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terça-feira, maio 19, 2015

O que acontece quando ninguém guarda os guardas?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Maio de 2015
Crónica 19/2015


Permitir este tipo de abusos significa incentivá-los. Corresponde a dizer às polícias que este é o tipo de atitude que se espera delas.

As imagens são do último domingo, captadas junto ao Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, após o final do jogo Vitória de Guimarães-Benfica.

Um homem está acompanhado por duas crianças e por um homem mais velho. O homem e as crianças têm camisolas do Benfica; o mais velho, camisa branca. Parecem um pai com dois filhos e um avô que foram ao futebol. São mesmo. Os dois filhos têm nove e 13 anos. Vemos a criança mais pequena sentada num murete e o pai parece estar a ajeitar-lhe a roupa. Ao pé estão dois agentes da PSP. O pai parece queixar-se de alguma coisa ao polícia. Queixa-se mesmo. De o terem obrigado a ficar no estádio mais de meia hora antes de o deixarem sair. De súbito, o polícia mais próximo, de luvas pretas, avança para ele atropelando pelo caminho a criança mais pequena, esmurra-o ou empurra-o com violência, atira-o ao chão e lança-se sobre ele. O homem mais velho tenta deter o agressor, que se volta para ele e o agride com dois murros na cara. Surgem imediatamente três polícias do Corpo de Intervenção, um dos quais agarra por trás, pelo pescoço, o pai agredido, que se levantava, e atira-o de novo ao chão, enquanto o primeiro agressor o agride à bastonada. Um polícia de choque interpõe-se para evitar que o avô se aproxime. O rapaz mais velho tenta aproximar-se para proteger o pai mas é agarrado por outro polícia de farda azul antes que ele se aproxime do polícia das luvas pretas que, ainda de bastão na mão, parece disposto a agredi-lo também. Outro polícia de choque, de capacete e escudo, corre atrás da criança mais pequena que chora e grita apavorada e agarra-a. A câmara volta a focar o homem, no chão, que continua a ser agredido à bastonada pelo polícia de luvas pretas, enquanto uma meia dúzia de polícias observa e mantém afastados transeuntes que tentam intervir para pôr fim à agressão. Não há, em momento algum, qualquer gesto de violência por parte de nenhum dos elementos da família. Não há, em momento algum, qualquer tentativa, por parte de algum agente, de chamar à razão o polícia de luvas pretas que, sabemos depois, é o comandante da esquadra de investigação criminal da PSP de Guimarães.

Temos tendência para dizer que não há maior baixeza moral do que abusar da força perante os mais fracos, mas há e vemo-la aqui: um agente da polícia, um profissional armado e treinado no uso da violência, com responsabilidades de chefia, abusa da sua autoridade e da sua força e agride um pai e um avô que não tinham esboçado qualquer gesto de agressão, à frente dos seus filhos e netos menores e perante o seu desespero. Não há maior baixeza do que esta.

O agente dirá em sua defesa que o homem o insultou ou o provocou. Mas um polícia que não consegue controlar-se e só consegue responder a um insulto ou a uma provocação com uma agressão não pode ser polícia e muito menos comandante. Poderá talvez ser pastor ou faroleiro, uma actividade onde não tenha de interagir com muitos humanos.

O homem, não se sabe porquê (será acusado de se ter colocado no trajecto do bastão do polícia?), foi constituído arguido. O comandante das luvas pretas nem sequer foi suspenso, como seria normal, enquanto a PSP anuncia que irá analisar “em sede própria” os factos que todos pudemos ver.

Estas coisas acontecem. E acontecem em todos os países. O que diferencia um país civilizado de uma selva é o que acontece depois. Que haja um polícia violento que não consegue manter a cabeça fria, acontece. Que ele se mantenha ao serviço (e num posto de chefia) quando se sabe que age dessa forma, é intolerável.

Os episódios de violência policial são inúmeros em Portugal e é evidente que as polícias, a Inspecção-Geral da Administração Interna e o Ministério da Administração Interna não levam o fenómeno a sério, limitando-se a esperar que os casos sejam esquecidos. Percebe-se. Os agredidos e os abusados são em geral pobres ou remediados, contestatários (vejam-se as agressões durante manifestações) ou escuros (veja-se o recente e chocante caso da Cova da Moura). E convém a certas forças políticas que os portugueses tenham medo de sair à rua, de protestar, de defender os seus direitos, que se habituem a excessos por parte das autoridades, que se habituem a que as autoridades nunca sejam escrutinadas e sancionadas. O homem agredido no domingo não é, infelizmente, primo da ministra Anabela Rodrigues. Mas, num país democrático, a polícia não pode estar ao serviço das agendas políticas deste ou daquele grupo ou das preferências de classe dos governantes.

Permitir este tipo de abusos significa incentivá-los. Corresponde a dizer às polícias que este é o tipo de atitude que se espera delas. E, se isto é o que faz um comandante da PSP em público e perante câmaras de televisão, o que se passará atrás das paredes das esquadras e das prisões?

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, novembro 26, 2013

A violência, a procura de justiça e o regresso à democracia

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Novembro de 2013
Crónica 44/2013

A eleição deste Governo aconteceu com base numa fraude eleitoral

Há quem pense que, ao falar da “onda de violência que aí virá”, Mário Soares está a legitimar o uso da violência como arma política ou mesmo a convocar essa violência.
Paulo Portas foi um dos que achou que “as declarações de um antigo Presidente da República são graves porque elas significam, mesmo que involuntariamente, a legitimação da violência e em democracia a violência nunca é a forma adequada de manifestar uma opinião".

De facto, Soares não declarou que era legítimo usar da violência e apenas alertou para o facto de que o caminho que o Governo está a seguir pode levar à violência e que, precisamente por isso, deve ser imediatamente inflectido.

Não tenho a mínima dúvida de que Soares receia uma explosão de violência - quanto mais não seja porque, uma vez iniciada, ninguém pode prever a sua evolução. E não tenho notícia de que o PS, ou mesmo os “radicais” do BE ou do PCP, se preparem para enquadrar, controlar e liderar essa explosão de violência de forma que sirva os seus objectivos políticos.

Mas sejamos claros: se alguém pensa que a política seguida pelo actual Governo não contém qualquer risco de dar origem a situações de violência social deve começar a tomar os medicamentos que o médico receitou. Uma pessoa no seu juízo só poderia pensar assim se, devido a uma raríssima situação de privilégio, não tivesse sido minimamente atingida pela “austeridade”, se não conhecesse ninguém que o tivesse sido e se tivesse os filmes de António Lopes Ribeiro como único ponto de contacto com a realidade quotidiana dos portugueses. Basta andar na rua e ver e ouvir as pessoas para perceber como a “austeridade” afectou as vidas de todos, como o seu presente os humilha e os desespera, como o futuro dos filhos os angustia, como a sua raiva é palpável, como o seu sentimento de injustiça está ao rubro. E com razão. Não é fácil aceitar que os nossos filhos não vão poder frequentar a  universidade, que não podemos comprar os medicamentos de que a nossa mãe precisa, que o nosso filho com necessidades especiais não tenha apoio na escola, que o nosso salário tenha sido reduzido e não permita a extravagência de tomar um café, que a nossa filha esteja desempregada sem subsídio e precise de ajuda para pagar a luz e a água e toda a cascata de pequenas misérias e de tristes vergonhas em que a vida da maioria dos portugueses se tornou.

Como não é fácil aceitar que a sociedade mais justa, igualitária e livre que tentámos construir nas últimas décadas esteja a ser destruída pedra a pedra para favorecer um grupo de privilegiados. Ou que o nosso país esteja ocupado por potências financeiras estrangeiras e que o Governo português se demita de defender o seu país e adopte uma posição colaboracionista. Ou que a democracia tenha sido suspensa e substituída pela obediência aos ditames de Berlim e Frankfurt.

Paulo Portas tem toda a razão quando diz que “em democracia a violência nunca é a forma adequada de manifestar uma opinião". O pequeno problema é que a democracia não é esta coisa que temos, porque a democracia não se resume  a votar de quatro em quatro anos. Ou, se ainda é democracia, é “a democracia de baixa intensidade” de que, numa expressão (in)feliz, fala Boaventura de Sousa Santos. A democracia é o regime da escolha pelo povo e a eleição deste Governo aconteceu com base numa fraude eleitoral: foi eleito um partido com um programa e, uma vez contados os votos, outro partido com outro programa tomou o poder. Que o tenha feito mantendo o mesmo nome não é a questão substantiva.

Acontece porém que, quando a dignidade das pessoas e a sobrevivência dos seus filhos é posta em causa, a violência pode ser a resposta. Não só uma resposta compreensível, mas justa. Estou a apelar à violência? Não, porque o que resulta da violência não é forçosamente uma solução, nem é necessariamente melhor e pode ser muito pior ainda. Mas na raiz da violência pode estar - e esteve muita vez ao longo da história - uma mais do que compreensível exigência de justiça.

Vivemos um momento político particular: o Governo que temos, legalmente eleito, governa de forma ilegítima. Politicamente ilegítima porque o seu programa não foi sufragado. Socialmente ilegítima porque aumenta a desigualdade e a pobreza. Eticamente ilegítima porque mente e desrespeita os seus compromissos. E não existe uma forma de o parar na sua desfilada. O sistema incipiente de “checks and balances” que temos em Portugal não funciona. O Governo ignora oposição, parceiros sociais, manifestações, tribunais e a academia e o PR assobia para o lado. O cocktail é explosivo e, como diz Soares, a violência está à porta. E a violência é uma arma política legítima quando não existe outra arma possivel.

Se em democracia a violência política não é admissível, seria bom regressarmos rapidamente à democracia. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 20, 2012

A quem servem as pedras?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Novembro de 2012
Crónica 46/2012

Não é aceitável em caso algum que um agente infiltrado se permita actos de violência ou incitamento à violência

Que razões podem existir para, no decurso de uma manifestação contra o Governo, atirar uma saraivada de pedras da calçada aos polícias que guardam o Parlamento?


O gesto poderia ser compreensível como uma manifestação incontível de raiva, numa situação de enorme tensão, eventualmente como retaliação por uma agressão previamente praticada pela própria polícia sobre os manifestantes. No entanto, mesmo numa situação deste tipo, onde esta acção teria uma justificação moral, ela apenas se voltaria contra os seus autores, justificando maior repressão.


O gesto poderia ser compreensível se se tratasse de um gesto simbólico de repúdio e denúncia, perante uma polícia que assumisse de forma violenta o papel de defensor de um Governo desrespeitador dos direitos dos cidadãos e dos seus compromissos perante os eleitores (como este é). No entanto, não há nada de simbólico numa pedra de calçada arremessada contra uma pessoa. Enquanto um ovo lançado contra um polícia pode transportar uma forte carga simbólica, o objectivo de uma pedrada é sempre provocar violência. A pedrada até pode ser uma consequência de estar mal disposto, como a metafísica, mas, tal como o Esteves, não tem metafísica nenhuma.


Por que se atiram pedras? Para desencadear a revolução? Não parece verosímil. A revolução exige muita gente e, se fosse esse o objectivo, os atiradores de pedras estariam envolvidos num enorme trabalho de fundo junto do povo para os incentivar à prática.
Por que se atiram pedras então? Vejo duas razões: “porque é giro”, uma opção seleccionada pela esmagadora maioria dos respondentes abaixo de 50 de QI, ou porque se pretende fornecer argumentos para uma dura repressão policial de futuras manifestações e porque se pretende amedrontar futuros manifestantes e evitar grandes manifestações como a de 15 de Setembro.


Ou seja e de facto: aqueles que, na manifestação de dia 14 de Novembro, se entretiveram a lançar pedras e outros projécteis à polícia são agitadores que apenas beneficiam as forças mais reaccionárias no poder e que limitam de forma inaceitável a liberdade de manifestação de todos os cidadãos. Se estes agitadores são jovens mentecaptos ou se são pagos por serviços de informação capturados por interesses privados interessados em proteger o Governo não sei. Mas o resultado não é muito diferente.


Posto isto quanto aos manifestantes apedrejadores, é preciso dizer outras coisas: 


1. A polícia podia e devia ter detido os apedrejadores muito antes de a situação ter atingido a gravidade que atingiu e é incompreensível que não o tenha feito. A única explicação razoável para a polícia não o ter feito é que os seus superiores (quem?) tenham desejado um crescendo de violência para poder reagir com mais brutalidade. Esta posição é inaceitável. Inaceitável porque expôs polícias e civis a um risco evitável. Inaceitável porque só se compreeende ao serviço de uma estratégia política que visa justificar o endurecimento da acção policial e o cerceamento de liberdades.


2. A polícia tem todo o direito de infiltrar agentes no meio da manifestação e é natural que estes se comportem como manifestantes comuns. Mas não é aceitável em caso algum que estes agentes se permitam actos de violência ou incitamento à violência. Porque isso são crimes. Seria bom que tivéssemos a certeza de que isso não aconteceu. Não temos.


3. É evidente que o zelo persecutório da polícia, uma vez dada a ordem de “limpeza”, foi excessivo, com perseguições e agressões injustificadas. As imagens mostram isso. Os testemunhos referem isso. Esse zelo foi, provavelmente, uma consequência do apedrejamento continuado e, provavelmente, era o objectivo de quem deu ordens à polícia para não deterem os apedrejadores, mas seria bom que a formação da polícia permitisse evitar estes abusos, que podem acontecer uma vez numa situação de tensão, mas acontecem com demasiada frequência.


4. As condições em que foram feitas as detenções, com revista humilhante dos detidos, sem contacto com advogados, sem informação sobre as acusações que lhes eram feitas e pressões para assinar documentos incompletamente preenchidos lembram de forma inquietante a ditadura. É fundamental lembrar o ministro da Administração Interna que o Estado de direito não é um pormenor de que se pode prescindir quando há um bocadinho de pressa.


5. Finalmente, é inquietante que o ministro Miguel Macedo tenha sido tão mal informado pela sua polícia e/ou nos tenha mentido descaradamente quanto ao facto de não haver polícias infiltrados na manifestação. O que dizer quando o ministro se mostra ofendido com a pergunta sobre os infiltrados, garantindo que isso não aconteceu, para ser desmentido pela própria PSP no dia seguinte?


O que dizer quando chegámos a um momento da nossa vida política em que um comentário sobre a seriedade de um ministro não se pode referir senão à sua expressão facial? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 22, 2011

“No taxation without representation”

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Novembro de 2011
Crónica 47/2011

Ninguém elegeu as agências de rating, ninguém elegeu a troika, ninguém elegeu “os mercados”, ninguém elegeu o directório Merkozy

As declarações de Otelo Saraiva de Carvalho sobre a possibilidade de as Forças Armadas portuguesas lançarem “uma operação militar e derrubarem o Governo” foi recebida com a esperada vaga de escândalo, com protestos de respeito pela legalidade democrática por parte da hierarquia militar e com as habituais críticas à pessoa de Otelo. Não faltou mesmo quem aventasse a possibilidade de Otelo ser acusado criminalmente por “incitamento à alteração violenta do Estado de Direito”. Otelo, pelo seu lado, avançou mesmo uns cálculos logísticos feitos nas costas de um envelope. Na sua opinião, o golpe seria hoje até mais fácil do que em 1974, pelo facto de haver agora menos quartéis, e bastariam para o levar a cabo “800 homens”.

O frisson unânime dos comentadores poderia dar a ideia de que existe na sociedade portuguesa uma viva e unânime repulsa pela ideia de um golpe de Estado. Mas basta passearmo-nos um pouco pelos comentários de blogues e jornais ou fazer esse exercício que se chama “andar nos transportes públicos”, para percebermos que não é assim. De facto, a degradação do país, o desemprego crescente, a destruição sistemática dos progressos dos últimos anos, a injustiça social e a desigualdade, com o enraizamento dos privilégios de uns e da pobreza de outros e a frustração pela sua situação pessoal conseguiram já levar um número considerável de pessoas ao chamado “ponto de rebuçado”.

Uma maioria de pessoas detestava o anterior Governo. Elegeu outro. Mas, neste momento, penso que a maioria das pessoas não estará satisfeita com este. Mas não se trata de uma mudança brusca de opinião. Não estou a dizer que, se houvesse hoje eleições, o povo escolheria o PS. Ou o PCP ou o Bloco. É até possível que reelegesse o PSD+CDS. Mas a questão é que o actual quadro político já não merece a confiança, a concordância, nem sequer a esperança de uma parte considerável da população. A abstenção é um reflexo evidente disso, mas essa desesperança, o desinvestimento, a descrença e até a animosidade contra o actual sistema político existem igualmente em muitos votantes. A maioria absoluta, hoje, pertence aos descrentes e aos indignados. Quando Otelo diz que, se forem ultrapassados os limites, os militares devem derrubar o Governo, está a ecoar a frustração de muitos portugueses. Que a proposta seja inconsequente não muda o fundo da questão.

Quando as pessoas dizem que é preciso “outro 25 de Abril” estão simplesmente a enunciar a sua insatisfação com a actual situação, que nem lhes garante justiça social nem democracia – como o regime de Marcelo Caetano, ainda que as razões e a circunstância sejam diferentes. É claro que sempre houve pessoas a dizer que “isto só lá vai a tiro”. Mas, se há uns anos encontravam a indiferença como resposta, hoje temos gente a assentir ou a considerar a possibilidade.

Seria interessante saber que medidas tomariam os militares, após o golpe de Otelo, para garantir a verdadeira democracia que hoje não temos (uma ditadura militar? Proibir os partidos? Obrigá-los a refundar-se? Democracia directa?) mas penso que no inconsciente colectivo “o novo 25 de Abril” é apenas um Dilúvio destinado a eliminar uma geração de políticos, esperando simplesmente que os próximos aprendessem com a lição. Se até Deus perdeu a paciência, por que não simples mortais?

Por outro lado, se é fácil ridicularizar as tiradas de Otelo, todos ouvimos com circunspecção e assentimento as declarações de Soares (entre muitos outros respeitados políticos) quando diz que a "democracia pode vir a ser posta em causa" pelas “exigências dos mercados especulativos e desregulados” e quando escreve que Portugal está a ser "vítima da ganância dos mercados especulativos e da audácia criminosa das agências de rating".
As armas de eleição são diferentes, mas tanto Otelo como Soares repetem que a democracia pode estar em perigo. E que temos estado a perder democracia nos últimos trinta anos, com a soberania do povo a ser ilegitimamente transferida para a Goldman Sachs, é hoje uma evidência.
As liberdades de que gozamos hoje, e que formam o núcleo da democracia que consideramos o menos imperfeito dos regimes políticos, foram conquistadas em grande medida pela violência. Violência contra Governos ditatoriais, ilegítimos, que não representavam o povo. Foi assim da Revolução Francesa à luta contra o apartheid sul-africano. Outras foram ganhas sem violência revolucionária mas com sacrifícios de milhares, como a luta pelos direitos dos negros nos EUA. Mas a violência possui um papel político essencial.
Nos países democráticos, aceitamos que o uso da violência é uma prerrogativa exclusiva do Estado. Mas isso apenas é assim porque existem meios para o povo – único soberano – se exprimir e fazer valer a sua vontade. Porque o Estado emana do povo. E quando esses mecanismos não existem? Quando um povo elege um partido com base num programa que é pervertido a partir do primeiro minuto? Quando existe uma situação de dependência externa? Quando existe uma situação de “ditadura financeira” para usar a expressão, tristemente rigorosa, da igreja católica? Ninguém elegeu as agências de rating, ninguém elegeu a troika, ninguém elegeu “os mercados”, ninguém elegeu o directório Merkozy, ninguém elegeu sequer Durão Barroso.
Cada vez mais vivemos como uma colónia dos “mercados financeiros”. E aproximamo-nos de uma situação de “taxation without representation”, similar à que desencadeou a Revolução Americana. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, junho 14, 2005

Arrastão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Junho de 2005
Crónica 20/2005

Um arrastão não é uma vaga de assaltos, mas um assalto em massa. É a coisa mais parecida com uma pilhagem em massa.

A maior surpresa não foi saber que vários grupos de jovens dos 12 aos 20 anos lançaram uma onda de assaltos e agressões na praia de Carcavelos.

A maior surpresa não foi sequer o número de assaltantes envolvido nesta operação quase militar, num total que pode ter excedido os 500. A maior surpresa não foi termos ficado a saber que esta razia dá pelo nome de “arrastão” e que já tem lugar nos manuais de delinquência urbana. A maior surpresa não foi sequer descobrir num grupo de delinquentes juvenis este nível de organização, aparentemente espontânea.

A maior surpresa foi saber que o fenómeno não é novo, que dura há anos e que, no ano passado, já tinha acontecido algo desta dimensão - envolvendo 500 a mil jovens.

Já se sabia das vagas de assaltos nos comboios, da violência nocturna na vizinhança do que chamamos “os bairros degradados”, dos roubos e do “racket” nas escolas suburbanas, dos episódios de vandalismo. O que não se sabia era esta dimensão, que faz deste assalto algo mais do que um acto de marginalidade e nos revela um “universo de marginalidade”, um enorme sector excluído das benesses e das regras da vida social e que não está disposto a manter-se dentro das fronteiras do ghetto.

Também foi evidente a preocupante incapacidade dos media para nos retratar o que ocorre às portas das nossas cidades, este meio que produziu estas vagas de jovens desempregados, desescolarizados e desesperançados, delinquentes e organizados, violentos e enfurecidos, que podem submergir uma praia (e que não desaparecem quando se dispersam), sinal de um problema social profundo e violento e que é necessário conhecer, compreender e resolver.

Já se sabe que os media podem ver a árvore mas ignorar a floresta, que noticiam eventos localizados mas podem não ser capazes de detectar uma tendência social profunda, por transformadora que ela seja. O arrastão do ano passado deu provavelmente origem a notícias isoladas, mas não deu uma medida da dimensão do fenómeno.

Poder-se-ia esperar que a nossa universidade e os nossos cientistas sociais tivessem conseguido detectar este fenómeno e alertar devidamente a sociedade para ele, para além dos estreitos círculos vidrados onde a sua actividade se manifesta. Mas isso seria esperar de mais de uma e de outros. A universidade em Portugal continua a sonhar que ela é a sua própria razão de existir.

A um nível menos ambicioso, seria de esperar que os cidadãos assaltados apresentassem queixa na polícia e permitissem pelo menos obter a noção da dimensão do fenómeno, mas isso também não aconteceu. A verdade é que a maioria dos crimes não dão origem a queixas - por razões que alguém que tenha investido algumas horas de profundo desconforto a tentar apresentar uma queixa na polícia percebe bem.

O secretário de Estado do Turismo pediu para não se tratar “factos isolados como o arrastão de Carcavelos” com “alarmismo despropositado”, mas a declaração é uma contradição nos termos.

Um arrastão não é um facto isolado mas um movimento colectivo e imaginar que algumas palavras bastam para o exorcizar é o caminho aberto para o abismo. O assalto foi na praia, mas isso não é razão para enfiar a cabeça na areia.

Um arrastão não é sequer uma vaga de assaltos, mas um assalto em massa – é a coisa mais parecida com uma pilhagem em massa.

É evidente que a situação exige uma resposta sem hesitação ao nível policial, mas seria de uma inconsciência criminosa se o Governo considerasse que este assalto apenas exige mais câmaras e mais polícia. O Governo pensará que o problema é que o ghetto transbordou para a praia e que é necessário contê-lo mais eficazmente dentro dos seus muros? A cegueira deste raciocínio (para além da sua abjecção) é que o ghetto nunca é contido pelos muros.

O que é necessário é dar razões reais a estes jovens para não pensarem que o melhor que esta sociedade lhes pode oferecer é o fruto de uma pilhagem na praia.