segunda-feira, dezembro 24, 2012

O ano em que Passos Coelho matou o Natal


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Dezembro de 2012 (excepcionalmente, uma segunda-feira, porque não há edição no dia 25 de Dezembro)
Crónica 51/2012

Surpreende que um dos feriados eliminados não tenha sido o Natal, tal é a sanha anti-humanista dos rufias no poder

1. Este Governo neo-liberal perturba de tal forma toda a vida da sociedade e interfere com tal despudor na nossa vida que não é possível encontrar um rincão deste Natal onde ele não espreite, empeçonhando o que normalmente seria um momento de comunhão, de tranquilidade e de esperança. Do dinheiro que não há para prendas e festas à ansiedade perante o ano que vem, do receio pelo futuro dos nossos filhos à vergonha que sentimos pela pobreza crescente e à repulsa pelo reaparecimento da caridade como cínico instrumento de desumanização, tudo contribui para impedir que, mesmo no mais recolhido dos momentos, possamos acreditar que é possível dar, neste Natal, um passo em direcção à paz na Terra aos homens de boa vontade.

É curioso que não há na ideia de austeridade nada que contrarie o espírito cristão do Natal. Uma verdadeira austeridade rima com frugalidade, só que rima também com honestidade, igualdade e entre-ajuda, conceitos que escapam aos governantes que temos. Tudo o que se esconde atrás desta mascarada de austeridade que Passos Coelho, Vítor Gaspar, Miguel Relvas e Mota Soares representam é desigualdade, favorecimento, empobrecimento, benefícios aos ricos, subserviência perante os fortes, despotismo perante os fracos, hipocrisia, descaramento, desumanidade. O contrário do que gostamos de pensar que é o espírito de Natal. Surpreende que um dos feriados eliminados não tenha sido o Natal, tal é a sanha anti-humanista dos rufias no poder.

Este Natal haverá uma menina dos fósforos que vai morrer de frio e Passos Coelho vai fazer um brinde com Mota Soares e dizer-nos que está tudo a correr como previsto.
2. O que se pode fazer quando um Governo, formado com base num partido que foi o mais votado em eleições democráticas, com base em determinadas promessas eleitorais, viola flagrantemente e sistematicamente os seus compromissos? O que se pode fazer quando esse Governo se apoia numa coligação parlamentar que, apesar de todas as fissuras e incomodidades que exibe, parece disposta a apoiar o governo faça este o que fizer, destrua o que destruir e minta o que mentir? O que se pode fazer quando um Governo não hesita em meter a mão no bolso de todos os portugueses, incluindo os mais pobres mas protegendo os verdadeiros ricos, para financiar as "dívidas incobráveis" que os seus correligionários políticos deixaram no BPN? O que fazer quando um governo aproveita uma situação de emergência para vender património público em condições lesivas do interesse nacional? O que fazer quando um governo aproveita uma situação de emergência para pôr de lado a Reserva Ecológica Nacional e abrir caminho a todos os abusos? O que fazer quando um governo põe em prática uma estratégia de enfraquecimento do Estado para enriquecer as empresas que irão posteriormente vender os serviços essenciais de saúde, educação, protecção social, energia, água e transportes que o Estado vai deixar de fornecer? O que fazer quando o Governo abusa do poder de cobrar impostos para empobrecer os portugueses e fragilizar a posição dos trabalhadores perante os patrões? O que fazer quando o Governo prefere pagar juros agiotas aos banqueiros a fornecer protecção social aos mais fracos? O que fazer quando o governo tenta usar a polícia para intimidar os cidadãos, acusando pacíficos activistas de um crime inexistente de "manifestação não autorizada", à boa maneira fascista? O que fazer quando o Governo atropela os direitos dos jornalistas e permite que a polícia aceda a materiais protegidos pelo sigilo profissional sem se dar ao incómodo de obter um mandado judicial? O que fazer quando um governo coloca o país numa situação de chantagem tal que o próprio Tribunal Constitucional fecha os olhos ao que ele próprio considera inconstitucional? O que fazer quando um primeiro-ministro tem uma tal desfaçatez que acusa no Parlamento uma deputada de dizer falsidades, em tom intimidatório, quando esta cita uma declaração sua, feita meses antes, no mesmo Parlamento e que todo o país viu e ouviu? O que fazer quando se tem um Miguel Relvas no Governo? O que fazer quando se tem um Mota Soares na Solidariedade? O que fazer quando se tem uma Cristas no Ambiente? O que fazer enfim quando se tem um primeiro-ministro tão escassamente instruído, tão infantilmente birrento, tão desprovido de consciência social quanto de competências sociais, tão determinado quanto aos fins, tão indiferente quanto aos meios e tão flexível quanto aos princípios? O que fazer quando se tem um primeiro-ministro tão indiferente a Portugal e aos portugueses e tão subserviente perante poderes estrangeiros?

No quadro constitucional português, a instância a quem cabe resolver este nó górdio é o Presidente da República. Mas o que fazer quando este está demasiado ocupado a comer bolo-rei? Vamos perder a vida e o futuro e a liberdade por delicadeza, como no poema de Rimbaud? (jvmalheiros@gmail.com)

PS para PPC: Rimbaud é um poeta francês, mas não se incomode a ler. Leia antes “Lettres et le Néon”, um livro sobre publicidade do seu filósofo de cabeceira, Jean-Paul Sartre, que tem certamente na prateleira dos livros.

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