Texto lido no funeral da Maria Manuel Ramos Pinto
Igreja de S. João de Deus, Lisboa - 6 Dezembro 2017
A Manel foi uma das pessoas mais solidárias e mais generosas que conheci.
Generosa com a sua casa, sempre aberta aos amigos e aos amigos dos amigos, generosa com as suas coisas, mas, principalmente, como as pessoas verdadeiramente boas, a Manel era generosa com o seu tempo, com a sua atenção, com o seu carinho, nos pequenos e nos grandes gestos.
Generosa também com o seu interesse pelas pessoas e pelo mundo, porque a Manel era uma pessoa curiosa de tudo, da política e da cultura, da literatura e dos jornais, dos países distantes e das aldeias vizinhas, do presente e do passado, sempre disponível para ver e ouvir, para partilhar e conversar. E disponível para ler, porque a Manel era uma apaixonada leitora de largo espectro e uma crítica exigente e perspicaz de tudo o que lia.
A Manel adorava discutir e estava sempre disponível para discutir qualquer tema importante. E discutia em termos que podiam ser bem veementes, porque uma das grandes qualidades da Manel era a sua absoluta e impenitente falta de paciência para com a hipocrisia, a maldade, a injustiça, a estupidez e a arrogância, que gostava de cilindrar com uma sem-cerimónia implacável.
A Manel não tinha papas na língua e era admirável vê-la durante uma das suas justas fúrias. Ou ouvi-la contar, com a sua habitual vivacidade, com o colorido que emprestava sempre às suas histórias, uma aventura no mundo da burocracia ou das grandes empresas em defesa dos seus direitos como consumidora e como cidadã, naquelas narrativas que a inflamavam e podiam fazer a audiência rir às gargalhadas.
Porque a Manel era indómita. Educada numa grande família burguesa do Porto para ser uma menina prendada e submissa, mãe, esposa e dona de casa, temente a Deus e obediente aos homens, a Manel furou os esquemas pré-desenhados a que a sua vida devia ter obedecido e viveu até ao fim a sua vida nos seus termos, como verdadeira livre-pensadora, sem obedecer a cânones nem catecismos, sem cedências às conveniências, ao medo e aos preconceitos.
Mais do que indómita a Manel era uma rebelde. Alguém que não aceitava ditames de ninguém e que não hesitava em combater como podia o que considerava injusto.
A Manel era uma pessoa de esquerda (e estava cada vez mais radical) preocupada com a injustiça social e que acompanhava de perto a vida política, como atesta a sua actividade no Facebook, sempre com posts muito assertivos. Mas nunca deixou que os rótulos ideológicos influenciassem a apreciação que fazia das pessoas ou a sua escolha das amizades.
A Manel era também uma grande contadora de histórias e fazia verdadeiros frescos da sua infância no Douro ("vivíamos no século XIX..." era assim que começavam ou terminavam muitas das suas histórias) e relatos muito divertidos das férias da família na Granja, que algumas das pessoas que estão hoje aqui provavelmente partilharam. Eu insistia sempre para que ela escrevesse essas histórias (deliciosas ainda que as ouvíssemos pela quinta vez) para as poder partilhar com outros e, eventualmente, publicar numa recolha de memórias, mas ela minimizava-os como se se tratasse de coisas sem importância.
"Tenho para aí umas coisas escritas, mas aquilo não interessa a ninguém" dizia ela, sem nunca me ter mostrado uma dessas páginas. Gostaria, hoje ainda mais, que pudéssemos ler essas “coisas escritas” e tenho a certeza de que teríamos, de que teremos todos, gosto e proveito na leitura.
Uma das grandes qualidades da Manel era a sua capacidade para fazer amigos e, muito antes de se inventar a palavra networking, a sua capacidade para fomentar amizades entre os amigos. Pedia-me muitas vezes para convidar um amigo para Almoster porque o queria apresentar a outro amigo que achava que tinha alguma coisa em comum com o primeiro e sei que fazia isso com muitas outras pessoas.
Como todas as pessoas verdadeiramente inteligentes, a Manel tinha um grande sentido de humor, uma aguda consciência do absurdo e da fugacidade da vida e da aleatoriedade do destino e uma perfeita noção do que era realmente importante e do que era fútil e supérfluo. E nunca dedicava mais do que a atenção estritamente indispensável a estas minudências.
Conhecemo-nos há 34 anos e fomo-nos tornando amigos, naquelas aproximações mútuas que tecem cumplicidades silenciosas e uma amizade sem hesitações.
A última vez que falámos ao telefone disse-me: “Não venhas visitar-me que os hospitais são sítios muito deprimentes. Depois de eu sair combinamos um jantar."
Fica combinado.
Lisboa, 6 Dezembro 2017