segunda-feira, dezembro 31, 2012

As coisas urgentes que temos de fazer em 2013


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Dezembro de 2012 (excepcionalmente, uma segunda-feira, porque não há edição no dia 1 de Janeiro)
Crónica 52/2012

Seguro para a rua. Passos Coelho para a rua. Esquerda a falar. Programa de esquerda. Eleições. Governo de esquerda. Bom 2013.

Vivemos 2012 com esta mistura de espanto e de indignação, de urgência e de impotência, de revolta e de desespero, de ódio e de vergonha. Sabemos que batemos no fundo em termos de bem-estar, de solidariedade social, de moralidade no Governo, de dignidade na política, de exercício da cidadania, de democracia, de confiança nas instituições, de confiança uns nos outros, de confiança no futuro, de dignidade. Sabemos que começamos a ter vergonha de nos olhar nos olhos na rua, que as costas estão mais curvadas, as roupas mais baças, as expressões mais carregadas. Sabemos também que este fundo em que caímos se vai afundar ainda mais e que novos abismos se vão abrir em 2013 porque a decência deste Governo é inexistente, porque os interesses inconfessáveis que serve não se encontram em nenhuma linha da Constituição.

Sabemos que as coisas podem sempre piorar e que, em 2013, as coisas vão mesmo piorar.
Mas sabemos também que as coisas não podem piorar ainda mais sob pena de ficarem piores para sempre e de condenarmos o país ao desalento e à miséria eterna.

O que fazer?

É evidente que é necessária uma alternativa a esta política e que isso passa por uma alternativa a este Governo. A alternativa a este Governo terá de passar, no quadro institucional, pela queda do Governo por falta de apoio parlamentar, pela demissão do primeiro-ministro ou pela sua exoneração pelo Presidente da República ou pela dissolução da Assembleia da República pelo PR.

Mas é pouco provável que o PR tome qualquer iniciativa sem ser a tal obrigado, conhecida como é a sua aversão a qualquer tipo de acção autónoma e a disposição placidamente contemplativa que adoptou nos últimos anos. E há outro problema: a situação narcotizada do Partido Socialista e o facto do seu secretário-geral se encontrar em estado de vida vegetativa não anima ninguém em seu juízo a tirar o Pedro de S. Bento para lá pôr o Tó Zé.

Há pois algo que o PS precisa de fazer urgentemente, a bem do país: encontrar uma nova liderança que dê aos portugueses a confiança suficiente para se lançarem de forma resoluta na exigência da demissão do Governo. Não tenho dúvidas de que a existência de António José Seguro é, neste momento, um dos grandes apoios do Governo e isto não apenas pela moleza da sua oposição: imaginar um Governo dirigido por António José Seguro é algo que faz um arrepio percorrer a espinha de muitos portugueses. Percebe-se bem. É que Seguro, para além da sua reduzida arte política, da sua tibieza, da sua falta de imaginação e de carisma, da sua verbosidade oca, daria uma terrível reputação à esquerda. Não porque Seguro fosse governar à esquerda, mas precisamente porque não o faria e porque a direita se aproveitaria do facto para repetir que a esquerda, afinal, não tem nada de novo para oferecer senão a mesma política da direita com retoques retóricos.

É fundamental o PS renovar a sua direcção (ou melhor: eleger uma) porque é evidente que, no actual quadro partidário, não é concebível uma alternativa de governo sem o PS, como todos sabem mas alguns se negam a admitir.

Substituir a direcção de António José Seguro é, portanto, a tarefa para 2013 que as pessoas responsáveis que estão no PS têm de levar a cabo. Não através de conspirações nocturnas, mas abertamente, às claras, assumindo responsabilidades, apresentando alternativas e correndo os riscos do combate político.

Também há trabalho a fazer para as pessoas honestas que estão no PSD e no CDS e que, à boca pequena, criticam o governo e se horrorizam com a falta de princípios de Relvas, com os tiques despóticos de Coelho, com o desaparecimento de Portas, com o financeirismo cego de Gaspar, com a falta de política, com o desemprego, com o empobrecimento, com a degradação da educação e da investigação, com a subserviência perante a Alemanha e a falta de política na Europa. Não haverá (além de Pacheco Pereira) mais algum social-democrata no PSD? Não haverá (além de Ribeiro e Castro) mais algum democrata-cristão no CDS?

Também há trabalho para o BE e para o PCP. Falar. Sem agenda. Entre si e também com o PS. Sem compromissos e sem medo. O verdadeiro pavor que a esquerda tem à esquerda, que não é apenas uma questão de escrúpulo ideológico mas que roça o pedantismo, é outro dos grandes apoios objectivos do actual governo. “Ao menos o PSD e o CDS conseguem entender-se. A esquerda é um saco de gatos. O que seria um Governo PS-BE-PCP!” diz a vox populi, mesmo quando as suas simpatias podiam estar à esquerda. A responsabilidade de encontrar alguns pontos comuns de acção pertence à esquerda e é uma tarefa à qual à esquerda tem continuado a fugir devido a pruridos maneiristas. Onde estão as medidas de esquerda que toda a esquerda defende colectivamente?

Também há votos e trabalho para os jornalistas: que em 2013 se dediquem a escalpelizar a actividade do Governo, do PSD, do CDS, das “empresas” e “empresários” que burlam o Estado (no BPN, por exemplo, mas não só) com o mesmo entusiasmo com que se entretiveram a escrutinar a vida de Artur Baptista da Silva. A função do jornalismo é fiscalizar os poderes. Bater no underdog é mais fácil, mas não é mais digno.

Temos muito trabalho para 2013. Bom ano. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 25, 2012

A imoralidade do spread ou como extorquir dinheiro sem risco

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Dezembro de 2012
Crónica 50/2012



Se for rico, o banco empresta-lhe dinheiro barato, com um spread baixo. Se tiver pouco dinheiro, o banco empresta-lhe dinheiro caro, com um spread alto.

O Governo aprovou nos últimos meses vários decretos que foram noticiados pela imprensa como visando “ajudar as famílias com dificuldades” a pagar os empréstimos contraídos para compra de habitação própria.

A leitura das notícias permite a qualquer leigo compreender que o principal objectivo das medidas não é proteger os devedores que se encontrem em risco de perder a sua casa devido a uma quebra dos seus rendimentos que os impeça de pagar as prestações da hipoteca (perda do emprego, por exemplo) mas sim a proteger os bancos, como é costume.

Essas medidas foram abordadas num pequeno dossier publicado anteontem neste jornal e já têm merecido muitos comentários críticos, mas gostaria de falar de uma delas: a  possibilidade de o banco subir o spread (ou seja: o juro da dívida), unilateralmente, nos casos de divórcio, quando a hipoteca deixa de ser assumida pelo casal (e garantida por dois ordenados) e passa a ser assumida apenas por um dos ex-cônjuges (apenas com um salário). A lógica dos bancos é clara: as condições podem ser renegociadas porque o titular do empréstimo/hipoteca muda. Deixa de ser A e B e passa a ser apenas A. É outro contrato, outro empréstimo, outras condições. E o spread (a margem do banco) pode subir sempre que o novo devedor apresente uma situação financeira mais frágil do que o casal - o que se supõe que aconteça em 99,99% dos casos.

A posição é de facto clara, o que é uma raridade quando se trata de bancos, mas é imoral, o que já está longe de ser uma raridade quando se trata de bancos.

A lógica do spread é simples: se você for rico, o banco empresta-lhe dinheiro barato, com um spread baixo. Se tiver pouco dinheiro o banco empresta-lhe dinheiro caro, com um spread alto. Parece-lhe iníquo? É, mas há um raciocínio na base desta iniquidade: os ricos representam um risco menor que os pobres, por isso os pobres têm de pagar um prémio de risco. Faz sentido? Vejamos.

Imagine que você é um assalariado com um baixo salário. E que negociou um empréstimo para comprar uma casa pelo qual o banco lhe pede um spread de 5%. Quando pergunta a razão para um spread tão alto, o banco explica-lhe: o seu salário é baixo, a prestação que vai ter de pagar representa uma percentagem elevada dos seus rendimentos, você representa um risco elevado de incumprimento, o banco tem de se proteger de si e das pessoas como você e para o fazer cobra um juro mais alto. Mas... e a garantia da casa hipotecada não chega para garantir o risco, pergunta você? O funcionário do banco finge que não percebe e o spread fica mesmo em 5%. Você aceita que o banco se queira proteger do seu risco de incumprimento mas tem uma carta na manga. Uma carta que você vai jogar daí a 25 anos.

No dia em que paga a última prestação do seu empréstimo, você vai ao banco e exige o reembolso do spread cobrado a mais durante os últimos 25 anos (4,5%, porque você sabe que o seu primo abastado teve um spread de 0,5%). E explica: quando lhe emprestaram o dinheiro não sabiam se você iria cumprir o plano de pagamentos. Era natural que exigissem uma caução. Mas você pagou sempre a horas, sem um atraso. Agora o banco sabe que você cumpriu. O que significa que o banco lhe cobrou indevidamente esse spread anormalmente alto, do qual pôde beneficar durante 25 anos. Agora, você quere-o de volta. Como uma caução.

Aí o bancário explica, uma gota de suor a começar a formar-se na testa, que as coisas não são assim, que era assim se os bancos funcionassem de uma forma honesta, mas não é o caso. Ainda que você tenha pago a horas, há pessoas como você que não pagaram e, como o banco não se contentou em ficar com as casas delas, você precisa de pagar pelo risco delas. É uma questão de risco solidário, o seu grupo de devedores tem um risco elevado e todos os membros do grupo pagam pelo risco de todos os outros. Você parece ter percebido, o bancário suspira.

Aí você pergunta porque é que o seu primo não entrou no grupo para contabilização do risco. Pergunta porque é que, se querem mutualizar o risco, porque é que não o fazem para o conjunto dos clientes do banco. E pergunta se o banco não sabe que os spreads altos aumentam o risco de incumprimento e se tornam, de facto, profecias auto-realizadoras para os devedores com menos rendimentos. Explica que, se o spread fosse mais baixo para os mais pobres, estes cumpririam mais, o risco do banco seria mais baixo e todos poderiam ficar melhor. O bancário diz, com paciência, que assim os ricos teriam de pagar um spread mais alto e que isso seria complicado. Por isso criam grupos de ricos e grupos de pobres, com spreads diferentes. É que é mais fácil roubar aos pobres, explica. Fim da história.

A imoralidade do spread é uma das fundações da actividade das instituições de crédito, mas seria possível trabalhar de outra forma. Se o spread visa compensar o risco deve ser tratado como uma caução - e, quando não se verifica nenhuma perda para o banco, deve ser devolvida a parte que excede o lucro devido. Em alternativa, o risco pode ser estimado para o conjunto dos clientes do banco, sem o recurso a critérios dualistas que apenas visam beneficiar ainda mais os ricos e extorquir ainda mais dinheiro dos pobres. (jvmalheiros@gmail.com)

segunda-feira, dezembro 24, 2012

O ano em que Passos Coelho matou o Natal


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Dezembro de 2012 (excepcionalmente, uma segunda-feira, porque não há edição no dia 25 de Dezembro)
Crónica 51/2012

Surpreende que um dos feriados eliminados não tenha sido o Natal, tal é a sanha anti-humanista dos rufias no poder

1. Este Governo neo-liberal perturba de tal forma toda a vida da sociedade e interfere com tal despudor na nossa vida que não é possível encontrar um rincão deste Natal onde ele não espreite, empeçonhando o que normalmente seria um momento de comunhão, de tranquilidade e de esperança. Do dinheiro que não há para prendas e festas à ansiedade perante o ano que vem, do receio pelo futuro dos nossos filhos à vergonha que sentimos pela pobreza crescente e à repulsa pelo reaparecimento da caridade como cínico instrumento de desumanização, tudo contribui para impedir que, mesmo no mais recolhido dos momentos, possamos acreditar que é possível dar, neste Natal, um passo em direcção à paz na Terra aos homens de boa vontade.

É curioso que não há na ideia de austeridade nada que contrarie o espírito cristão do Natal. Uma verdadeira austeridade rima com frugalidade, só que rima também com honestidade, igualdade e entre-ajuda, conceitos que escapam aos governantes que temos. Tudo o que se esconde atrás desta mascarada de austeridade que Passos Coelho, Vítor Gaspar, Miguel Relvas e Mota Soares representam é desigualdade, favorecimento, empobrecimento, benefícios aos ricos, subserviência perante os fortes, despotismo perante os fracos, hipocrisia, descaramento, desumanidade. O contrário do que gostamos de pensar que é o espírito de Natal. Surpreende que um dos feriados eliminados não tenha sido o Natal, tal é a sanha anti-humanista dos rufias no poder.

Este Natal haverá uma menina dos fósforos que vai morrer de frio e Passos Coelho vai fazer um brinde com Mota Soares e dizer-nos que está tudo a correr como previsto.
2. O que se pode fazer quando um Governo, formado com base num partido que foi o mais votado em eleições democráticas, com base em determinadas promessas eleitorais, viola flagrantemente e sistematicamente os seus compromissos? O que se pode fazer quando esse Governo se apoia numa coligação parlamentar que, apesar de todas as fissuras e incomodidades que exibe, parece disposta a apoiar o governo faça este o que fizer, destrua o que destruir e minta o que mentir? O que se pode fazer quando um Governo não hesita em meter a mão no bolso de todos os portugueses, incluindo os mais pobres mas protegendo os verdadeiros ricos, para financiar as "dívidas incobráveis" que os seus correligionários políticos deixaram no BPN? O que fazer quando um governo aproveita uma situação de emergência para vender património público em condições lesivas do interesse nacional? O que fazer quando um governo aproveita uma situação de emergência para pôr de lado a Reserva Ecológica Nacional e abrir caminho a todos os abusos? O que fazer quando um governo põe em prática uma estratégia de enfraquecimento do Estado para enriquecer as empresas que irão posteriormente vender os serviços essenciais de saúde, educação, protecção social, energia, água e transportes que o Estado vai deixar de fornecer? O que fazer quando o Governo abusa do poder de cobrar impostos para empobrecer os portugueses e fragilizar a posição dos trabalhadores perante os patrões? O que fazer quando o Governo prefere pagar juros agiotas aos banqueiros a fornecer protecção social aos mais fracos? O que fazer quando o governo tenta usar a polícia para intimidar os cidadãos, acusando pacíficos activistas de um crime inexistente de "manifestação não autorizada", à boa maneira fascista? O que fazer quando o Governo atropela os direitos dos jornalistas e permite que a polícia aceda a materiais protegidos pelo sigilo profissional sem se dar ao incómodo de obter um mandado judicial? O que fazer quando um governo coloca o país numa situação de chantagem tal que o próprio Tribunal Constitucional fecha os olhos ao que ele próprio considera inconstitucional? O que fazer quando um primeiro-ministro tem uma tal desfaçatez que acusa no Parlamento uma deputada de dizer falsidades, em tom intimidatório, quando esta cita uma declaração sua, feita meses antes, no mesmo Parlamento e que todo o país viu e ouviu? O que fazer quando se tem um Miguel Relvas no Governo? O que fazer quando se tem um Mota Soares na Solidariedade? O que fazer quando se tem uma Cristas no Ambiente? O que fazer enfim quando se tem um primeiro-ministro tão escassamente instruído, tão infantilmente birrento, tão desprovido de consciência social quanto de competências sociais, tão determinado quanto aos fins, tão indiferente quanto aos meios e tão flexível quanto aos princípios? O que fazer quando se tem um primeiro-ministro tão indiferente a Portugal e aos portugueses e tão subserviente perante poderes estrangeiros?

No quadro constitucional português, a instância a quem cabe resolver este nó górdio é o Presidente da República. Mas o que fazer quando este está demasiado ocupado a comer bolo-rei? Vamos perder a vida e o futuro e a liberdade por delicadeza, como no poema de Rimbaud? (jvmalheiros@gmail.com)

PS para PPC: Rimbaud é um poeta francês, mas não se incomode a ler. Leia antes “Lettres et le Néon”, um livro sobre publicidade do seu filósofo de cabeceira, Jean-Paul Sartre, que tem certamente na prateleira dos livros.

quarta-feira, dezembro 12, 2012

e-Crónica - Uma promessa eleitoral feita especialmente para si


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no site Publico.pt a 12 de Dezembro de 2012
e-Crónica 2/2012


A democracia é o regime do confronto de opiniões e das escolhas entre diferenças. Não pode ser o regime onde se escondem confrontos e se disfarçam diferenças.

Comece com uma base de liberdades várias. Liberdade de opinião e de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de associação e reunião. Misture bem e deite numa forma. Junte uma camada de partidos políticos condimentados com campanhas eleitorais e propaganda política cortada em fatias finas. Cubra com eleições feitas à base de voto universal, directo e secreto. Leve três meses ao forno, primeiro em lume brando e depois vá subindo a temperatura. Vá vigiando para não queimar. Vá regando com uma cobertura atenta da imprensa e preceitos constitucionais. Se não houver percalços, no fim da cozedura terá uma bela democracia, bem cozida por baixo e tostadinha por cima, que será a alegria de qualquer família.

É assim que gostamos de imaginar a nossa democracia. Como o resultado de uma velha receita de família, que começou a ser escrita há dois ou três séculos e que foi recebendo melhorias ao longo dos anos. Sabemos que há ingredientes que às vezes azedam, sabemos que há acidentes de percurso, mas no geral acreditamos que este regime permite auscultar a vontade do povo e representá-lo, graças à magia que acontece naquela cabine de voto isolada, onde uma cruz transfere (por uns anos) uma parte da nossa soberania para os nossos representantes eleitos.

Claro que sabemos que todos os actores políticos vão tentar convencer-nos da sua verdade, da bondade das suas soluções, da sua competência e da sua simpatia, mas isso faz parte do jogo do debate público, da discussão que gera a luz. E, seja como for, somos livres de escolher o que queremos e o que recusamos. Ou não seremos?

A manipulação dos consumidores e dos eleitores pelo marketing sempre fez correr rios de tinta mas é algo que pensamos que conhecemos bem. Conhecemos o poder do marketing sobre os nossas atitudes e comportamentos e por isso até existem leis que proíbem certos excessos na publicidade ou na propaganda política.

Só que... as coisas parecem estar a sofrer uma evolução pouco previsível graças à Internet, ao nosso uso das redes sociais, às bases de dados que não conhecemos mas onde vão sendo acumulados dados sobre tudo o que fazemos, dizemos, escrevemos, compramos, contestamos e admiramos e à tecnologia de data mining que permite agarrar numa massa informe de dados pulverizados e extrair informação que ninguém imaginava que estivesse lá. Informação sobre a firmeza das minhas convicções políticas, por exemplo, que permite concluir que não vale a pena investir dinheiro para mudar o meu sentido de voto. Ou informação sobre tudo aquilo que é passível de me fazer mudar de opinião, sobre a melhor maneira de o fazer, sobre o momento certo para o fazer, sobre os argumentos a usar, as fontes a citar.

Durante as últimas eleições presidenciais americanas a imprensa foi publicando algumas histórias sobre a forma como a campanha de Barack Obama estava a investir neste tipo de tecnologias (e a bater largamente Mitt Romney neste campo), mas era tudo bastante vago. Neste momento, com a eleição decidida, começa a haver um pouco mais de informação confirmada.

O que se sabe ao certo é que Obama investiu uma enorme quantidade de dinheiro na compra de dados sobre o comportamento de milhões de eleitores (não apenas o comportamento eleitoral, mas em muitas outras áreas) e reuniu equipas altamente sofisticadas de especialistas de informática e de ciências sociais para analisar esses dados. Não se sabe exactamente o que foi feito e com que ferramentas, mas uma das coisas que se sabe é que uma parte importante do conhecimento extraído destas bases de dados (com dados públicos) serviu para formatar a mensagem de Obama de forma a convencer os diferentes tipos de eleitores a que se dirigiu. É verdade que o marketing eleitoral sempre adaptou o discurso ao grupo-alvo que está à sua frente e que o discurso de um candidato não é o mesmo quando se dirige a mães solteiras ou a operários desempregados. Mas a táctica agora usada parece ter levado esta modulação do discurso a um nível nunca antes alcançado, graças a um conhecimento particularmente pormenorizado das características de cada um dos grupos em que o eleitorado foi dividido.

Não se trata apenas de fazer passar num dado canal de televisão a uma dada hora um anúncio dirigido ao perfil socio-demográfico que nesse momento vê esse canal. Trata-se de criar mensagens de mail destinadas a pequenos grupos com traços muito particulares. Não é a mesma coisa? Não. Porque o anúncio de televisão, por pouco visto que seja, acontece num espaço público onde está submetido a um escrutínio público e as mensagens de mail ou os telefonemas não. Um candidato pode assim apresentar-se de uma forma perante um dado grupo e de outra, completamente diferente, perante outro grupo, sem que isso seja perceptível do exterior. E nem precisa de mentir descaradamente. Basta que omita nas suas propostas, de cada vez, tudo o que sabe que pode alienar aquele votante e que inclua tudo o que o pode cativar. Isto significa que só em termos formais podemos dizer que as pessoas que votaram num dado candidato votaram de facto nas mesmas políticas. Não se conhece a extensão da modulação da mensagem do presidente eleito ou do seu adversário (todos o fazem) mas há razões para pensar que Obama o fez com maior eficácia, graças à sua Big Data Tactics. O facto, no entanto, não deve descansar os apoiantes de Obama, pois o custo elevado destas tecnologias e dos recursos humanos associados fazem recear que estas técnicas, em eleições futuras, possam passar a estar sempre do lado do candidato com mais dinheiro. A equipa de Mitt Romney estava desactualizada porque mantinha laços mais distantes com o mundo da alta tecnologia do que a de Obama. Mas já não estará da próxima vez.

A questão central que se coloca aqui é saber até que ponto é democrática a escolha colectiva de um candidato que tem lugar não num espaço público, numa arena onde se cruzam, à vista de todos, os argumentos de cada um e onde todos podem ver tudo, mas num espaço mais que privado, individual, onde cada promessa não é conhecida e não pode ser confrontada com as críticas do outro lado e os comentários da sociedade em geral e cujo cumprimento nem pode sequer ser posteriormente exigido.

A liturgia colectiva das eleições e o seu carácter universal não querem dizer apenas que todos votam, mas sim que todos participam, colectivamente, universalmente, de uma mesma campanha e de um mesmo debate. Uma eleição não é colectiva apenas no momento da soma dos votos. É-o desde o início, porque cada decisão individual de voto nasce do movimento colectivo da eleição, da campanha e do debate, do contraditório e do feedback. As eleições democráticas precisam do escrutínio que apenas uma total transparência concede, de um fórum onde todos possam ver tudo, e essa universalidade não pode ser substituída sem perigo por uma multiplicidade de conversas privadas, de seduções personalizadas sem escrutínio público.

A democracia é o regime do confronto de opiniões, das sínteses e das concessões e das escolhas entre diferenças. Não pode ser o regime onde se escondem confrontos e se disfarçam diferenças. A política personalizada para agradar a cada eleitor, um de cada vez, não é política. É apenas uma produção em série de mentiras políticas com alta incorporação tecnológica. A tecnologia para o fazer de forma cada vez mais eficaz já existe. Mas não deve ser utilizada.

Ainda que não se possa proibir a modulação do discurso político conforme a audiência - e há sempre audiências distintas, nunca há uma audiência formada pelo “grande público” - tem de ser possível a todos conhecer todas as mensagens difundidas, de forma que não seja possível maquilhar propostas políticas perante a opinião pública. E a tecnologia tem de procurar boas soluções para garantir esta visibilidade e este escrutínio. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 11, 2012

Da meritocracia considerada como uma das belas-artes

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Dezembro de 2012
Crónica 49/2012

Há quem pense que o mérito é um critério tão bom que apenas devem gozar de direitos humanos as pessoas que os mereçam

A palavra é bonita: mérito. Ter mérito. Merecer. Há uma ideia de justiça, de bondosa racionalidade associada ao mérito, de exigência e de justa recompensa. Ou não fôssemos nós um país tradicionalmente cristão, onde nos ensinam que a vida deve ser um longo caminho para merecer a bem-aventurança celestial. Ter mérito é bom. Ter mérito é merecer e todos queremos merecer. Merecer é ser digno de alguma coisa. Conquistar o direito a alguma coisa. Tornar-se merecedor. E todos queremos ser dignos, conquistar direitos, tornar-nos merecedores. Ter mérito também é ter uma aptidão especial que se soube desenvolver com perseverança, um talento que conseguimos desenvolver para nos tornarmos melhores que os outros, para ganhar, para vencer. E todos queremos ser melhores, ter aptidões e talentos e vencer. Há uma ideia de competição no mérito, mas uma justa competição, feita de esforço somado a habilidade natural, feita de regras consensualmente aceites, de confrontos leais, de vitórias dignas, de recompensas merecidas. As medalhas são sempre de mérito.
A meritocracia tem uma história longa (ainda que a expressão tenha pouco mais de cinquenta anos) e uma história nobre. O conceito da meritocracia nasceu em oposição aos privilégios herdados da aristocracia e ao direito divino, aos direitos de sangue da família e da raça, ao favoritismo e ao nepotismo, aos poderes passados de pais para filhos, à exclusão de qualquer tipo de mérito ou justiça na distribuição da riqueza e de poder, à perpetuação de uma casta no exercício do poder. E foi uma coisa boa.
A primeira organização onde surgiu a preocupação em premiar o mérito, a competência, para escolher os seus dirigentes e não os privilégios de família ou a riqueza foi a administração públicaet pour cause. Sem uma escolha baseada no mérito, as castas dirigentes entregavam a administração das riquezas do Estado aos filhos e sobrinhos ou aos seus correligionários políticos com o resultado que se conhece: o sequestro do Estado por grupos sem escrúpulos (aquilo a que hoje se chama os “partidos do arco do poder”). Foi a meritocracia que impôs os concursos públicos na Administração Pública em substituição das cunhas, ainda que seja possível defender que a única coisa que mudou foi a mecânica da cunha (onde antes se escrevia “Se V.Exa. se quisesse interessar pelo meu sobrinho...” hoje sussura-se “Tu podias fazer um concurso para um rapaz lá da distrital...”).
Em termos simples, a meritocracia quer dizer apenas isto: se uma pessoa tiver qualidades excepcionais, ela poderá alcançar o topo da organização onde trabalha e o topo da sociedade onde vive, seja qual for a sua origem social. Parece bonito e louvável. E hoje, além da Administração Pública, há muitas organizações que se gabam de ser meritocracias, das Forças Armadas à Universidade, e outras tantas que são criticadas por não o serem.
A meritocracia tem um problema: tem implícita a ideia de que nem todos merecem. Há quem mereça e há quem não mereça. Há uma ideia de selecção, de recompensa dos mais aptos. Isto não seria um problema em si se soubéssemos definir e delimitar os campos onde o mérito deve ser um critério. É evidente que nem toda a gente merece ganhar uma medalha de ouro na maratona, nem toda a gente merece ser chefe de uma repartição de finanças e nem toda a gente merece ser coronel dos Comandos. O problema não é esse. O problema é que há quem pense que o mérito é um critério tão bom que ele deve ser estendido a todos os domínios, mesmo aos direitos humanos. Ou seja: há quem mereça ter direitos e quem não os mereça. Está bem que há quem lhes chame Humanos e Universais mas isso é secundário.
É esta a posição do neoliberalismo, que critica por esse facto políticas como o Rendimento Social de Inserção (pobres ignorantes e sem trabalho não merecem nada) e que considera que não só há cidadãos que não merecem emprego (não sabem fazer nada) como, se estiverem desempregados algum tempo, até deixam de merecer subsídio de desemprego, casa, tratamentos médicos ou alimentação e devem apenas ter acesso a tudo isso se alguém lho dispensar como esmola.
E esta é a fronteira onde a bela meritocracia se torna fascista.
A facilidade com que esta fronteira é cruzada pode constatar-se pela frequência com que podemos ouvir reputados professores universitários, com uma formação que sugeriria maior sensatez e um cargo que recomendaria maior humanidade, defender a transformação da sociedade portuguesa numa sociedade meritocrática e defender que o mérito seja o único critério de acesso a qualquer benesse que a sociedade disponibilize ao cidadão. Dar-se-ão conta de que foi esta a argumentação usada pelos nazis para defender a eutanásia dos deficientes, aqueles que tinham “uma vida que não merecia ser vivida”, uma vida sem mérito?
E dar-se-ão conta de como é tristemente cómico vê-los, a todos estes defensores da meritocracia e da excelência académica, beijar o anel de Miguel Relvas sempre que a ocasião se proporciona? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 04, 2012

Uma subvenção vitalícia por debaixo da mesa?


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Novembro de 2012
Crónica 47/2012

Os actos da República devem obedecer a requisitos de equidade, transparência e justiça. Por que é preciso repetir isto tantas vezes?

As subvenções vitalícias dos ex-políticos, que podem ser acumuladas com salários privados (ou mesmo com salários públicos, como acontece na Madeira e como faz Alberto João Jardim), são uma imoralidade e um escândalo. Já sabemos que as subvenções vitalícias foram abolidas em 2005, mas os ex-titulares de cargos políticos que já tinham adquirido esse direito antes da sua abolição e que dele beneficiaram e continuam a beneficiar (ou os actuais titulares que o vão solicitar por terem adquirido esse direito antes de 2005) representam a pior face que a política tem para oferecer aos cidadãos. São a imagem de uma política praticada em benefício dos políticos que a exercem e não ao serviço do povo que ela deve servir.

Penso que a República deve ser generosa com os seus servidores. Mas essa generosidade deve ser exercida dentro de um estrito critério de equidade. Não me chocaria que um deputado ou um ministro que tivesse servido oito anos no seu posto ganhasse, por essa missão, o direito a uma reforma integral sobre o seu último salário como político. Mas é evidente que esse benefício deveria apenas poder ser usufruído após a idade de reforma ou em caso de doença ou invalidez que o incapacitasse de prover ao seu sustento. Tratar-se-ia de uma benesse, sem dúvida, a título de agradecimento pelos serviços prestados, que garantiria algum conforto na velhice a quem tivesse ocupado um cargo político, mesmo que depois disso não tivesse conseguido um único trabalho remunerado. Mas admitir que pessoas capazes de trabalhar e que mantêm uma intensa actividade profissional possam usufruir desta subvenção e acumulá-la com salários por vezes generosos a partir do momento em que abandonam o seu cargo político é mais do que chocante: é vergonhoso.

As pensões visam satisfazer as necessidades de quem já não pode trabalhar. Não podem ser suplementos salariais para os privilegiados. E o trabalho político apenas deve ter como compensação, além do justo salário durante o seu exercício e da justa reforma quando já não se possa trabalhar, o reconhecimento dos cidadãos.

Os actos da República devem obedecer a um outro requisito: o da transparência (por que é preciso repetir isto tantas vezes?). É absolutamente inadmissível que o Parlamento não esclareça imediatamente e com clareza quem beneficia de quê desde quando e quem solicitou que subvenções. O Estado não pode fazer pagamentos por debaixo da mesa nem os deputados receber subvenções às escondidas. Há algo que muita gente na política (curiosamente costumam estar no aristocraticamente chamado “arco do poder”) continua a não perceber: os políticos devem prestar contas aos cidadãos. E não apenas na altura das eleições. O dinheiro que o Estado usa é o nosso dinheiro. É o nosso dinheiro que paga estas subvenções vitalícias. E, acima de tudo, é a nossa vontade que dá legitimidade aos actos do Estado. Sugerir que existe alguma razão do foro da protecção da vida privada que impediria a publicação destes dados é disparatado (tanto mais que dados sobre milhares de pensionistas, reformados e recipientes de subvenções são diariamente publicados em documentos oficiais públicos). E dizer que a não publicação dos nomes dos deputados se deve a uma "orientação" da Comissão Nacional de Protecção de Dados é falso, pois a própria CNPD já afirmou que "nunca se pronunciou sobre a divulgação dos nomes dos deputados que solicitam à Assembleia da República a subvenção mensal vitalícia ou o subsídio de reintegração.” As subvenções vitalícias não se recomendam pela sua justiça, mas este baile de desmentidos ainda menos prestigia o Parlamento.

A relutância da AR percebe-se até um certo ponto. Todos os portugueses perceberam que a subvenção vitalícia cheira mal e os deputados pensam que é feio recebê-la. Mas a transparência da vida de um deputado faz parte dos ossos do ofício. Se estes deputados consideram que há algo de vergonhoso em pedir a subvenção vitalícia... não a peçam. Se não consideram, peçam-na, admitam-no e permitam a devida publicação da informação pelo Parlamento.

As subvenções vitalícias estão longe de ser, aliás, as únicas coisas bizarras na remuneração dos políticos em Portugal. Também temos um Presidente da República pensionista, que prescindiu do seu salário de PR para continuar a beneficiar de duas pensões cujo total era mais generoso. E temos uma Presidente da Assembleia da República que prefere igualmente receber uma pensão em vez do seu salário, por este ser inferior àquela. Ambos têm a lei do seu lado. Mas, ao preferir os dois mil euros suplementares da pensão (que não deviam receber) ao salário (que deviam receber) pelo exercício dos cargos que efectivamente ocupam, ambos contribuem para o descrédito da política e para o desprestígio das suas funções.

Precisamos de titulares de cargos públicos bem pagos (sim, penso que o PR, a presidente da AR e os deputados deviam ganhar mais), mas eles devem retirar do exercício das suas funções gratificação suficiente, para não se deixarem seduzir pelos dois mil euros suplementares a que têm direito caso invoquem outro estatuto que não o de dirigente político eleito. Não é digno. Não é bonito. (jvmalheiros@gmail.com)

Um orçamento de guerra civil

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Dezembro de 2012
Crónica 48/2012

Este orçamento é mentiroso, é ilegal, é ilegítimo, é imoral, é associal e belicista. E todos o sabem. Mas foi aprovado pelos deputados da maioria.

Raramente o Parlamento português deu de si mesmo uma imagem mais indigna do que esta semana, com a aprovação do Orçamento de 2013 pelos deputados da maioria. Bastaria para nos encher de vergonha o conteúdo do orçamento em si, um exercício impossível de cumprir segundo praticamente todos os observadores independentes, que promove o empobrecimento dos portugueses e amplia a desigualdade social, que reduz a progressividade dos impostos, que taxa como ricos os que mal emergem da linha de pobreza, que poupa o património e os rendimentos de capital dos verdadeiros ricos, que abandona qualquer ideia de desenvolvimento económico, qualquer preocupação com o bem-estar dos cidadãos, que transfere sem a menor vergonha para os bolsos dos agiotas credores o dinheiro que rouba do bolso dos desempregados e que, para mais, se baseia em estimativas que todos sabem absolutamente falaciosas.

O Orçamento de 2013 é mentira. Mas, pior do que ser mentira, é um orçamento de ataque ao povo português. É um orçamento de guerra. Não por ter sido imposto por uma situação de guerra, mas porque é um acto de guerra contra os pobres e a classe média, contra a democracia e a liberdade (de que liberdade goza um desempregado?). É um acto de revanchismo serôdio contra o 25 de Abril. Mais do que um confisco de salários e pensões é um confisco de direitos. É um confisco de democracia. É um acto de guerra civil. A jurista Teresa Beleza dizia na semana passada, na Conferência dos 50 anos do Instituto de Ciências Sociais (não a propósito do orçamento mas da situação política em geral), que "estamos a assistir a uma revisão constitucional clandestina". Este orçamento é parte dessa “revisão constitucional clandestina", de um golpe de Estado reaccionário que visa mudar o regime a pretexto da situação financeira. Este orçamento é ilegal porque inconstitucional, é políticamente ilegítimo porque nunca nada parecido com os seus objectivos foi sufragado em eleições, é imoral porque ataca os mais frágeis, é associal porque destrói o tecido social e a própria ideia de solidariedade e a confiança que mantém a sociedade, é belicista porque vai semear a doença, a fome, a morte e a discórdia. Mas foi aprovado pelos deputados da maioria.

O conteúdo do orçamento seria suficiente para marcar o dia 27 de Novembro de 2012 com um pedra negra, mas podia ser que, devido a uma febre cerebral selectiva, os deputados da maioria se tivessem deixado seduzir pelo sorriso de Vítor Gaspar. Podia ser que acreditassem sinceramente que da miséria que se abaterá sobre os portugueses no primeiro semestre de 2013, nascerá inesperadamente a fénix da prosperidade no segundo semestre, logo no dia 1 de Julho de 2013, milagrosamente, como diz Vítor Gaspar, e que tudo começasse a melhorar. Podiam acreditar que Gaspar era um mago, um rei mago. Podia ser. E, nesse caso, as suas acções mereceriam a mais absoluta contestação política, as suas faculdades mentais mereceriam algumas dúvidas, mas poderíamos ter alguma esperança pelas suas almas. Infelizmente, as coisas não se passaram assim. Numa estranha declaração de voto assinada colectivamente, os deputados do PSD vieram pilatamente lavar as suas mãos ("Não se vota com declarações de voto para lavar consciências", diria Heloísa Apolónia, dos Verdes), desligando-se com uma mão do orçamento que votavam com a outra. E o mesmo fizeram alguns deputados do CDS. Isto apesar de este ser um Parlamento eleito numa democracia, composto por homens e mulheres que nos juraram que eram livres, apesar de estes homens e mulheres se terem comprometido a servir com honra o povo português e a colocar os interesses do país acima dos do seu partido e dos da sua carreira. Apesar de estes homens e mulheres se terem comprometido a obedecer à Constituição e à sua consciência, acederam a votar, por discipina partidária, um documento de que conhecem os perigos e do qual se tentam em seguida desvincular. Em francês chama-se a isto querer a manteiga e o dinheiro da manteiga. Em português, diz-se que isto é querer estar bem com Deus e com o Diabo. Em qualquer língua é uma vergonha.

A história do deputado CDS da Madeira Rui Barreto, que votou contra o orçamento, é ainda mais escandalosa. Pois não é que este deputado, a quem pagamos para “exercer livremente o seu mandato”, nos termos da Constituição, votou como votou porque recebeu instruções do presidente do CDS/Madeira, José Manuel Rodrigues, para o fazer? Não haverá nenhuma lei contra isto de dar ordens aos deputados sobre o seu sentido de voto, seja o partido ou a secção regional?

É por isto que o dia 27 de Novembro de 2012 ficará na nossa pequena história como o Dia da Indignidade do PSD e do CDS. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, novembro 22, 2012

e-Crónica - Facebook: o achatamento das nossas vidas


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no site Publico.pt a 22 de Novembro de 2012 (http://www.publico.pt/tecnologia/noticia/facebook-o-achatamento-das-nossas-vidas-1573410)
e-Crónica 1/2012

Quando falamos no Facebook dizemos mais do que gostaríamos, porque dizemos tudo a todos.

Não é preciso ser Fernando Pessoa nem sofrer de personalidade múltipla para ser várias pessoas. Todos somos várias pessoas. Todos temos várias versões do nosso eu, várias personae, que activamos e desactivamos ao longo do dia conforme as circunstâncias e os interlocutores, que modulamos automática mas precisamente no espaço de uns segundos, de forma a obter o máximo benefício possível das nossas interacções com os outros. Não mostramos a mesma personalidade quando falamos com a nossa namorada ou com o pai da namorada. Não falamos com os nossos filhos como falamos com o nosso chefe no trabalho. Não contamos as mesmas anedotas à nossa mãe e aos colegas do trabalho. Nem sequer somos os mesmos com os amigos do futebol e os amigos da universidade. O nosso tom de voz muda, a atitude corporal muda, o olhar, as interjeições, o léxico, a maneira de rir.
Vivemos bem com esta multiplicidade de eus. Satisfaz-nos as várias facetas da personalidade. Podemos ser reflectidos e atrevidos, tímidos e espalhafatosos, sérios e brincalhões, prudentes e aventureiros, serenos e frenéticos, todas essas coisas que todos somos.
Na vida real podemos ser uma coisa para cada pessoa, uma pessoa para cada circunstância. Sem que cada um saiba como somos para os outros. Mas nas redes sociais tudo muda.
E muda porque na web usamos apenas uma personalidade. Sim, é verdade que podemos criar vários avatares, heterónimos com vidas próprias, cada um com os seus gostos e idiossincrasias, mas só quem tenha realmente tentado fazê-lo sabe como isso é difícil de gerir. Tão difícil que rapidamente se abandonam os heterónimos. Quando comecei a usar o Facebook também o tentei fazer, criando um perfil profissional e outro pessoal - há muita gente que ainda o faz - mas a dificuldade começa na definição das fronteiras. Os dois mundos têm demasiadas intersecções, há demasiadas coisas que queremos partilhar com ambos. E há muitas coisas que só queremos partilhar com um subconjunto de um desses mundos, ou com um subconjunto dos dois - os que são do nosso clube, os amantes de poesia.... É demasiado complicado, ingerível. Enganamo-nos, publicamos isto sob a personalidade do outro, trocamos amigos. Exige a paciência de um obsessivo e mais tempo livre do que temos. Começamos a meter as mesmas pessoas nas duas redes e os dois grupos acabam por ficar iguais um ao outro, acabamos a assumir que somos só um, com tudo ao molho, com amigos que não se falam uns aos outros, cheios de contradições e gostos heterogéneos.


Na vida real podemos dizer tudo mas apenas uma parte a cada um. Nas redes dizemos tudo a todos, ao mesmo tempo. Há um achatamento de todos os planos da nossa vida num único, como quando fazemos flatten num programa de desenho. Sim, é possível seleccionar, criar grupos, definir privilégios, escolher com quem se partilha o quê - mas, mais uma vez, já o tentaram fazer? É possível mas trabalhoso. Acabamos sempre por concluir que não vale a pena. Para quê? Não temos nada a esconder!

Esta é, para mim, uma das principais características do Facebook: a perda (relativa, não absoluta) da multidimensionalidade das nossas relações. Quando falamos no Facebook dizemos mais do que gostaríamos, porque dizemos tudo a todos. Claro que satisfaz o nosso voyeurismo (“Olha, a Maria faz culturismo!”) e claro que há demasiada informação para que toda a gente repare em tudo o que nos diz respeito. Estamos relativamente protegidos pela densa nuvem de dados. Mas com um mínimo de atenção uma pessoa conhecida mas com quem habitualmente não partilharíamos informação conhece todos os membros da nossa família, onde trabalham e quando fazem anos, conhece as nossas ideias políticas, paixões clubísticas, preferências políticas e literárias, o que fazemos nas férias, que livros lemos, que filmes vemos e, claro, quem são os nossos amigos, colegas e conhecidos. E isto quando se trata de um amador. Porque um bom programa de data mining, daqueles que são usados pelos serviços de informações, consegue escavar mais fundo e concluir, pela análise textual do que escrevemos e pelo nosso ciclo de actividade online quase tudo o que nos passa pela cabeça (estado de saúde, estado de espírito). Se tivesse Facebook George Smiley nunca teria precisado de sair de Oxford.


Qual é o problema? Para começar há (terríveis) problemas de privacidade. Há quem anteveja nos próximos anos uma epidemia de abusos em relação aos adolescentes de hoje que, impensadamente, se habituaram a viver na rede, em estado de e-comunitarismo total e permanente, partilhando pormenores íntimos e fornecendo, sem o saber, dados que podem prejudicar seriamente a sua possibilidade de obter uma bolsa, de conseguir um emprego ou uma promoção, de ter um empréstimo do banco, de fazer um seguro de saúde, etc. Pode não se tratar de algo muito violento. Numa sociedade relativamente aberta e com algumas protecções democráticas, como aquela em que ainda vivemos, isso pode não significar risco de prisão por crime de opinião ou condenação ao ostracismo devido às preferências sexuais. Mas significa que certas pessoas, com algumas fragilidades (uma tendência para a depressão, uma vida amorosa infeliz, uma família disfuncional, uma linguagem pouco cuidada, amigos pouco recomendáveis, atitudes demasiado assertivas, preferências heterodoxas de qualquer tipo, sejam elas vestimentárias ou alimentares), podem ter uma vida um tudo-nada mais difícil que as outras. Pode ser uma coisa estatística, um desvio ligeiro. Mas isso, ao longo dos anos, pode ir empurrando pessoas com determinadas características para novos ghettos - bolsas de desemprego, de menor protecção social, menos acesso a todo o tipo de bens.


Mas isso não é tudo. Este achatamento dos vários planos da nossa vida numa comunicação cândida do que fazemos, pensamos, gostamos e desejamos, numa esfera aparentemente global, padece de dois defeitos: ela nem é suficientemente privada, nem totalmente pública, situando-se num limbo vago de meias-tintas relacionais e sociais.
O que estaremos a perder com esta insuficiência de intimidade, com esta escassez de silêncio, de recolhimento, de reflexão íntima, de modéstia, de introspecção, com estes novos hábitos de pensar-dizer e de sentir-dizer que se instalaram na juventude? Não sei. Mas receio que algo se perca de importante.


Por outro lado, se comunicar no Facebook é comunicar num novo “espaço público”, de infinitas e interessantes possibilidades, esse espaço é, de facto, fragmentado. Um conjunto de bolhas, que se interesectam e onde existem inúmeros vasos comunicantes, é certo, mas mundos independentes. Se é certo que se pode lançar uma informação no Facebook que dá a volta ao mundo num dia, é igualmente verdade que muito do que se passa aqui é absolutamente opaco para o mundo. É por isso que, apesar do Facebook, a imprensa e o jornalismo continuam a desempenhar um papel fundamental, na criação de um verdadeiro espaço público, verdadeiramente aberto a todos e partilhável por todos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 20, 2012

A quem servem as pedras?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Novembro de 2012
Crónica 46/2012

Não é aceitável em caso algum que um agente infiltrado se permita actos de violência ou incitamento à violência

Que razões podem existir para, no decurso de uma manifestação contra o Governo, atirar uma saraivada de pedras da calçada aos polícias que guardam o Parlamento?


O gesto poderia ser compreensível como uma manifestação incontível de raiva, numa situação de enorme tensão, eventualmente como retaliação por uma agressão previamente praticada pela própria polícia sobre os manifestantes. No entanto, mesmo numa situação deste tipo, onde esta acção teria uma justificação moral, ela apenas se voltaria contra os seus autores, justificando maior repressão.


O gesto poderia ser compreensível se se tratasse de um gesto simbólico de repúdio e denúncia, perante uma polícia que assumisse de forma violenta o papel de defensor de um Governo desrespeitador dos direitos dos cidadãos e dos seus compromissos perante os eleitores (como este é). No entanto, não há nada de simbólico numa pedra de calçada arremessada contra uma pessoa. Enquanto um ovo lançado contra um polícia pode transportar uma forte carga simbólica, o objectivo de uma pedrada é sempre provocar violência. A pedrada até pode ser uma consequência de estar mal disposto, como a metafísica, mas, tal como o Esteves, não tem metafísica nenhuma.


Por que se atiram pedras? Para desencadear a revolução? Não parece verosímil. A revolução exige muita gente e, se fosse esse o objectivo, os atiradores de pedras estariam envolvidos num enorme trabalho de fundo junto do povo para os incentivar à prática.
Por que se atiram pedras então? Vejo duas razões: “porque é giro”, uma opção seleccionada pela esmagadora maioria dos respondentes abaixo de 50 de QI, ou porque se pretende fornecer argumentos para uma dura repressão policial de futuras manifestações e porque se pretende amedrontar futuros manifestantes e evitar grandes manifestações como a de 15 de Setembro.


Ou seja e de facto: aqueles que, na manifestação de dia 14 de Novembro, se entretiveram a lançar pedras e outros projécteis à polícia são agitadores que apenas beneficiam as forças mais reaccionárias no poder e que limitam de forma inaceitável a liberdade de manifestação de todos os cidadãos. Se estes agitadores são jovens mentecaptos ou se são pagos por serviços de informação capturados por interesses privados interessados em proteger o Governo não sei. Mas o resultado não é muito diferente.


Posto isto quanto aos manifestantes apedrejadores, é preciso dizer outras coisas: 


1. A polícia podia e devia ter detido os apedrejadores muito antes de a situação ter atingido a gravidade que atingiu e é incompreensível que não o tenha feito. A única explicação razoável para a polícia não o ter feito é que os seus superiores (quem?) tenham desejado um crescendo de violência para poder reagir com mais brutalidade. Esta posição é inaceitável. Inaceitável porque expôs polícias e civis a um risco evitável. Inaceitável porque só se compreeende ao serviço de uma estratégia política que visa justificar o endurecimento da acção policial e o cerceamento de liberdades.


2. A polícia tem todo o direito de infiltrar agentes no meio da manifestação e é natural que estes se comportem como manifestantes comuns. Mas não é aceitável em caso algum que estes agentes se permitam actos de violência ou incitamento à violência. Porque isso são crimes. Seria bom que tivéssemos a certeza de que isso não aconteceu. Não temos.


3. É evidente que o zelo persecutório da polícia, uma vez dada a ordem de “limpeza”, foi excessivo, com perseguições e agressões injustificadas. As imagens mostram isso. Os testemunhos referem isso. Esse zelo foi, provavelmente, uma consequência do apedrejamento continuado e, provavelmente, era o objectivo de quem deu ordens à polícia para não deterem os apedrejadores, mas seria bom que a formação da polícia permitisse evitar estes abusos, que podem acontecer uma vez numa situação de tensão, mas acontecem com demasiada frequência.


4. As condições em que foram feitas as detenções, com revista humilhante dos detidos, sem contacto com advogados, sem informação sobre as acusações que lhes eram feitas e pressões para assinar documentos incompletamente preenchidos lembram de forma inquietante a ditadura. É fundamental lembrar o ministro da Administração Interna que o Estado de direito não é um pormenor de que se pode prescindir quando há um bocadinho de pressa.


5. Finalmente, é inquietante que o ministro Miguel Macedo tenha sido tão mal informado pela sua polícia e/ou nos tenha mentido descaradamente quanto ao facto de não haver polícias infiltrados na manifestação. O que dizer quando o ministro se mostra ofendido com a pergunta sobre os infiltrados, garantindo que isso não aconteceu, para ser desmentido pela própria PSP no dia seguinte?


O que dizer quando chegámos a um momento da nossa vida política em que um comentário sobre a seriedade de um ministro não se pode referir senão à sua expressão facial? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 13, 2012

A propaganda neoliberal e a demissão dos media

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Novembro de 2012
Crónica 45/2012

A maior vitória do neoliberalismo é esta, os ataques que os pobres desferem uns contra os outros

Agora é raro o dia sem uma petição. É rara a semana sem uma manifestação. Causas urgentes e necessárias, causas justas, às vezes questões de vida ou de morte, questões de direitos, de liberdade, de dignidade, de futuro. As petições não custam nada, é só assinar no computador. As manifestações são mais complicadas, é preciso ir, organizar o dia à volta da manifestação, saber onde é, por onde passa, quem convoca, que transportes apanhar, vencer a resistência a participar - não por comodismo, mas porque quase nunca estamos de acordo com tudo o que representa uma manifestação. É preciso negociar connosco próprios, ceder, defender o essencial e esquecer o acessório, pensar nos fins sem nunca esquecer os meios, medir vantagens e benefícios, participar na contestação mas não banalizar a contestação, mobilizar as pessoas mas não cansar as pessoas.


Agora todos os dias são dias de luta, mas esta luta atomizada em manifestações e petições, em debates e reuniões de trabalho, em artigos para os jornais e fotografias e posts e comentários nas redes sociais não tem um sentido definido. Muitos dos que contestam a austeridade quando ela lhes chega ao bolso concordam que gastámos acima das nossas possibilidades e que é preciso pagar e, se continuarmos a conversa, ainda defendem que o Estado corte nos gastos sociais dos outros. Muitos dos discursos de rua que começam a criticar este Governo e o anterior e os anteriores estendem rapidamente o seu ódio a todos os políticos, a todos os partidos e à própria política e acabam a criticar a democracia que entregou o poder aos arrivistas corruptos. Muitos dos que começam a criticar a falta de democracia na União Europeia acabam a demonizar os estrangeiros que só nos querem roubar o pouco que temos e a defender o isolacionismo.


A maior vitória do neoliberalismo é esta, os ataques que os pobres desferem uns contra os outros. O maior ataque ao Estado Social é este, o que se ouve nas conversas dos cidadãos comuns, que criticam os que beneficiam de apoios do Estado porque obrigam o Governo a aumentar os impostos. Que criticam as famílias que recebem o RSI e levam as crianças ao café para comer bolos, como se comer bolos fosse um direito dos nossos filhos mas não dos filhos dos outros. Que criticam os grevistas dos transportes, porque prejudicam quem quer ir trabalhar e não pode. Que criticam a classe média que vai aos hospitais públicos e gasta recursos do Estado mas tem dinheiro para ir aos hospitais privados. Que até são capazes de concordar com o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, que explica que acabar com os descontos no passe social é justo porque evita que Belmiro de Azevedo ande de autocarro a beneficiar dos nossos impostos.


Uma das coisas mais tristes desta crise é ser bombardeado com as mensagens-correntes de mail onde se denunciam os pretensos privilégios e os grandes salários de alguns. Nalguns casos, raros, a indignação é legítima. Há gastos excessivos, sumptuários, onde devia haver contenção e frugalidade no uso de dinheiros públicos. Mas em muitos casos a indignação é não só disparatada mas cirurgicamente orientada para desviar as atenções das benesses de que goza o capital. Enquanto umas centenas de ingénuos se indignam com os salários de certas estrelas da televisão (“Envia esta mensagem a vinte dos teus amigos!”), não dizem uma palavra contra os juros cobrados a Portugal pela “ajuda externa”, contra o escândalo do BPN e das PPP, contra os benefícios escandalosos concedidos aos bancos, as isenções fiscais das grandes empresas, a fuga legal aos impostos dos grupos económicos com sede na Holanda, o desvio de dinheiros para paraísos fiscais, os impostos inexistentes sobre os rendimentos do capital. Tudo isso é escamoteado pelo cachet de José Carlos Malato ou de Catarina Furtado.


A maior vitória do neoliberalismo é esta, é este discurso, uma vitória conseguida a golpes de propaganda repetida sem descanso, com a cumplicidade (frequentemente involuntária e acéfala) dos media.


É por isso que continuamos a ouvir Vítor Gaspar nos telejornais, repetindo as suas fantasias que nenhum raciocínio sustenta. Um dia, ele ou outra marioneta do Governo virá dizer-nos que a Terra é plana e os media, dando provas de equilíbrio e isenção, dirão, “Essa não é porém a posição do geógrafo Fulano de Tal, que sustenta, por seu lado, que...”


A responsabilidade dos media na alimentação deste discurso é central. É por isso que vemos, em movimentos cívicos como o Manifesto contra a Privatização da RTP ou a Iniciativa de Auditoria Cidadã à Dívida Pública ou a Rede Economia com Futuro, a necessidade de produzir e disponibilizar informação que os media deveriam produzir, filtrar, validar e difundir mas que não produzem, não filtram, não validam e não difundem. Os movimentos sociais estão a tentar fazer o trabalho que devia ser dos media mas eles ainda não perceberam, preocupados como estão em colocar o microfone bem próximo dos lábios de Vítor Gaspar. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, novembro 08, 2012

Um desafio à Chanceler Merkel - Carta aberta à chanceler Angela Merkel 1 - Novembro 2012

Lisboa, 7 de Novembro de 2012

Exma. Sra. Chanceler Merkel

Escrevemos-lhe em antecipação à sua visita oficial a Portugal no próximo dia 12 de Novembro. No programa dessa visita há uma oportunidade perdida: a Srª Chanceler vai falar com quem já concorda com as suas políticas. E mais ninguém. Julgamos poder afirmar que a maioria dos portugueses discorda das suas políticas e poderia ter consigo uma conversa honesta e para si instrutiva acerca do que se está a passar no nosso País e na Europa. Uma das primeiras coisas que lhe poderíamos explicar é como Portugal perdeu, só no último ano, 22 mil milhões de euros em depósitos bancários — mais do que aquilo que agora é obrigado a cortar em despesas sociais. Mas há mais: em transferências de capitais, Portugal perdeu pelo menos 70 mil milhões de euros desde o início da crise. Se este número faz lembrar alguma coisa é porque ele é praticamente igual ao montante do resgate ao nosso país. O que isto significa é que a insolvência de Portugal é, em primeiro lugar, o resultado das insuficiências das lideranças europeias e de gravíssimos defeitos na construção da moeda única. Portugal tinha à partida problemas e insuficiências. Os cidadãos portugueses sabem disso melhor do que ninguém. É por isso que lhe podemos dizer: as políticas atuais agravam os nossos problemas e impedem-nos de os resolver. Quanto mais prolongadas estas medidas de austeridade forem, mais irreversíveis serão os seus efeitos negativos. É por saberem isso, por verem isso no seu quotidiano, que os portugueses estão angustiados e indignados. Talvez no seu breve percurso por Portugal possa ver que muitos de nós pusemos panos negros nas nossas janelas. A razão é muito simples: estamos de luto. Estamos de luto pelo nosso País. A Srª Chanceler virá entregar a cem jovens portugueses bolsas de estudo na Alemanha. Deveria saber a Srª Chanceler que os portugueses vêem como uma tragédia que a nossa juventude, a geração mais formada da nossa história, em que tanto investimos e de que tanto orgulho temos, esteja a abandonar em massa o nosso país por causa das políticas que a Srª Chanceler foi impondo. Esta sua ação é vista como mais um incentivo para a fuga de cérebros, de que tanto precisamos para a reconstrução do nosso país. A maioria dos portugueses não entende como é possível que não se procure criar condições para que os milhares de jovens licenciados que fogem de Portugal todos os anos queiram voltar para ficar. Tal como também se vive aqui como uma provocação a Srª Chanceler vir acompanhada de empresários alemães, com o propósito de fazerem negócios proveitosos para o seu país, mas desastrosos para o nosso que vê todos os dias nas notícias o seu património a ser privatizado para lucro de todos menos do povo português. E estamos de luto também pela Europa. O grau de distanciamento e recriminação entre os povos e os países da União é estarrecedor, tendo em conta a trágica história do nosso continente. Desafiamo-la a reconhecer, Srª Chanceler, que cometeu um grave erro ao ter recorrido a generalizações enganadoras sobre os povos do Sul da Europa — ao mesmo tempo que condenamos as expressões de sentimento anti-alemão que mancham o discurso público, onde quer que apareçam. As nossas nações europeias, todas elas históricas, são diversas entre si mas iguais em dignidade. Todas devem ser respeitadas e todas têm um papel a desempenhar na União. Cara Srª Chanceler, esta loucura deve parar. A Europa volta a estar dividida ao meio, não por uma cortina de ferro, mas por uma cortina de incompreensão, de inflexibilidade e de irrazoabilidade. Estamos disponíveis, enquanto seus concidadãos europeus, a abrir um verdadeiro debate transparente e participado sobre a saída desta crise e o nosso futuro comum, para que possamos fazer na nossa Europa uma União mais democrática, mais responsável, mais fraterna — e com mais futuro. Mude o programa da sua visita a Portugal. Fale com quem não concorda consigo. Use esta visita como um momento de aprendizagem. Use a aprendizagem para mudar de rumo. Com os nossos cordiais cumprimentos,

(Redactores/primeiros signatários)


Rui Tavares

Viriato Soromenho Marques
André Barata
Elísio Estanque
José Vítor Malheiros
Nuno Artur Silva
Ana Benavente
Marta Loja Neves
José Reis
Ana Matos Pires
André Teodósio
Ricardo Alves
Patrícia Cunha e França
Geiziely Glícia Fernandes
Vera Tavares
António Loja Neves
Paula Gil
João MacDonald
Evalina Dias
Miguel Real