terça-feira, agosto 26, 2014

Num mundo desigual, a liberdade é um privilégio de alguns e não um bem universal

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Agosto de 2014

Crónica 40/2014

É estranho ver alguém defender denodadamente a ideia de liberdade e denegrir em seguida a ideia de igualdade (ou contestar a sua possibilidade), como se a segunda não fosse condição da primeira.


A crise económica e social que temos vivido nos últimos anos, à qual se somou uma crise de segurança internacional, tem uma única virtude: prova-nos que nada está adquirido para sempre em termos civilizacionais e obriga-nos a revisitar questões que supúnhamos definitivamente consensuais e a reflectir sobre problemas que, apesar de os sabermos fundamentais, negligenciámos como sociedade durante muito tempo, esperando que o tempo os fizesse desaparecer ou os varresse pelo menos para longe da nossa vista.

Uma dessas questões é a questão da igualdade, um valor que desde a Revolução Francesa separa águas entre esquerda e direita e que reapareceu com uma agudeza acrescida com a consciência das desigualdades crescentes das nossas sociedades, depois de décadas em que o ideal democrático, o primado da lei e o desenvolvimento tecnológico pareciam prometer-nos a distribuição justa de uma riqueza crescente com bem-estar para todos.

Para a extrema-direita económica que governa o mundo ocidental, que designamos ironicamente como neoliberal (ironicamente porque é de facto velha e porque abomina toda a liberdade que não seja a dos privilegiados), a desigualdade é simultaneamente inevitável e extremamente positiva. "Inevitável" porque, sendo os homens naturalmente diferentes, qualquer hipotético estado de igualdade inicial depressa daria origem a desigualdades, pela diferente forma como cada um reage ao meio e explora as oportunidades que se lhe oferecem. "Positiva" porque, dizem, essa desigualdade é o verdadeiro motor do progresso, incitando cada um a melhorar a sua sorte e a fazer o possível por atingir um nível de bem-estar superior ao do seu vizinho. A direita neoliberal oscial entre os dois argumentos, refugiando-se no argumento da "inevitabilidade"quando é confrontada com a injustiça evidente de certas situações de desigualdade e a sua falta de vontade em as reduzir e argumentando com a "desigualdade-factor de progresso" sempre que a audiência é receptiva. Para a direita neoliberal, decorre destes argumentos que a desigualdade na sociedade é justa, porque corresponde, para os privilegiados, a uma recompensa dos seus talentos naturais e do seu esforço e, para os excluídos, de um castigo pela sua falta de talentos e de esforço.

A argumentação é tão frouxa que não valeria a pena rebatê-la, se não se desse o caso de ela colher um considerável apoio popular, graças a uma barragem de propaganda que não tem limites orçamentais e que conseguiu vender a ideia do sonho americano "from rags to riches" ao universo de indigentes acorrentados à televisão que veio substituir o que já se chamou proletariado. Basta considerar o carácter hereditário da riqueza e da pobreza e a sua acumulação crescente nos dois extremos do espectro social ao longo dos séculos para destruir qualquer ideia de "mérito" dos privilegiados ou "demérito" dos deserdados. Aliás, se algum destes neoliberais levasse a sério a sua teoria do mérito e a sua defesa do liberalismo económico, deveria ser um feroz adversário de todas as rendas e das heranças e um opositor da captura do Estado pelas empresas. Na realidade, dedicam as suas vidas a tentar reforçar os seus privilégios, obtidos por nascimento, por tráfico de influências ou ambos.

É estranho ver alguém defender denodadamente a ideia de liberdade e denegrir em seguida a ideia de igualdade (ou contestar a sua possibilidade), como se a segunda não fosse condição da primeira. A realidade é que, num mundo desigual, a liberdade não existe como valor universal, igualmente acessível a todos, igualmente devida a todos, igualmente propriedade de todos. Num mundo desigual, a liberdade é um privilégio de alguns, distribuído de acordo com os princípios que regem a distribuição desigual - quer se trate de bens materiais ou morais. Só se defende a liberdade como valor quando se defende a igualdade no seu acesso. De outra forma, apenas se defende a liberdade de alguns, e sempre em detrimento de outros. Trata-se não de uma defesa da liberdade mas de uma visão plutocrática da liberdade, anti-liberal por excelência porque anti-igualitária. Da mesma forma, apenas se defende a saúde quando se defende a "saúde para todos" e apenas se defende a educação quando se defende a "educação para todos".

É evidente para quem o queira ver que a desigualdade entre um desempregado sem subsídios e um trabalhador com um emprego estável e uma remuneração decente definem graus de liberdade para cada uma destas pessoas que se encontram a anos-luz de distância e o mesmo acontece, noutro grau, quando as diferenças são menos extremas.

Admitir as desigualdades não significa admitir apenas a pobreza, a carência extrema e o sofrimento gratuito lado a lado com a opulência, a fome ao lado do desperdício. Significa admitir uma modulação da liberdade, de acordo com a riqueza de cada cidadão. Significa admitir um "mercado" onde a liberdade se compra e se vende como uma mercadoria e não é um valor universal.

Arvorar em valor a liberdade mas defendê-la sobre o pano de fundo de uma inevitável desigualdade é, na realidade, o extremo oposto da liberdade. É a liberdade dos fortes e a submissão dos fracos. Como dizia no século XIX o dominicano Henri Lacordaire, "Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o senhor e o servo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta".

terça-feira, agosto 19, 2014

Governo quer dar ao bandido o ouro da Misericórdia de Lisboa

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Agosto de 2014
Crónica 39/2014

O decreto agora aprovado é um gesto anti-patriótico, um gesto contra a segurança social e um gesto contra os pobres

Uma lei ou um decreto não entram em vigor quando são aprovados pelo Governo ou pelo Parlamento, nem sequer quando são promulgados pelo Presidente da República, mas apenas quando são publicados. Numa democracia, é o facto de dar a conhecer as leis aos cidadãos e de as expor ao julgamento público (porque, mesmo depois de entrar em vigor, uma lei pode sempre ser revogada ou alterada se for julgada injusta ou ineficaz) que as torna de facto leis da República. A publicação é uma condição necessária (ainda que não suficiente) para conferir a uma lei a sua dignidade e a sua validade porque a publicação, o conhecimento pelo povo, é a condição primeira da participação e da escolha democrática.

Mas este está longe de ser o único caso em que a publicação, a transparência, a exposição ao julgamento público é considerada essencial à validade de um processo político ou jurídico. Todos conhecemos o caso dos casamentos, contratos públicos, onde é obrigatória a publicação prévia de banhos e a sua celebração de porta aberta, ou o caso dos julgamentos, cerimónias públicas por excelência, onde apenas circunstâncias excepcionais, relacionadas com a protecção de valores superiores e devidamente justificadas (protecção de menores, por exemplo) podem permitir a sua realização de porta fechada.

Mesmo no caso das leis, a publicação não é um procedimento apenas devido após a conclusão do processo. Numa democracia, todo o processo de produção das leis tem de ser absolutamente transparente e estar sempre exposto ao escrutínio público. O povo tem o direito a saber quem propôs uma lei, quem escreveu a proposta, quem foi ouvido para a sua preparação, que discussão teve lugar, quem defendeu que posição e com que argumentos, que alterações lhe foram introduzidas durante a discussão, quem a aprovou, quem votou contra e quem se absteve e com que argumentos, etc.

E esta transparência não se pode restringir à discussão nos plenários do Parlamento, que é a parte mais espectacular mas a mais superficial da produção legislativa. Ela tem de incluir todos os trâmites processuais, incluindo as posições das inúmeras entidades cuja consulta os deputados considerem necessária e que deveriam ser sempre disponibilizadas para consulta dos cidadãos, no dossier de documentos preparatórios que deveria estar disponível nos sites do Parlamento e do Governo para consulta pública, ao lado de cada diploma em discussão ou aprovado.

Qualquer sonegação de informação, qualquer encobrimento habilidoso fere de morte o processo legislativo e descredibiliza os políticos e, por arrasto, a própria democracia. É por isso que é sempre particularmente grave ver o mês de Agosto ou o período do Natal serem aproveitados para "enfiar" à sucapa algumas leis controversas ou uns concursos destinados apenas a alguns amigos avisados, enquanto o povo está distraído, em férias e festas. É esse o caso da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que abre e fecha em Agosto um concurso para bolsas de gestão de ciência e tecnologia ou, o que é muito mais grave, o caso do decreto da Assembleia da República de 25 de Julho que "autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico da exploração e prática do jogo online".

Na prática, como já foi denunciado nomeadamente por José Ribeiro e Castro (único deputado da maioria a votar contra, honra lhe seja feita) este decreto, contestado por toda a oposição, abre a porta à privatização dos chamados jogos de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o Euromilhões, com a desculpa aldrabona de que é preciso regulamentar o jogo online e que isso passa pela sua liberalização. É falso, mas o lobby do jogo, que possui muitos milhões para influenciar vontades, não tem olhado a meios nem a despesas para enfiar esta cunha através da qual espera conseguir finalmente destruir o monopólio da Misericórdia de Lisboa e apoderar-se dos seus enormes lucros, que actualmente alimentam a Segurança Social.

A iniciativa legislativa que pretende dar ao bandido o ouro da Misericórdia de Lisboa é do secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, e a ideia é simples. O que se pretende é abrir uma excepção no domínio dos jogos de azar, permitindo a entrada de entidades privadas, de forma a destruir aquela que tem sido a argumentação do estado português na União Europeia em defesa do monopólio do jogo por parte da Misericórdia - o seu objectivo social, a necessidade de não promover o vício do jogo, etc..

A actual situação portuguesa é perfeitamente compatível com as regras da UE (ao contrário do que dizem as vozes seduzidas pelo lobby) mas deixará de o ser se o próprio Estado abrir uma excepção. O decreto agora aprovado é por isso um gesto anti-patriótico, que mina uma posição de defesa nacional; um gesto contra a Segurança Social, que mina uma fonte essencial do seu financiamento; um gesto contra os pobres, que beneficiam dos serviços da Misericórdia; e um gesto em favor das grandes empresas de jogo, que assim conquistam mais uma ferramenta de alienação e de exploração dos trabalhadores. Uma das portas que o novo decreto abre é, sintomática e tristemente, a publicidade ao jogo, numa era onde se tenta restringir cada vez mais a publicidade ao tabaco e ao álcool por razões de saúde pública.

O jovem Adolfo Mesquita Nunes está orgulhoso porque sabe que, com esta fulgurante medida, a sua carreira política e o seu futuro estão garantidos. O Governo, por seu lado, exulta, com mais uma medida que nos vai roubar a todos mais umas centenas de milhões de euros por ano e enfiá-los no bolso de grandes senhores da finança.

terça-feira, agosto 12, 2014

E se, por uma vez, houvesse uma investigação a sério?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Agosto de 2014

Crónica 38/2014

Se não quer viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos e os pobres todas as culpas, exija justiça

"Erros de gestão", "imprudência", "irregularidades", "risco de crédito", "falta de activos", "imparidades", "activos tóxicos", "incumprimento", "problemas de solvabilidade", "insuficiências de capital", "infidelidade", "gestão danosa", "abuso de informação privilegiada", "abuso de confiança". Há, no simples léxico usado pelo mundo político, pelo mundo financeiro e pelo mundo mediático para descrever o caso BES, narrativas implícitas que se impõem como explicações naturais para o descalabro do império Espírito Santo. Não são precisos verbos para descrever a acção quando se usam estes substantivos. Cada um deles conta a sua história própria, insinuando diferentes níveis de responsabilidade e respeitabilidade para cada um dos intervenientes.

A mais benévola dessas narrativas, hoje em perda, descreve uma organização liderada por gestores ousados e bem relacionados no país e no estrangeiro, que alargaram excessivamente as suas operações financeiras movidos por uma enorme ambição e com o apadrinhamento da liderança política, lançando-se numa trajectória de investimentos de alto risco que acabou mal devido à crise financeira nacional e internacional. É uma história de ambição e de cegueira, de ascensão e queda, uma saga de decadência. Outra narrativa descreve uma família habituada durante gerações a mandar nos destinos do país e que, mercê de uma complexa teia de favores financeiros e políticos, que distribuiu prodigamente, alargou a sua influência até um ponto em que a sua insuficiente competência e as rivalidades internas se combinaram para desagregar o império. É uma história de vaidades e infelicidades, de pobres diabos que por acaso são arrogantes milionários. Outra ainda, descreve uma organização criminosa da alta finança, envolvida num esquema piramidal alimentado por uma reputação de poder e de influência que lhe garantiu a atracção de cada vez mais capital, capital esse cuja gestão foi descuidada e cujos investimentos produziram por isso cada vez menos rendimentos e que, também por isso, começou a ser crescentemente utilizado para comprar favores políticos que garantiram cada vez mais entradas de capital que foi descaradamente desviado para os bolsos dos líderes da organização e escondido em off-shores exóticas. É uma história de crime, de tráfico de influências e de chantagens, de ganância sem escrúpulos.

Conforme os narradores e os seus interlocutores, as narrativas cruzam-se, entretecem-se, tornam-se mais policiais e brutais ou mais palacianas e refinadas. A hesitação entre todas elas é uma prova da rede de influências que Ricardo Salgado espalhou pelo país e que ainda está por aí, em estado de vida latente, a ver para que lado caem as fichas. Ricardo Salgado poderá já não ser o "partido" com mais deputados na Assembleia da República, mas as notícias da sua morte podem estar a ser exageradas. Salgado negou ter 30 milhões de euros em Singapura, mas terá 300 milhões no Brasil? Ou mais? Até onde se estende ainda o império Espírito Santo? O caso BES vai ser o "escândalo BES" ou apenas a "crise BES"? Ricardo Salgado é um escroque ou um tolo? Cometeu erros ou cometeu crimes? O que o protegeu durante tanto tempo? Teve sorte ou teve cúmplices?

Apesar de se acumularem os sinais de "irregularidades" no BES (algumas denunciadas pela CMVM ao Ministério Público, ainda antes das suspeitas de insider trading dos últimos dias) a verdade é que a narrativa se arrisca a amornar, com a CMVM e o Banco de Portugal e o Governo a lavar as suas mãos e o contribuinte a pagar os luxos de que Ricardo Salgado fez beneficiar tantos amigos.

A prudência dos média é natural. Não se pode acusar alguém sem provas e não se pode dizer que alguém é um ladrão antes de a sentença transitar em julgado, o que pode não acontecer nunca, mesmo que o ladrão confesse o roubo e todos o tenhamos testemunhado. Mas é fundamental, em nome da sanidade da sociedade, da sanidade da justiça e da sanidade da política que haja uma investigação consolidada de todo o processo de falência do GES e do BES e não apenas investigações esparsas desta ou daquela "irregularidade", que irão concluir que um burocrata se esqueceu de carimbar um impresso.

O que o Governo tem de anunciar é o pedido dessa grande investigação ao Ministério Público, com a máxima urgência e garantindo-lhe todos os meios. E, se não o fizer, apenas poderemos concluir que receia ver-se envolvido ele próprio (leia-se PSD e CDS) nos negócios sob escrutínio. Recordam-se de Carlos Costa a garantir há um mês que nem o BES nem o GES tinham um problema de solvabilidade? E de Cavaco Silva? E de Passos Coelho? Que as responsabilidades políticas não sejam assumidas pelo governo é algo a que estamos habituados, mas temos de exigir a responsabilização criminal de quem rouba de forma tão colossal e tão descarada. E a verdade é que falta dinheiro no BES e que nos vão pedir para tapar o buraco. Não chegará isso para exigir a investigação?

O que não podemos aceitar, em nome da decência, são processos tão vergonhosos como o do BCP ou o do BPN. Não podemos aceitar que, de novo, um processo BES se salde por uma multa ridícula, pela inibição de gerir um banco durante os próximos anos, pela prescrição do crime ou pela condenação de um bode expiatório isolado.

As "irregularidades" cometidas pelo GES e pelo BES foram cometidas ao longo de muitos anos, beneficiando um pequeno grupo de ricos parasitas e de caciques políticos, envolvendo muitas pessoas e enganando muitas mais. Existem certamente inúmeros documentos e muitas testemunhas dessas "irregularidades", muitas das quais preferirão denunciar os crimes de que tenham conhecimento em troca de uma consciência aliviada e de uma atenuação da condenação. Tem de ser possível encontrar as provas necessárias e levar uma investigação séria até ao fim.

À imprensa cabe, entretanto, ir juntando as pedrinhas dos factos - como a discrepância sobre o momento em que o Banco de Portugal decidiu partir o BES em dois e o momento em que comunicou essa decisão à CMVM, como as razões da autorização do aumento de capital do BES pelo BdP e pela CMVM, como as razões dos perdões dos esquecimentos fiscais de Salgado, como a venda das acções da Rioforte aos balcões do BES, etc., etc. - de forma a tornar incontornável a exigência de uma verdadeira averiguação.
E a todos os cidadãos que recusam viver numa sociedade onde os ricos têm todos os direitos, incluindo o direito a roubar o nosso dinheiro e a escapar impunes, cabe-nos exigir justiça.

terça-feira, agosto 05, 2014

Novo Banco, Velho Banco: mais uma viagem, mais uma corrida

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Agosto de 2014
Crónica 37/2014

Teríamos gostado de ver o Banco de Portugal garantir que nunca mais algo semelhante se voltaria a passar nas suas barbas. Mas não vemos

O Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, lá acabou por admitir que nos tem andado a enganar. Não o disse por estas palavras nem com esta clareza, claro, mas lá o disse, no cuidado fraseado que a banca e as "entidades reguladoras" usam, recheado de jargão técnico e de eufemismos elegantes. Afinal era mentira que os problemas do Grupo Espírito Santo fossem totalmente independentes do BES, era mentira que tudo estivesse bem no BES, era mentira que o BES tivesse uma almofada financeira suficiente para colmatar os buracos do crédito mal parado e das imparidades, era mentira que houvesse algumas coisas que andavam mal no GES mas que não punham em causa a credibilidade da banca portuguesa e do sistema financeiro (vide evolução das taxas de juro), era mentira que o Estado não precisaria de resgatar o BES, era mentira que os testes de stress tivessem provado a solidez do BES, era mentira que não houvesse razão para afastar rapidamente Ricardo Salgado da gestão corrente do banco e mesmo do seu Conselho Estratégico, etc.


Note-se que não há a mínima razão para pensar que Carlos Costa terá mentido intencionalmente e, se por acaso o fez com intenção, não há a mínima razão para pensar que a sua intenção não fosse boa. Mas aconteceu que as suas declarações descreveram ao longo dos últimos meses (anos?) uma realidade diversa da realidade real, muito mais optimista que aquilo que nos parece hoje ajustado e onde não havia quaisquer razões para suspeitar de actividades ilícitas. Acontece. Mais: se houve um optimismo exagerado e aqui e ali alguma informação sonegada ao público, é provável que Carlos Costa tenha considerado que fazia o seu dever, já que a confiança é o principal capital do sistema financeiro. Pode pensar-se que Carlos Costa e todos os funcionários do Banco de Portugal que lidaram com a questão BES foram enganados pelo banco e pelos seus dirigentes (o que não diria muito bem das suas capacidades de fiscalização e regulação, já para não falar da sua competência, argúcia ou bom senso) ou que perceberam num ápice o que se passava mas não quiseram tornar pública a verdadeira dimensão do problema para não causar maiores estragos. É possível. O que seria bom que o Banco de Portugal e Carlos Costa percebessem é que esta estratégia possui custos elevados ao nível da credibilidade da instituição e das pessoas que a integram. Ou seja: se tudo tivesse acabado em bem, o Banco de Portugal teria podido manter a sua ficção até ao fim. Mas, como não acabou, a ficção acabou por se revelar uma fraude. Seja por que o Banco de Portugal não percebeu o que se passava no BES, seja por que percebeu e não quis agir de forma determinada para não "alarmar os mercados", esperando que o Espírito Santo (o da Santíssima Trindade) resolvesse as coisas, a credibilidade da instituição, do seu governador e dos seus funcionários, justa ou injustamente, saiu ferida de morte.


O que quer isto dizer? Que não existe nenhuma razão hoje (se é que existiu alguma vez no passado) para acreditar no que diz o Banco de Portugal sobre o BES, o GES, o Novo Banco, o Tóxico Banco, ou Qualquer Outro Banco. A atitude do Banco de Portugal no passado parece ter sido pautada pela defesa da imagem e do poder de Ricardo Salgado - até que essa defesa se tornou impossível. É possível que isso se tenha devido a uma preocupação de defesa do BES, que além de ser o banco do regime possuía uma dimensão que o tornava, aos olhos do BdP, too big to fail e, por consequência, que tornava Ricado Salgado too big to jail. Mas não há absolutamente nada que nos garanta que o Banco de Portugal, perante um caso em tudo semelhante (ou pior) que venha a suceder, não adopte exactamente as mesmas atitudes e não tome as mesmas medidas, sempre com a preocupação de não alarmar os mercados e de não desestabilizar o sistema financeiro.
Perante um caso como o do BES, teríamos gostado de ver o Banco de Portugal, hoje, reconhecer responsabilidades, fazer uma investigação aprofundada do que correu mal, admitir culpas, corrigir procedimentos, garantir que nunca mais algo semelhante se poderia voltar a passar nas suas barbas. Admitir, em suma, que se vai preocupar mais com a honestidade que com a amizade dos banqueiros. Mas não vemos nada disso e esse facto é mais preocupante que o caso BES, porque nos diz que, depois deste BES, haverá outro, e outro, e outro. Casos onde os clientes de um banco serão aliciados (ou pressionados) a comprar acções desse banco ou do banco de um primo para depois verem o seu dinheiro ser engolido por um buraco que, no fundo, tem um funil que acaba no bolso de uma das famílias donas de Portugal ou no bolso de um dos caciques do "arco do poder". Casos onde uma parte considerável do dinheiro movimentado escapará a todo o controlo legal e a todos os deveres fiscais graças ao uso de off-shores e a um carrocel de transferências. Casos onde um contabilista distraído se vai esquecer de incluir uns milhões de dívidas nas contas e terá como sanção umas férias no Brasil. Casos onde todos os esquecimentos fiscais dos poderosos e as gorgetas de milhões não declaradas continuarão a ser perdoados com bonomia.


Para descansar os contribuintes, o BdP garante que o Velho Banco não vai receber um tostão e que deverão ser os seus accionistas a arcar com o prejuízo e que o Novo Banco não vai recorrer a dinheiro dos contribuintes. Mas o que são os 4400 milhões "da troika" senão dinheiro dos contribuintes, sobre o qual temos andado a pagar juros? Será que o Novo Banco nos vai ressarcir de todos os custos que tivemos com este dinheiro, que pedimos emprestado (especialmente para o BES?), somando-lhe um belo juro? E o que é o buraco nas empresas do GES e do Velho Banco senão dinheiro roubado aos portugueses, que desapareceu das poupanças, do investimento, da economia e da receita fiscal?
Será que o BdP nos garante que nada de semelhante vai voltar a acontecer, como já nos disse quando do caso BPN? Talvez garanta. Mas não há razões para acreditar.

jvmalheiros@gmail.com


Crónica no Público: http://www.publico.pt/economia/noticia/novo-banco-velho-banco-mais-uma-viagem-mais-uma-corrida-1665351

quinta-feira, julho 31, 2014

Como roubar e sair impune: roube muito e use gravata

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Julho de 2014
Crónica 36/2014


Por que falamos de bancos e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA como se fossem respeitáveis?

O PÚBLICO noticiou esta semana o caso de um ex-presidente da Junta de Freguesia de S. José, em Lisboa, João Miguel Mesquita, eleito pelo PSD, que foi condenado em Abril passado a quatro anos e meio de prisão por ter “gasto em benefício próprio”, entre 2005 e 2007, 12 mil euros pertencentes à autarquia.

O Ministério Público tinha-o acusado de desviar 40 mil euros e de falsificação de documentos, mas o tribunal só considerou provado o desvio dos 12 mil euros. A pena de prisão de João Miguel Mesquita ficou suspensa na condição de que o condenado pagasse à autarquia os 12.000 euros de que se tinha “apropriado”, o que significa que não existiu qualquer sanção real para o crime e que o condenado apenas será obrigado a repor o que roubou, como se se tivesse enganado nas contas com a melhor boa-fé do mundo e fosse o mais impoluto dos autarcas.

A notícia chamou-me a atenção porque me recordou um episódio passado comigo. Há uns anos, ao sair de uma carruagem depois de uma viagem de metro, senti-me mais leve do que quando tinha entrado. Ao apalpar os bolsos, percebi que alguém me tinha palmado a carteira, com documentos e uns escassos euros.

Apresentei queixa, substituí os documentos e, passados meses, recebi um telefonema da polícia anunciando-me que tinham prendido um carteirista e que, no meio do seu espólio, lá tinham encontrado os meus documentos. Fui testemunhar a tribunal, juntamente com outras vítimas, e o carteirista, que confessou os crimes, foi condenado a uns anos de cadeia. Não me recordo de o Ministério Público ter nessa altura proposta ao carteirista a devolução do dinheiro roubado em troca de uma pena suspensa e de uma libertação imediata mas penso que o arranjo lhe deveria ter agradado, já que no meu caso a “indemnização” seria de vinte euros. A razão dos dois pesos da Justiça é evidente: o meu carteirista usava uma camisa aberta aos quadrados e um blusão de má qualidade, enquanto que os presidentes das Juntas usam em geral fato e gravata. Para mais, o ex-presidente da Junta pertencia a um partido do “arco do poder” e o meu carteirista provavelmente não teria actividade política.

Todos os casos que conheço reforçam a minha convicção de que existe uma aplicação do Código Penal para quem usa gravata e outra, infinitamente menos benévola, em Portugal e em todos os outros países do mundo, para quem não usa.

Tomemos o exemplo daquele que é um dos maiores roubos da História: a manipulação da taxa Libor, ao longo de muitos anos, por um cartel de bancos que incluía instituições pretensamente tão respeitáveis como o Barclays Bank, UBS, Citigroup, The Royal Bank of Scotland, Deutsche Bank, JPMorgan, Lloyds Banking Group, Rabobank e outros. A manipulação de uma taxa interbancária de referência como a Libor, em benefício próprio, traduziu-se em perdas para muitos milhões de indivíduos e organizações em todo o mundo. Milhões de estudantes ingleses, de lojas francesas, de quintas italianas e de famílias portuguesas viram as mensalidades dos seus empréstimos aos bancos subir durante anos para que esses mesmos bancos e outros vissem os seus lucros crescer. Tratou-se, em linguagem corrente, de um roubo. Não um roubo como o do meu carteirista mas um roubo sistemático, generalizado, que defraudou milhões e que acumulou riquezas incalculáveis nos bolsos de quem já era imensamente rico.

O que aconteceu a estes bancos? Alguns pagaram multas, outros nem isso porque denunciaram os cúmplices em troca de imunidade, mas ninguém foi condenado. Houve uns corretores expulsos de uns países, detenções para interrogatórios e foi tudo. Talvez uns quantos acabem por ser presos - os próprios bancos acusados tentarão encontrar bodes expiatórios - mas nunca o castigo será proporcional ao crime. Todos usam gravata. Alguém espera que o imenso buraco do BES tenha responsáveis criminais?

O ex-presidente da Junta, apesar de tudo, foi condenado e a sua reputação saiu ferida, mas os bancos ladrões e os seus administradores e directores continuam a ser referidos na imprensa como entidades respeitáveis e os seus quadros são invejados nas revistas, bajulados pelos Governos e pagos (legalmente) a peso de ouro.

A crise moral que atravessamos traduz-se nisto: condenamos carteiristas à cadeia em nome da Justiça e tratamos com deferência e apresentamos como exemplo organizações criminosas que operam em grande escala, como os bancos. Não é uma novidade, mas o facto de não ser uma novidade e de continuarmos a tolerar a situação só a torna mais grave. Continuamos a tratar com respeito Governos que se apropriam de património público para o vender ao desbarato e que destroem monopólios do Estado para beneficiar interesses privados obscuros - como o Governo português está a fazer com a lotaria.

Por que respeitamos estes ladrões? Por que falamos de bancos e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA ou tantas outras como se fossem respeitáveis? Por que não exigimos que obedeçam aos padrões éticos e legais que exigimos aos outros? Apenas porque usam gravata e sabem usar talheres? Apenas porque ficaram ricos com o dinheiro que roubaram? Somos assim tão parvos?

jvmalheiros@gmail.com


Crónica no Público: http://www.publico.pt/economia/noticia/como-roubar-e-sair-impune-roube-muito-e-use-gravata-1664854

quarta-feira, julho 30, 2014

Questionário sobre Diplomacia Científica

Respostas de José Vítor Malheiros ao Questionário sobre Diplomacia Científica elaborado por Sónia Arroz na sequência do seu trabalho de dissertação de mestrado, “Diplomacia Cientifica: justificações, abordagens e ferramentas de uma especialização profissional emergente”. Essa dissertação foi realizada no âmbito do Mestrado de Economia e Gestão de Ciência Tecnologia e Inovação do Instituto Superior de Economia e Gestão – ISEG, no período 2012-2014.

Julho 2014



A Diplomacia Científica é uma junção de duas palavras que pouco significado tem para a sociedade no geral mas é reconhecida pela maioria das economias como meio de promover as relações internacionais no domínio da ciência e da inovação. Se por um lado promove o ambiente científico do país no estrangeiro por outro funciona como instrumento estabilizador de política externa em países com sistemas políticos e ideologias divergentes.(Dolan, 2012)

Um fator crítico de sucesso para a ação da diplomacia científica é a necessidade de encontrar o ator ou o agente certo, para que esta seja colocada em prática. (Flink & Schreiterer, 2010)


Questões

  • Que importância atribuir à Diplomacia Científica na visão tecnológica e inovadora para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?
  • Que objetivos normalmente se associam à ação da Diplomacia Científica?
  • Identifique casos de sucesso e insucesso de Diplomacia Científica que conheça.
  • Em Portugal quando, como e quem, exerce Diplomacia Científica?
  • Quem deverá exercer essa função? Um diplomata, um cientista, outro…?
  • Que competências e/ou orientações deverão ter um ator de Diplomacia Científica, para uma ação mais eficiente?
  • Que paralelo encontra entre a sua atividade profissional e a ação de um “diplomata de ciência”?





Questões e respostas


Que importância atribuir à Diplomacia Científica na visão tecnológica e inovadora para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?


JVM - (A pergunta não é clara. Deve ter havido um problema de edição. Penso que deve ser “Que importância atribui à Diplomacia Científica para o seu país e para a instituição onde desenvolve o seu trabalho?”)
A Diplomacia Científica é uma parte fundamental da diplomacia e, como tal, tem a importância que toda a Diplomacia tem: é uma ferramenta fundamental para o entendimento entre os povos, para o desenvolvimento harmonioso da Humanidade e para a construção e preservação da paz e do bem-estar.


Que objetivos normalmente se associam à ação da Diplomacia Científica?


JVM - A expressão Diplomacia Científica tem vários significados: a Ciência ao serviço da Diplomacia (a cooperação científica como instrumento das Relações Internacionais), a diplomacia ao serviço da Ciência (visando o aumento da cooperação científica internacional, por exemplo) e a Ciência da Diplomacia (a investigação científica realizada com o objectivo de produzir conhecimento aplicável no domínio da diplomacia). Penso que o mais relevante e o mais nobre é o primeiro.
Segundo alguns historiadores a ciência terá nascido no século XVII em Inglaterra precisamente devido à necessidade de criar consensos depois da Guerra Civil e encontrar pontos comuns objectivos, capazes de unir pessoas de diferentes credos. A ciência possui hoje uma capacidade intrínseca de criar consensos entre pessoas de diferentes regiões, religiões, ideologias e interesses precisamente porque o seu método se baseia na construção de consensos baseados em verdades verificáveis pela experiência e pela discussão argumentada e na sua constante revisão.
O objectivo da Diplomacia Científica é claro: usar a cultura científica, partilhada pela comunidade cientifica de todo o mundo, como base de entendimento entre cientistas de diferentes países, regiões, religiões e ideologias, com diferentes passados e vivendo em diferentes presentes, de forma a criar uma base de confiança sobre a qual se possa construir um diálogo e procurar um entendimento. Nada disso se pode fazer sem a aceitação do outro como outro, sem o conhecimento do outro, e a ciência pode fornecer o pano de fundo sobre o qual isso pode acontecer. O objectivo último é a paz e o desenvolvimento e a felicidade partilhada.


Identifique casos de sucesso e insucesso de Diplomacia Científica que conheça.


JVM - Há muitos casos famosos de relativo sucesso, como as Pugwash Conferences on Science and World Affairs (http://en.wikipedia.org/wiki/Pugwash_Conferences_on_Science_and_World_Affairs) ou os International Physicians for the Prevention of Nuclear War (http://en.m.wikipedia.org/wiki/International_Physicians_for_the_Prevention_of_Nuclear_War), ambos aliás distinguidos com o Nobel da Paz, mas o meu exemplo preferido é o CERN, onde trabalham cientistas e engenheiros de todo o mundo, sem qualquer tipo de restrição, e onde indivíduos de países em guerra trabalham juntos, unidos por uma ética de trabalho científico que recusa ódios pessoais ou nacionais e que acredita na ciência como um conhecimento partilhado que deve pertencer a todos e que visa beneficiar todos. Penso que é através de exemplos como estes (pessoas de diferentes origens a trabalhar juntas) que se constrói a paz.
Não consigo citar "um caso de insucesso" porque a diplomacia cientifica existe de forma quase sempre não planeada, tem uma existência marginal e nunca se depositam grandes esperanças nestas iniciativas. Quando funciona é excelente porque se conseguem resultados absolutamente inesperados e que excedem largamente a "job description" dos cientistas.


Em Portugal quando, como e quem, exerce Diplomacia Científica?


JVM - Existe em geral na política portuguesa (particularmente à direita do espectro político) uma visão da ciência que é extremamente limitada e que vê toda a investigação cientìfica que não possa ter uma utilidade industrial imediatamente geradora de receitas como um inútil sorvedouro de dinheiros públicos. Esta visão não reconhece nenhum papel cultural à ciência (a não ser como um “elogio do desperdício” e da “inutilidade”) e abomina qualquer utilização política da ciência - ainda que seja em prol dos mais nobres objectivos. Esta visão considera a ciência exclusivamente como mais um factor de produção económica, que se deve inserir na lógica da produção industrial.
A visão da ciência como protagonista do diálogo entre os povos, como geradora de uma linguagem comum que se sobrepõe às diferenças locias, como exemplo de um entendimento superior ao paroquialismo é rara.
Diria que em Portugal, actualmente, ninguém exerce diplomacia científica como tal, mas essa visão existiu e esteve na base, nomeadamente, da adesão de Portugal às grandes organizações científicas internacionais (CERN, ESO, ESA, EMBL, etc.). Essa adesão pretendeu promover uma modernização acelerada do sistema científico e tecnológico nacional, através da multiplicação de contactos, da formação de cientistas, do desenvolvimento de tecnologias, da internalização de procedimentos exigentes, etc., mas teve também como objectivo um reconhecimento internacional de Portugal e uma inserção de Portugal no “concerto das nações” através destes fóruns. Penso que esse objectivo, diplomático por excelência, foi conseguido em larga medida.
Hoje em dia, devido a considerações financeiras sem visão política, esta perspectiva perdeu peso e penso que está excluída do panorama das relações externas portuguesas, tanto no domínio diplomático em sentido restrito como por parte das próprias organizações científicas.


Quem deverá exercer essa função? Um diplomata, um cientista, outro…?


JVM - A diplomacia científica deveria integrar a estratégia de relações externas do Estado português e deveria ser posta em prática pelo Governo e pelo sistema científico e técnológico. Não cabe (não deve caber) a este ou àquele actor especificamente mas a todos os actores com algum papel nas relações externas. Deve ser uma orientação dos Negócios Estrangeiros e um critério a seguir em todos os contactos exteriores das instituições científicas.
O Estado deveria deixar claro que considera que a Ciência é um instrumento particularmente eficaz no melhoramento das relações internacionais (de Portugal com outros estados e entre quaisquer partes) e na promoção da paz. A actividade cientifica deveria, assim, ser explorada como um domínio onde é possível construir pontes entre diferentes culturas e povos.
As relações científicas internacionais deveriam ser exploradas numa dupla vertente: a estritamente científica e a da promoção da cooperação internacional.
A ciência deve estar atenta à paz. Um dos graves problemas da nossa civilização é o facto de que existe uma florescente e rentável ciência de guerra e não há uma correspondente ciência da paz.
A “producao de paz” e a melhoria do entendimento internacional deve ser um critério de avaliação das políticas e dos programas científicos de cooperação internacional - e o mesmo deveria acontecer em relação à “redução da desigualdade” (nacional ou internacional) ou à sustentabilidade do planeta.
Devemos exigir da Ciência que produza paz e entendimento como produz vacinas e cereais. Uma ciência que não se preocupa com a paz é uma ciência desumana e desumanizadora que acabará por estar do lado da guerra, da ditadura e da opressão.


Que competências e/ou orientações deverão ter um ator de Diplomacia Científica, para uma ação mais eficiente?


A nível pessoal trata-se de uma questão de cultura e de atitude mais que de competências. O que significa que existe aqui um problema de formação - mas não falo especificamente nem sequer principalmente de formação académica. O ethos do investigador não é inculcado na escola mas na prática científica. Há por isso que definir critérios nas organizações que orientem a acção, os programas científicos e a avaliação dos projectos, programas e organizações.
É necessário inculcar em currículos académicos e nas práticas científicas a ideia da responsabilidade social da ciência e dos cientistas. Uma responsabilidade que excede “fazer honestamente o seu trabalho”. É indispensável que cientistas e organizações percebam que têm a obrigação ética de conhecer o contexto social, económico e político do seu trabalho e o contexto da utilização do fruto do seu trabalho.
A ciência não existe fora do contexto e não se pode analisar fora do contexto político. Não é indiferente quem vai usar um dado conhecimento nem o impacto social dessa utilização. Em Portugal está tudo por fazer no domínio da responsabilidade social do cientistas. A ética está cada vez mais afastada nas preocupações dos cientistas graças a um modelo tecnocrático de producão do conhecimento sempre ao serviço dos poderosos e do dinheiro. Não é admissível que uma organização científica ou que o sistema científico de um pais não se pergunte o si mesmo o que está a fazer pela paz, pelo planeta ou pela justiça e de que forma pode ajudar outros a fazer a diferença.
Não falo de uma actividade militante pela paz, paralela ao seu trabalho: digo que, na escolha e na orientação do trabalho científico, na escolha e na orientação das relações internacionais, estes critérios têm de estar presentes. A diplomacia começa em casa.


Que paralelo encontra entre a sua atividade profissional e a ação de um “diplomata de ciência”?


Alguma. Como colunista e como professor de comunicação de ciência, a perspectiva que tento transmitir a leitores e alunos é a da necessidade de uma profunda responsabilidade social da ciência e dos cientistas, que vai muito além do rigor na descrição dos fenómenos observados. Esta actividade, de reflexão e de divulgação, de alimetação do debate no espaço público, é central numa actividade de diplomacia científica.

FIM

quinta-feira, julho 24, 2014

Câmara Municipal de Lisboa quer vender quartel de bombeiros

Post publicado no Facebook a 24 Julho 2014

Um sinal dos tempos e um exemplo do que não se deve fazer: vender barato a uma empresa privada um equipamento público necessário e que custou caro a todos nós.
A Câmara Municipal de Lisboa pode estar muito apertada de finanças, mas devia te
ntar não dar exemplos tão negativos da gestão do património público, para mais quando António Costa se propõenal.
A venda do quartel de Benfica do Regimento de Sapadores Bombeiros (RSB) vai traduzir-se numa perda para o erário público e num benefício sem qualquer tipo de justificação para um grupo privado.
Como é que a Espírito Santo Saúde anunciou em Fevereiro de 2014 a ampliação do hospital em 40%, num momento em que o Plano de Pormenor do Eixo Urbano Luz-Benfica ainda não tinha sido alterado? A Espírito Santo Saúde sabia que a CML ia desactivar o quartel, pô-lo à venda e sabia que seria ela a comprá-lo? Como é que adivinhou o futuro?
É inaceitável que a CML decida vender um imóvel público em hasta pública quando sabe que a inexistência de outros interessados torna este método lesivo do interesse público, porque impede que seja encontrado um preço justo de venda.
É inaceitável que a CML decida vender um equipamento público quando sabe que vai precisar de o reconstruir noutro lado e que vai perder dinheiro com a operação.


http://www.publico.pt/local/noticia/camara-de-lisboa-quer-fechar-quartel-de-bombeiros-com-dez-anos-para-o-hospital-da-luz-ser-ampliado-1663833?page=-1

Ricardo Salgado detido

Post publicado no Facebook a 24 Julho 2014

"Ex-presidente do BES foi detido nesta quinta-feira na sua casa no Estoril e ouvido durante todo o dia em tribunal. É arguido no caso Monte Branco e está indiciado por crimes de burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais. Ministério Público quer saber onde param 60 milhões."

Parece que, quando lhe perguntaram pelos 60 milhões, Ricardo Salgado terá olhado incrédulo o interrogador e terá dito "60 milhões? De euros?", ao que o juiz interrogador terá confirmado, com severidade, "Sim, 60 milhões! Sim, de euros, de que havia de ser?". Nesse momento, Ricardo Salgado primeiro esboçou um discreto sorriso, baixou a cabeça e repetiu em voz baixa "Sessenta milhões... de euros...", como se falasse para si, depois o sorriso foi-se abrindo no seu rosto para dar lugar primeiro a uma risada, depois a outra até que, sem se conter, explodiu numa gargalhada lançando uma chuva de perdigotos para a gravata do magistrado à sua frente. As gargalhadas sucederam-se de forma incontrolável e as lágrimas começaram a correr pela cara pelo banqueiro, que batia com a palma da mão no tampo da secretária à sua frente sem poder conter-se... Ainda tentou articular "Sessent... sessen...." mas o ataque de riso que lhe sacudia o corpo convulsivamente sufocava-o e não o deixou completar a frase. Começou a tossir e a cuspir, sempre sem conseguir parar de rir, e os interrogadores recearam uma síncope ou um ataque psicótico. Foi chamado o INEM, mas os paramédicos limitaram-se a constatar que o banqueiro ria.


http://www.publico.pt/economia/noticia/ricardo-salgado-fica-em-liberdade-apos-pagar-caucao-de-3-milhoes-de-euros-1664117#/0

terça-feira, julho 22, 2014

A defesa do sistema de investigação é uma questão de soberania

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Julho de 2014
Crónica 35/2014


O problema está no facto de a FCT ter mentido ao negar a existência de quotas.

Vamos ver se nos entendemos sobre a avaliação da investigação nacional actualmente em curso pela European Science Foundation (ESF), sob encomenda da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT):

1. O problema não está no facto de a avaliação ter deixado de fora (entre unidades sem financiamento e unidades com um financiamento residual) metade das unidades de investigação.

O problema está no facto de a FCT ter levado a cabo esse corte sem que essa decisão fosse previamente objecto de discussão ou, no mínimo, de anúncio à comunidade científica. Não se realiza um corte com esta violência sem o discutir e defender no espaço público – a não ser que não existam quaisquer argumentos que o possam sustentar.

O problema está no facto de a FCT ter levado a cabo este corte sem que a qualidade de muitas das unidades de investigação sacrificadas o justificasse. Se este corte fosse a consequência de metade das unidades de investigação serem medíocres, haveria muita gente a defendê-lo e a aceitá-lo, por muito doloroso que fosse.

O problema está no facto de a FCT ter mentido ao negar a existência de quotas para o número de centros que passariam à segunda fase, quando o contrato firmado entre a FCT e a ESF define claramente que apenas metade das unidades de investigação deverão passar à segunda fase.

O problema está no facto de a falta de vergonha e o sentimento de impunidade serem tais que o presidente da FCT nega que tenham sido definidas quotas à ESF numa entrevista publicada no mesmo número do PÚBLICO que revela o teor do contrato FCT-ESF, onde essa claúsula aparece preto no branco não uma, mas duas vezes.

O problema está no facto de as notas de algumas unidades terem sido descidas de forma discricionária apenas para se poder argumentar com uma suposta falta de qualidade científica para não as passar à segunda fase. É completamente diferente ter uma boa avaliação científica mas não ter financiamento por falta de dinheiro e ver a sua classificação degradada. É como se uma faculdade de Medicina, apenas por não ter vagas para todos os candidatos, decidisse transformar os 19 valores obtidos nas provas de acesso por um candidato numa classificação de 12 valores.

2. O problema não está no facto de a avaliação ter sido muito exigente e de ter sido levada a cabo por uma organização internacional.

O problema está no facto de não haver uma razão clara para a contratação da ESF, que não possui experiência ou reputação na avaliação de unidades de investigação.

O problema está no facto de a avaliação apresentar tantas falhas que esta página não chega para as enumerar a todas (desde notas enormemente discrepantes dadas à mesma unidade, à avaliação de muitas unidades por não especialistas, a erros factuais persistentes e não corrigidos após o devido rebuttal pelos avaliados, à utilização de indicadores bibliométricos desajustados para avaliar certos parâmetros, etc.)

O problema está no facto de a direcção da FCT ter respondido de forma pouco profissional e pouco transparente às inúmeras chamadas de atenção para estes problemas, feitas com base em dados e documentos, e de ter escolhido uma posição de entricheiramento e de teimosa negação das falhas.

O problema está, em resumo, precisamente no facto de a avaliação ter sido realizada de forma pouco exigente e pouco transparente.

3. O problema também não está no facto de a FCT ter decidido apostar na excelência e de as unidades que ficaram abaixo dessa bitola estarem roídas de inveja.

António Coutinho, em declarações ao PÚBLICO, coloca em alternativa o financiamento da excelência e o financiamento da mediocridade, para afirmar que prefere a primeira estratégia, como se houvesse apenas estes dois pólos. Esta é uma das falácias mais usadas na defesa de uma política de apoio exclusivo à excelência. De facto, entre a excelência e a mediocridade há vários graus e ninguém defende o financiamento da mediocridade. Como ninguém defende que se deixe de apoiar (e de forma muito determinada) a excelência.

Quando se critica o apoio exclusivo à excelência e a condenação à morte dos não excelentes defende-se, simplesmente, que os investigadores e as unidades que são bons não sejam destruídos. Trata-se de uma ideia sensata em termos económicos e ecológicos (não desperdiçar recursos) e justa em termos éticos (não castigar os bons por não serem santos). Trata-se também de ter alguma confiança nos orientadores e nas equipas e de acreditar que é a prática científica que forma o cientista e que, por isso, é possível um bom investigador tornar-se melhor.

Trata-se também de defender que as áreas de saber fundamentais para o país não sejam arrasadas. Imagine-se que a investigação agrária ou a investigação marinha ou as telecomunicações em Portugal tinham apenas o nível “bom”. Seria criminoso destruir estas áreas com esse argumento formal, em vez de as desenvolver, porque o conhecimento é também uma questão de soberania.

jvmalheiros@gmail.com

sexta-feira, julho 18, 2014

Comentários sobre "neoliberalismo" publicados no Facebook

Facebook 18 Julho 2014

Comentário 1

Se posso meter a minha colherada, o neoliberalismo (certamente na acepção em que o utilizo) não tem mesmo nada a ver com o liberalismo político e tem muito pouco a ver com o liberalismo económico (que já não tem nada a ver com o anterior).

O neoliberalismo é uma corrente da extrema-direita económica, que usa uma retórica económica liberal mas que é de facto uma filosofia de captura do Estado pelas forças do capital financeiro e de subjugação do trabalho por todos os meios possíveis. O neoliberalismo não defende a liberdade para todos (como o liberalismo político) nem a liberdade dos agentes económicos em geral num level playing field (como o liberalismo económico) mas a total liberdade para o capital financeiro e o controlo político dos seus opositores.

O neoliberalismo é antiliberal.

Comentário 2

Eu não digo que a FCT é neoliberal. Escrevi que "a avaliação da FCT é um instrumento de exclusão, à boa maneira da gestão empresarial neoliberal". A avaliação, no paradigma da gestão neoliberal, é um instrumento de repressão, que visa instilar o medo e a submissão (sim, é a minha opinião, não é um facto). A avaliação individual numa empresa visa aumentar a assimetria da relação laboral. É um "abuso de posição dominante", se quiser, e o contrário da concorrência, da negociação e do "mercado".

quinta-feira, julho 17, 2014

FCT: a má avaliação dá mau nome à avaliação

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público Online a 17 de Julho de 2014



É difícil de compreender que a comunidade científica como um todo não seja mais vigorosa na sua contestação, exigindo mais assertivamente da FCT a correcção pública dos erros cometidos e uma prática com o rigor e a transparência a que temos direito.

A propósito da avaliação das unidades de investigação portuguesas, levada a cabo pela European Science Foundation sob contrato da FCT, tenho recebido uma grande maioria de mensagens e comentários extremamente críticos dessa avaliação, onde abundam exemplos particulares de erros dos avaliadores ou incoerências na avaliação (infelizmente muitas vezes de remetente anónimo, o que diz algo sobre o ambiente de escassa liberdade e de medo que grassa na academia portuguesa).

A par dessas recebi também alguns comentários que consideram que muita da investigação feita em Portugal é de baixa qualidade (penso que nem todos serão oriundos de falsos perfis criados por empresas de comunicação amigas do governo), que chegou o momento de separar o trigo do joio e que esta avaliação é um passo nesse sentido.

Alguns comentários:

1. Não tenho, pessoalmente, a mínima dúvida de que uma parte da investigação que se faz em Portugal é de escassa qualidade e que uma parte dos investigadores portugueses são fracos ou pior. Mas não sei dizer quantos e muito menos quais. A minha sensação pessoal, é que a maioria tem uma qualidade aceitável (quero dizer boa), mesmo em termos internacionais, mas trata-se apenas de uma sensação. E é provável que eu tenha ouvido falar sempre dos melhores. Só que, para além da minha sensação, há muitos exercícios de avaliação, alguns deles levados a cabo pela própria FCT, relativos a investigadores e a unidades de investigação, que me confortam nessa convicção (veja-se o “Diagnóstico do Sistema de Investigação e Inovação” (2013)). A investigação portuguesa ainda não ocupa lugares cimeiros nos rankings (ao contrário do que por vezes se poderia pensar, tendo em conta o entusiasmo de alguma cobertura mediática ou de alguns discursos políticos, nomeadamente de dirigentes da própria FCT) mas tem vindo a melhorar as suas posições em termos quantitativos e qualitativos e possui áreas que são internacionalmente muito robustas e com excelente reputação.

Dito isto, conheço e ouvi falar de inúmeros casos de investigadores ausentes, improdutivos ou indiferentes e até de investigadores desonestos e já me cruzei pessoalmente com alguns trabalhos de investigação cuja qualidade não passaria no crivo de um bom editor de um jornal diário. Tal como conheço as queixas de bons investigadores de bons laboratórios que se queixam de que alguns dos seus colegas “não fazem nada”.

2. Conheço igualmente a cultura nepotista, amiguista, bairrista, endogâmica e corporativista que existe em muitas organizações portuguesas e, nomeadamente, em organizações da universidade e da investigação portuguesas. A cultura da troca de favores; da mão que lava a outra e as duas a cara; do tu dás uma boa nota ao meu aluno que eu dou uma boa nota ao teu; dos concursos com um vencedor escolhido à partida; das embaixadas discretas ao ministro, aos secretários de Estado e aos presidentes da FCT em vez das discussões públicas, etc.. Como conheço a cultura dos mandarins da investigação, sempre próximos do poder e do dinheiro, eminências pardas por vocação, calados em público e sussurantes in camera, que têm à partida as avaliações garantidas e o financiamento assegurado por condições de trabalho privilegiadas.

3. Servem os pontos anteriores para sublinhar que sei que existem muitos problemas para resolver na prática da investigação portuguesa e que é necessário resolvê-los - e isto sem falar dos grandes problemas sistémicos da política científica, como são o emprego científico, a decadência dos laboratórios de estado, a investigação nas empresas, os programas estruturais, etc.

4. A correcção desta situação exige antes de mais um rigoroso processo de identificação dos problemas, o que pode ser conseguido no âmbito de um processo de avaliação das unidades de investigação. Mas é importante reflectir sobre o objectivo da avaliação. Se o objectivo da avaliação é condenar ou fechar unidades, exclui-las de participar em concursos futuros ou de beneficiar de determinados investimentos, reduzir gastos e/ou despedir pessoas, estamos a desperdiçar uma ferramenta de gestão e a desperdiçar o investimento já feito (na formação das pessoas, na criação da instituição, na criação de uma rede de contactos, em equipamentos, etc.).

A avaliação não pode ser uma expedição punitiva - e esta avaliação parece ter sido conduzida pela FCT exactamente com esse espírito. A avaliação da FCT é um instrumento de exclusão, à boa maneira da gestão empresarial neoliberal, e é, por isso, um instrumento de infusão de medo e de submissão.

A avaliação da FCT é um processo de destruição de valor (para usar uma expressão do jargão da gestão) e não parte de um processo de identificação de erros, correcção, redireccionamento e melhoramento, como deveria ser, se a FCT tivesse o devido empenho na protecção do património público que lhe compete proteger e desenvolver.

5. A questão é que a avaliação não é um substituto da gestão e, se existem problemas na investigação portuguesa, eles devem ser identificados, encarados, discutidos e resolvidos e não varridos para debaixo do tapete. A classificação de dezenas de unidades de investigação como “razoáveis” ou “insuficientes” não pode ser uma autorização para descurar a gestão do património público e para não promover a sua qualificação.

6. O principal problema com a avaliação agora feita é precisamente o facto de a sua falta de qualidade e o seu enviesamento se constituir como um obstáculo a um futuro exercício de avaliação rigoroso. Uma má avaliação dá um mau nome à avaliação e pode impedir uma boa avaliação durante anos, permitindo a subsistência no sistema de unidades ou investigadores que deveriam de facto ser encerrados ou afastados.

Uma avaliação mal feita significa que ter uma má classificação deixa de ter qualquer custo reputacional e, por isso, não contribui para o estabelecimento de uma cultura de exigência e responsabilização.

7. A falta de transparência do processo, em particular, favorece a manutenção do clima de amiguismo e nepotismo. E não, não é o facto de se publicar documentos no site que torna automaticamente um processo transparente. Um processo é transparente quando os seus trâmites são transparentes, quando a sua racionalidade é transparente, quando as questões são respondidas pelos envolvidos de forma clara. Um processo onde uma unidade de investigação é avaliada com dados factualmente incorrectos, onde corrige na sua resposta ao avaliador esses dados incorrectos e onde esses dados incorrectos são mantidos sem explicação pelo avaliador na avaliação final não é um processo transparente, mesmo que os documentos estejam publicados online.

8. A avaliação não pode ser um instrumento para impor pela porta do cavalo opções estratégicas que nunca foram anunciadas ou discutidas, como o benefício de certas áreas científicas e tecnológicas em detrimento de outras, enviesando à partida os critérios de avaliação. Um sinal de que isso poderá ser um dos objectivos da actual avaliação é, por exemplo, a escolha de critérios e ferramentas bibliométricas que beneficiam claramente as ciências da vida (por coincidência ou não, a área de trabalho do presidente da FCT e da secretária de Estado da Ciência) em detrimento das ciências da computação, que são uma das mais competitivas áreas de investigação nacional.

9. A avaliação das unidades de investigação também não pode ter como principal objectivo libertar verbas que se pretende desviar para outras actividades. As más avaliações não podem ser um mero expediente para criar um pé-de-meia. Sabemos que a FCT reduziu os montantes que despende em bolsas e parece querer agora reduzir os seus gastos com as unidades de investigação. Se a FCT pretende criar uma almofada financeira para dedicar a uma qualquer outra actividade, deve anunciá-lo claramente e colocar essa estratégia (ou essa intenção) à discussão pública. As verbas que a FCT administra - parece ser conveniente lembrá-lo - não são propriedade da sua direcção.

10. Há quem me tenha chamado a atenção para o facto de que unidades de investigação com alguns excelentes investigadores podem ter, apesar disso, uma baixa qualidade média. É evidente que um centro de investigação com meia-dúzia de investigadores excelentes não é, por esse facto, uma unidade de excelência, mas é preciso ser cuidadoso para não deitar fora o bebé com a água do banho. Destruir um centro onde existe investigação de excelência com o argumento de que a sua média é baixa e pôr assim em causa a prossecução das actividades de excelência, é insensato e negligente. É um desperdício que o país não pode tolerar.

11. A verdadeira mania que existe na retórica da FCT com a “excelência”, com a avaliação como forma de identificar essa “excelência” e, em particular, com o recurso à avaliação quantitativa e bibliométrica como núcleo duro da avaliação merece alguns comentários. É evidente que a investigação deve usar critérios exigentes e que não devem ter lugar no sistema de investigação público profissionais incompetentes ou improdutivos. Mas daqui a considerar que se devem apenas financiar a excelência (ou a supra-excelência, seja isso o que for, porque a FCT inventou nada mais do que duas categorias acima de “excelente”) vai um passo que não se deve dar.

Imagine-se que, numa qualquer organização (numa empresa ou no sistema de saúde, por exemplo) se realiza uma exigente e rigorosa operação de avaliação e se despedem todos os trabalhadores não excelentes. É fácil imaginar o que aconteceria a essa organização. Um sistema de investigação tem forçosamente de incluir outras preocupações para além da pura excelência científica - como uma cobertura das principais áreas de investigação, a manutenção de massa crítica nas várias áreas e sub-áreas, etc. Uma selecção de futebol não se faz só com Ronaldos nem se constitui uma selecção sem uma pool alargada de jogadores de futebol. Definir, em nome da excelência, uma bitola exageradamente alta (se fosse esse o caso) destrói qualquer sistema. Pode parecer exigente mas é apenas negligente.

12. Uma das razões por que se deve ser prudente com a mania da excelência é porque um investigador não faz a mesma coisa durante toda a sua vida e pode nem sequer dedicar-se durante toda a vida à mesma área científica. Um investigador que é apenas bom numa dada função pode ser excelente noutra e vice-versa. Tomemos um exemplo prático: Miguel Seabra tem a reputação de ser um excelente investigador na sua área, mas decidiu a dada altura enveredar pela gestão da investigação, onde demonstra uma performance medíocre. É admissível que uma pessoa menos brilhante na investigação médica fosse melhor como gestor de investigação, com ganhos para todos.

13. O presidente da FCT não pode esconder-se atrás de um comunicado perante a vaga de críticas de que a sua instituição é alvo e muito menos usando argumentos de autoridade. Miguel Seabra tem de responder a todas e a cada uma das perguntas feitas e às objecções levantadas à avaliação que realizou e deve fazê-lo não numa reunião de gabinete mas de forma pública e cabal. Mais uma vez, convém lembrar que a FCT é um organismo do Estado e não um grupo de amigos de Miguel Seabra, que gere bens públicos e que tem um dever de transparência e de prestação de contas aos cidadãos.

14. Nota final: perante um processo tão lamentável como este, não é apenas a FCT que sai desacreditada. A FCT conseguiu provavelmente marcar pontos no imaginário popular contra os investigadores, na linha do “todos os beneficiários do RSI são ladrões” e do “todos os desempregados são uns calões” a que este governo nos habituou.

É por isso difícil de compreender que a comunidade científica como um todo não seja mais vigorosa na sua contestação, exigindo mais assertivamente da FCT a correcção pública dos erros cometidos e uma prática com o rigor e a transparência a que temos direito.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, julho 15, 2014

O prédio está a cair, mas a FCT diz que está tudo bem

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Julho de 2014
Crónica 34/2014


Se a FCT considerasse que a avaliação tinha sido bem feita deveria ter ficado em estado de alerta vermelho.
Nuno Crato sempre foi um crente no poder dos exames. Para Crato, basta colocar um exame no final de um ciclo de ensino para se obter uma melhoria automática na qualidade desse ciclo de ensino. Porquê? Porque o sistema se ajusta automaticamente a esse obstáculo e se reorganiza de forma a superar essa prova.

Vem isto a propósito da avaliação das unidades de investigação, que está a ser levada a cabo pela European Science Foundation (ESF) por encomenda da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), instituição sob tutela de Nuno Crato, e onde os resultados da primeira fase foram desastrosos para as unidades avaliadas. Das 322 unidades avaliadas, apenas 168 passaram à segunda fase de avaliação e, das restantes, 83 tiveram a classificação de “Bom”, uma classificação fraca, que se traduzirá num financiamento residual, e 71 unidades foram já excluídas de qualquer financiamento futuro. Esta avaliação deu origem a um clamor nacional que não se limitou a contestar os resultados. Unidades de investigação e investigadores vieram denunciar irregularidades várias nesta avaliação, como o facto de certas unidades terem tido más avaliações apesar de os indicadores em que essa avaliação se baseou serem excelentes, o facto de unidades avaliadas como excelentes nas avaliações anteriores terem sem explicação passado a ser classificadas como fracas, o facto de muitos avaliadores fazerem afirmações factualmente falsas sobre as unidades que avaliaram, o facto de as comissões não possuírem especialistas de muitas das áreas que avaliaram, o facto de muitas das unidades terem sido avaliadas por uma maioria de não-especialistas da área avaliada, o facto de ser evidente um enviesamento ideológico em algumas das avaliações feitas, etc..

Se o objectivo da FCT e de Nuno Crato fosse fazer uma avaliação honesta das unidades de investigação, qualquer uma destas reclamações deveria ter acendido uma luz vermelha e dado origem a uma fiscalização rigorosa do processo. Mas não deu. Em resposta à chuva de críticas documentadas que recebeu, a FCT veio apenas dizer que reitera “a sua total confiança na robustez do exercício de avaliação das Unidades de Investigação” e que os critérios de avaliação definidos “foram escrupulosamente cumpridos”.

Paremos para respirar.

Se a FCT considerasse, de facto, que a avaliação tinha sido bem feita, deveria ter ficado em estado de alerta vermelho antes mesmo de receber as reclamações, no exacto momento em que recebeu os resultados da primeira fase da avaliação. E deveria ter ficado alarmadíssima porque estes resultados significam que metade das unidades de investigação do país são medíocres, que um quarto deve ser objecto de execução sumária e que outro quarto vai ser condenada a uma morte lenta – o que, seja qual for a razão, constitui um cataclismo de proporções gigantescas, com impactos em todos os sectores da vida nacional. E deveria também ter ficado alarmadíssima porque estes resultados contrariam frontalmente resultados de avaliações anteriores, feitas sob a sua responsabilidade, que desenhavam uma panorama muito diferente, o que significava que ela própria, FCT, tinha sido clamorosamente incompetente. Mas não. A FCT parece considerar estes resultados como normais e esperados, defende a avaliação e os avaliadores com unhas e dentes e não faz sequer nenhum comentário sobre a substância da avaliação. E o mesmo faz aliás Crato, que desde a sua tomada de posse parece ter tanto a ver com a investigação portuguesa como o pato Donald.

Imaginemos, por um momento, que o presidente da FCT, Miguel Seabra, está de boa-fé e considera que a ESF fez bem o seu trabalho e que, por conseguinte, metade da investigação portuguesa deve ir para o lixo. O que seria normal que a FCT fizesse? Miguel Seabra parece esquecer-se de que a FCT é responsável pela investigação nacional e que lhe compete garantir a gestão e o desenvolvimento do sistema. Se Miguel Seabra acha que metade do sistema está podre, deveria lançar uma operação de emergência para o recuperar e tentar envolver nela todos os parceiros necessários – em vez de o deitar para o lixo de uma penada. Trata-se de organizações, de pessoas, de investimentos e de saber acumulado que constitui um património nacional. Mas é possível que, tal como Crato, Seabra pense que, para melhorar um sistema, basta colocar um exame no fim, chumbar o máximo de avaliados e esperar a resposta automática. Dá certamente menos trabalho e uma grande quantidade de chumbos pode dar uma ideia de exigência.

De uma coisa podemos ter a certeza: a contratação de uma grande organização internacional não é garantia de qualidade. Mas é natural que, também quanto a isto, Miguel Seabra tenha uma opinião diferente, já que foi recentemente eleito presidente da Science Europe, a organização que vai suceder à European Science Foundation que ele contratou.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, julho 08, 2014

Da vergonha, da falta dela e da incapacidade ética

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Julho de 2014
Crónica 33/2014


A avaliação das unidades de investigação é parte de uma operação de desmantelamento do sistema científico português

O processo de avaliação das unidades de investigação nacionais, levado a cabo pela European Science Foundation (ESF) por encomenda da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), cujos primeiros resultados foram publicados há dias, é uma vergonha e um desastre.

É uma vergonha para a FCT e para o seu presidente, Miguel Seabra; para a secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira; e para o Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato. E é uma vergonha não apenas porque estas três pessoas são os responsáveis pela operação, mas também porque os três são investigadores e, como oficiais do ofício, não podem sacudir a água do capote invocando um desconhecimento das peculiaridades da área. E é um desastre porque esta avaliação é parte de uma operação de desmantelamento do sistema científico português e arrisca-se a destruir de uma penada instituições de referência que demoraram décadas a construir e a empurrar mais investigadores de qualidade para o exílio.

O processo de avaliação é uma vergonha porque suscita dúvidas sobre a competência técnica, a competência política e a competência ética de quem o dirige. Quanto à competência técnica, aquilo que se sabe até agora sobre o processo de avaliação torna claro que ele foi levado a cabo de forma superficial (se não negligente), descurando a análise da informação relevante sobre o trabalho das unidades de investigação avaliadas, sem discutir as avaliações com os avaliados, usando critérios incoerentes para avaliar diferentes unidades e por comissões de avaliação que não possuíam especialistas com as competências adequadas.

O processo levanta dúvidas sobre a competência política dos seus dirigentes pois nenhum deles parece dar-se conta de que, a prosseguir nestes termos, esta avaliação vai condenar à morte a prazo metade das unidades de investigação portuguesas, aniquilando áreas de investigação e deixando lacunas impossíveis de colmatar no conhecimento científico e tecnológico nacional, afectando de forma duradoura a credibilidade do Estado e a confiança que os investigadores e os agentes económicos possam ter nas decisões e promessas de política científica e de inovação.

Finalmente, em termos éticos, é absolutamente inadmissível que seja lançado um processo de avaliação onde os critérios não foram objecto de uma apresentação clara e de uma discussão prévia com a comunidade científica (tal como, infelizmente, a FCT já tinha feito com as bolsas de doutoramente e pós-doutoramento), onde não existe transparência na composição das comissões de avaliação, onde não houve o cuidado de incluir especialistas das diferentes áreas a avaliar mas onde o facto também não parece ter inibido os restantes de se pronunciar sobre áreas que desconhecem, onde não existe direito de recurso e onde são evidentes casos de enviezamento ideológico na avaliação. A título de exemplo, basta citar o caso da comissão de avaliação que entendeu criticar o interesse de uma unidade de investigação (o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL) pelas temáticas da desigualdade e das migrações, que considerou “esgotadas em termos de publicações” e exortá-la a dedicar-se a tópicos de pesquisa “mais inovadores”. O que dizer da qualidade científica e da lisura intelectual de uma comissão de sábios que entende não haver nada mais a estudar sobre desigualdade e migrações? E o que dizer da ausência de resposta por parte de Crato à vaga de críticas que a avaliação das unidades de investigação suscitou?

A incompetência ética não significa necessariamente desonestidade. As propostas de investigação chumbadas pela comissão de ética de um hospital não são necessariamente desonestas. O que esta incapacidade ética revela é um menosprezo pela transparência e pelo debate, pela equidade e pela isenção ideológica, pelo escrutínio dos cidadãos em geral e da comunidade científica em particular.

É verdade que é difícil ver racionalidade no que a FCT e Nuno Crato estão a fazer na investigação, mas gostaria de propor uma hipótese justificativa e alternativa da simples estupidez (que, por rigor metodológico, não deve porém ser descartada). Acontece que o investimento das últimas décadas na investigação nasceu de um consenso político laboriosamente construído, do CDS ao PCP, que sustentou um evidente progresso nesta área, beneficiou em cascata inúmeras outras actividades no país e contribuiu em larga medida para fazer de Portugal um país moderno.

Ora a direita furiosa que se encontra no poder não gosta de consensos (ao contrário do que proclama), muito menos de consensos sobre a importância de um papel central do Estado num sector vital para o país e menos ainda de consensos que sustentam ideias de independência, de autodeterminação e sentido crítico. A machadada que Nuno Crato quer dar na investigação é apenas uma forma de o governo mostrar que não existem sectores protegidos da austeridade, que não existem sectores que o estado assuma como responsabilidade sua e que o saber não possui um estatuto particular na escala de valores e na sociedade de mercado que a direita preconiza. O Governo quer mostrar quem manda.
jvmalheiros@gmail.com

Crónica no Público: http://www.publico.pt/opiniao/noticia/da-vergonha-da-falta-dela-e-da-incapacidade-etica-1661950