocência como princípio básico até ao fim destes trâmites, é evidente que ninguém continua a ver como absolutamente inocente alguém que foi acusado de um crime. Um acusado vive já num limbo, entre a inocência e a culpa, onde talvez não seja ainda culpado mas onde já não é certamente inocente.
Podemos não condenar um acusado, mas relativamente a ele estabelece-se pelo menos uma suspensão da confiança. É preciso alguma disciplina profissional (como a que se exige de polícias, juristas e jornalistas) para tratar acusados de acordo com o princípio da presunção de inocência.
A lista dos estádios de confiança e culpa foi recentemente acrescentada com uma nova categoria: a de "presumível suspeito", que é algo paralelo à noção política de "candidato a candidato". A nova categoria representa alguém que talvez seja já suspeito mas que ainda não fez prova dessa condição ou que ainda não é suspeito mas... pode vir a sê-lo. Os "presumíveis suspeitos" mais famosos são os que fazem parte da lista de 127 fotografias que têm sido usadas para identificação no processo Casa Pia.
Penso que podem existir três maneiras de construir as colecções de fotos usadas para identificação de suspeitos: 1) juntar a foto de um suspeito a outras obtidas de forma aleatória, 2) misturar a imagem de um suspeito com as de indivíduos de características físicas semelhantes (quando elas tenham sido previamente referidas num depoimento) ou 3) reunir aleatoriamente uma colecção de fotos de indivíduos pertencentes a um dado grupo (malabaristas, por exemplo) quando uma vítima afirma ter sido abusada por alguém que pode reconhecer e de quem sabe apenas ser malabarista de profissão.
Não parece provável que a famosa lista de fotos tenha sido organizada de nenhuma destas formas.
Há uma quarta hipótese que é a de que a polícia tenha feito uma colecção de fotos com toda a gente que já foi objecto de rumores relacionados com a pedofilia (que é natural que apenas toque pessoas famosas), mas é menos surpreendente o contrário: que seja devido à sua presença na lista de fotos que certas pessoas são objecto de rumores.
O que nos devolve à pergunta que nos intriga a todos: por que raio é que as fotos mostradas foram estas e não outras? É que se estas não foram obtidas aleatoriamente, foram escolhidas e os cidadãos têm o direito de saber os critérios da escolha. Até porque, com intenção ou sem ela, a utilização destas fotos lança suspeitas sobre os incluídos, que o Ministério Público não pode ignorar. A lista coloca os fotografados numa antecâmara da acusação, num estado de "presumível suspeição" que afecta de forma inaceitável a sua imagem pública.
Tal como está, a colecção de fotos de notáveis é um Índex, uma lista negra: na melhor das hipóteses é um convite à denúncia gratuita, na pior uma arma de pressão, em todas as hipóteses uma fábrica de rumores. Como ninguém quer dar a impressão de que resiste a ser investigado ou quer pressionar a justiça, ninguém reage à sua inclusão. E os que estão fora não querem dar a impressão de que receiam passar à categoria de "presumíveis suspeitos" e também não atacam o método. Não é por isso de estranhar que a generalidade dos políticos — como notou Mário Mesquita — se mostre refém deste instrumento e reaja com tibieza à notícia da sua inclusão. Mas o que exigimos dos eleitos é algo diferente: que combatam a difamação que a lista constitui, o medo que a lista (e a sua difusão) pretende espalhar e a descredibilização da investigação que ela é.