terça-feira, abril 20, 2004

Poeira

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 20 de Abril de 2004
Crónica 15/2004

Quantos projectos de investigação "aplicada" foram dinheiro deitado à rua? E quantos projectos de ciência "pura" não levaram a novos produtos?

O novo modelo de financiamento da investigação científica e tecnológica que a ministra da Ciência e do Ensino Superior apresentou na semana passada tem na sua génese alguma ideias que, a ir avante, irão comprometer por mais uns anos o desenvolvimento da ciência portuguesa.
É infeliz que, mais uma vez, um governante pretenda reinventar a roda e lançar um novo ciclo glorioso, marcado com o seu cunho iluminado, em vez de colher na experiência passada alguns princípios básicos e algumas ideias que funcionam para o financiamento da investigação. Poderíamos certamente avançar mais depressa e no caminho certo. Mas a principal preocupação do Governo neste domínio — como em muitos outros — foi mais uma vez a de tentar convencer o mundo de que está tudo por fazer e que não há alternativa senão recomeçar do zero. É um desperdício infeliz.

É infeliz que, mais uma vez, aquilo que devia ser um plano sério — ainda que eventualmente árido — seja apimentado com algumas medidas avulsas hollywoodescas, capazes talvez de captar a atenção de alguns media, mas que nada contribuem para resolver o problema da ciência em Portugal. São exemplo disso a anunciada contratação dos cérebros fugidos de Portugal e que poderão voltar (com uma extraordinária bolsa por dois-anos-dois!) caso possuam 100 artigos científicos publicados em revistas indexadas internacionalmente e 200 citações. O grande divertimento dos blogues de cientistas dos últimos dias tem sido tentar encontrar investigadores que preencham as condições. Parece que António Damásio as preenche. Estamos certos de que se lhe acenarem com a perspectiva de trabalhar com uma bolsa durante dois anos em Portugal abandonará o seu instituto no Ohio.

É infeliz que, mais uma vez, as ciências fundamentais e as ciências sociais e humanas sejam preteridas (e note-se que desta vez não se trata de ser preterido num concurso ou num programa, mas de o ser na filosofia de base do financiamento do Estado, o que é uma condenação perpétua) com base na ideia vendável mas falsa de que só a tecnologia contribui para o desenvolvimento e o bem-estar e de que a ciência de base é (como a cultura) um luxo bom para os ricos mas a que os remediados não se podem dar. A ideia é falsa quanto mais não seja porque não se sabe à partida numa investigação o que será de facto aplicado. Quantos projectos de investigação "aplicada" foram dinheiro deitado à rua? E quantos projectos de ciência "pura" não levaram a novos produtos e novos desenvolvimentos? E as ciências sociais, para além do seu etéreo contributo cultural, difícil de medir em euros, não terão nada a ver com o desenvolvimento?

É infeliz que medidas desta importância sejam postas à discussão durante pouco mais de duas semanas. E é exemplar da credibilidade deste "período de discussão pública" o facto de, passada uma semana, haver no site do ministério da Ciência... um único comentário.

É infeliz, finalmente, que mais uma vez reapareça a ideia messiânica das "áreas prioritárias a anunciar por portaria", cuja inutilidade se conhece tão bem. Não penso que a excelência científica intrínseca de um projecto deva ser o único critério de avaliação e financiamento da investigação — mas voltar à ideia das listas de áreas prioritárias é de uma ingenuidade que seria tocante se não fosse ridícula. Este tipo de esforço voluntarista poderia compreender-se se Portugal fosse os EUA mas, com o nível de financiamento da investigação portuguesa, é particularmente absurdo.

Porque é uma actividade de longo prazo a ciência precisa antes de mais de estabilidade, de um financiamento basal garantido de bom nível, atribuído com exigência, rigor e transparência; precisa de uma política de emprego científico que dê perspectivas para além de dez anos de profissão e precisa depois de grandes apostas consensuais, bem enquadradas institucionalmente, mantidas com flexibilidade mas também com tenacidade, durante anos e anos. Não ao sabor da última sondagem de popularice.

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