terça-feira, dezembro 25, 2012

A imoralidade do spread ou como extorquir dinheiro sem risco

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Dezembro de 2012
Crónica 50/2012



Se for rico, o banco empresta-lhe dinheiro barato, com um spread baixo. Se tiver pouco dinheiro, o banco empresta-lhe dinheiro caro, com um spread alto.

O Governo aprovou nos últimos meses vários decretos que foram noticiados pela imprensa como visando “ajudar as famílias com dificuldades” a pagar os empréstimos contraídos para compra de habitação própria.

A leitura das notícias permite a qualquer leigo compreender que o principal objectivo das medidas não é proteger os devedores que se encontrem em risco de perder a sua casa devido a uma quebra dos seus rendimentos que os impeça de pagar as prestações da hipoteca (perda do emprego, por exemplo) mas sim a proteger os bancos, como é costume.

Essas medidas foram abordadas num pequeno dossier publicado anteontem neste jornal e já têm merecido muitos comentários críticos, mas gostaria de falar de uma delas: a  possibilidade de o banco subir o spread (ou seja: o juro da dívida), unilateralmente, nos casos de divórcio, quando a hipoteca deixa de ser assumida pelo casal (e garantida por dois ordenados) e passa a ser assumida apenas por um dos ex-cônjuges (apenas com um salário). A lógica dos bancos é clara: as condições podem ser renegociadas porque o titular do empréstimo/hipoteca muda. Deixa de ser A e B e passa a ser apenas A. É outro contrato, outro empréstimo, outras condições. E o spread (a margem do banco) pode subir sempre que o novo devedor apresente uma situação financeira mais frágil do que o casal - o que se supõe que aconteça em 99,99% dos casos.

A posição é de facto clara, o que é uma raridade quando se trata de bancos, mas é imoral, o que já está longe de ser uma raridade quando se trata de bancos.

A lógica do spread é simples: se você for rico, o banco empresta-lhe dinheiro barato, com um spread baixo. Se tiver pouco dinheiro o banco empresta-lhe dinheiro caro, com um spread alto. Parece-lhe iníquo? É, mas há um raciocínio na base desta iniquidade: os ricos representam um risco menor que os pobres, por isso os pobres têm de pagar um prémio de risco. Faz sentido? Vejamos.

Imagine que você é um assalariado com um baixo salário. E que negociou um empréstimo para comprar uma casa pelo qual o banco lhe pede um spread de 5%. Quando pergunta a razão para um spread tão alto, o banco explica-lhe: o seu salário é baixo, a prestação que vai ter de pagar representa uma percentagem elevada dos seus rendimentos, você representa um risco elevado de incumprimento, o banco tem de se proteger de si e das pessoas como você e para o fazer cobra um juro mais alto. Mas... e a garantia da casa hipotecada não chega para garantir o risco, pergunta você? O funcionário do banco finge que não percebe e o spread fica mesmo em 5%. Você aceita que o banco se queira proteger do seu risco de incumprimento mas tem uma carta na manga. Uma carta que você vai jogar daí a 25 anos.

No dia em que paga a última prestação do seu empréstimo, você vai ao banco e exige o reembolso do spread cobrado a mais durante os últimos 25 anos (4,5%, porque você sabe que o seu primo abastado teve um spread de 0,5%). E explica: quando lhe emprestaram o dinheiro não sabiam se você iria cumprir o plano de pagamentos. Era natural que exigissem uma caução. Mas você pagou sempre a horas, sem um atraso. Agora o banco sabe que você cumpriu. O que significa que o banco lhe cobrou indevidamente esse spread anormalmente alto, do qual pôde beneficar durante 25 anos. Agora, você quere-o de volta. Como uma caução.

Aí o bancário explica, uma gota de suor a começar a formar-se na testa, que as coisas não são assim, que era assim se os bancos funcionassem de uma forma honesta, mas não é o caso. Ainda que você tenha pago a horas, há pessoas como você que não pagaram e, como o banco não se contentou em ficar com as casas delas, você precisa de pagar pelo risco delas. É uma questão de risco solidário, o seu grupo de devedores tem um risco elevado e todos os membros do grupo pagam pelo risco de todos os outros. Você parece ter percebido, o bancário suspira.

Aí você pergunta porque é que o seu primo não entrou no grupo para contabilização do risco. Pergunta porque é que, se querem mutualizar o risco, porque é que não o fazem para o conjunto dos clientes do banco. E pergunta se o banco não sabe que os spreads altos aumentam o risco de incumprimento e se tornam, de facto, profecias auto-realizadoras para os devedores com menos rendimentos. Explica que, se o spread fosse mais baixo para os mais pobres, estes cumpririam mais, o risco do banco seria mais baixo e todos poderiam ficar melhor. O bancário diz, com paciência, que assim os ricos teriam de pagar um spread mais alto e que isso seria complicado. Por isso criam grupos de ricos e grupos de pobres, com spreads diferentes. É que é mais fácil roubar aos pobres, explica. Fim da história.

A imoralidade do spread é uma das fundações da actividade das instituições de crédito, mas seria possível trabalhar de outra forma. Se o spread visa compensar o risco deve ser tratado como uma caução - e, quando não se verifica nenhuma perda para o banco, deve ser devolvida a parte que excede o lucro devido. Em alternativa, o risco pode ser estimado para o conjunto dos clientes do banco, sem o recurso a critérios dualistas que apenas visam beneficiar ainda mais os ricos e extorquir ainda mais dinheiro dos pobres. (jvmalheiros@gmail.com)

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