por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Dezembro de 2013
Crónica 49/2013
A sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas
Li algures que os nomes próprios que os pais escolhem para os seus filhos têm uma relação com o ambiente económico que se vive na época em que estes nascem.
Épocas de crescimento económico e de grande desenvolvimento, de pleno emprego e de investimentos arrojados, que permitem alimentar grandes esperanças para o futuro, suscitam o aparecimento de Júlios Césares, de Alexandres Magnos e de nomes de ressonâncias históricas mais nacionais mas sempre com uma predominância de nomes próprios duplos. Épocas de recessão, de desemprego e de pobreza, de retracção e ansiedade, onde o futuro se anuncia preocupante, suscitam o aparecimento de nomes singelos e discretos, prudentes Joões, Marias e Josés.
Não sei se a actual crise está a ter este reflexo onomástico, mas lembrei-me disto nos últimos dias ao ver a moderação dos títulos de tantos comentários de balanço do ano que hoje acaba ou de prospectiva do que amanhã começa, alguns deles intitulados simplesmente "2013" ou "2014", como se nenhuma esperança autorizasse o arrojo de sonhar um mundo para além da mera continuação do negro presente, como se não sobrasse energia para nenhuma iniciativa além da mera constatação do tempo que passa ou como se a simples menção da data (qualquer delas), com o que encerra de inominável, fosse suficiente para nos saturar de significado, como “1984”.
A contenção destes títulos é outra forma de dizer como é difícil, nestes tempos marcados por mentiras e desilusões, erguer bandeiras que consigam despertar paixões e mobilizar vontades.
George Steiner fala num texto feliz de como, durante a Revolução Francesa, todo o futuro parecia estar finalmente ali, à mão de semear, de como todo o futuro parecia que ia acontecer “segunda-feira de manhã”. Hoje, em Portugal, e em grande parte da mesma Europa da Revolução Francesa, o futuro parece já ter acontecido todo há muitos anos e a sua simples invocação parece um cruel exercício de cinismo, quando não de hipocrisia.
E, no entanto, devia ser fácil despertar paixões e mobilizar vontades. Devia ser fácil reunir milhões de cidadãos em torno de um programa de justiça social e de decência, de progresso económico e de emprego, de qualificação e inovação, em vez da apagada e vil tristeza da actualidade, da destruição do Estado para enriquecer os mais ricos e para empobrecer os mais pobres. Pode aceitar-se a dificuldade em acreditar numa alternativa, mas não a falta de vontade de procurar uma. Em 2014 voltaremos a andar à procura do futuro.
2. Falar de mentiras e desilusões é falar das mensagens de Natal de Passos Coelho e de António José Seguro.
Não vale a pena sublinhar a mentira dos 120.000 postos de trabalho inventados por Passos Coelho, mas vale a pena retermo-nos na “recuperação” que se vai seguir à “austeridade”. É verdade que há indicadores económicos que melhoraram e que alguns deles (exportações) são de facto positivos. É verdade que a troika pode não voltar ao Terreiro do Paço a partir de meados de 2014 e que Portugal talvez se possa financiar “nos mercados”. Mas qual é a sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo Passos-Portas? A sociedade que herdaremos será uma sociedade muito mais pobre do que antes do “resgate” financeiro (em 2013 teremos o mesmo PIB que tínhamos treze anos antes, em 2000) e muitíssimo mais desigual, pois esta brutal perda de riqueza do país em geral foi acompanhada pelo enriquecimento dos muitos ricos, o que significa que os pobres e a classe média sofreram um empobrecimento superior à da média do país. Esta pobreza vai marcar gerações, pois o peso da dívida (que é impagável e terá de ser reestruturada) agravou-se por causa da “austeridade”. A sociedade que herdaremos terá não só muitos mais pobres mas muitos mais pobres-trabalhadores, devido à “compressão” dos custos do trabalho e à degradação das condições laborais. Teremos trabalhadores mais mal pagos em nome da ”competitividade” internacional. Teremos mais trabalhadores obrigados à docilidade pelo medo do desemprego e da miséria. Teremos empresas menos inovadoras pois o medo não incentiva a imaginação, não motiva nem impele ao risco. Teremos talvez menos desempregados oficiais, porque os mais bem preparados emigrarão ainda mais e os menos preparados deixarão de procurar emprego e aceitarão a miséria como destino. Teremos menos e piores serviços públicos. Teremos funcionários públicos humilhados e desmotivados. Teremos um sistema de investigação e inovação descapitalizado e que terá perdido uma geração de altíssima qualificação.Teremos um Estado mais pobre, com menos património, que terá sido passado a bom preço para as mãos de empresas amigas. Teremos mais conflitos sociais e mais violência. Teremos uma maior desconfiança das instituições e dos políticos em geral. Teremos um estado social amputado e instituída a caridade dispensada aos indigentes como forma de “acção social”. Passos Coelho, Paulo Portas e Mota Soares continuarão a sorrir sem vergonha e será cada vez mais difícil garantir às crianças que a indecência não compensa.
jvmalheiros@gmail.com
terça-feira, dezembro 31, 2013
terça-feira, dezembro 24, 2013
Depois do Natal
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Dezembro de 2013
Crónica 48/2013
Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar.
Quando eu era pequeno, não havia nada depois do Natal. Quando o Natal se começava a aproximar, quando chegavam as férias, eu começava a esperar o Natal e todas as expectativas, todos os desejos e todos os sonhos eram depositados aí. O Natal era um momento de esperança absoluta, que preenchia todo o horizonte, todo o futuro. Era essa a magia do Natal. A prova dessa magia era o investimento que o Natal representava, em planos, em tempo, na agitação dos preparativos.
O Natal absorvia tudo. Passávamos dias inteiros ainda antes das férias a escolher materiais e a fazer decorações de Natal para toda a casa, a comprar papéis dourados e a cortar, colar e pintar estrelas, velas e anjinhos. Era preciso ir à serra de Sintra buscar musgo para o presépio, que levava um dia a montar. A árvore ocupava outro dia. Depois as listas de compras, de presentes e de doces, as encomendas especiais, o bolo-rei nesta pastelaria, as broas na outra, os fritos a uma senhora que fazia para fora, a procura pelas lojas, depois o périplo por casa daqueles que não iríamos ver no Natal mas a quem deixávamos dias antes as prendas para abrir na Consoada.
Não era possível imaginar como seria o mundo depois do Natal, nem pensar sequer que houvesse um mundo depois do Natal. Ainda menos considerar a possibilidade de o Natal não ser aquilo que esperávamos, de não oferecer tudo o que se desejava.
E, mesmo que a realidade frustrasse uma parte das expectativas, no ano seguinte elas renasciam, da mesma maneira que um jogador compulsivo aposta todas as suas esperanças no jogo seguinte, sem pensar por um segundo em todos os jogos que já perdeu. E era verdade que depois do Natal ainda havia a passagem do ano e, na minha família, depois do fim de ano ainda havia o Dia de Reis, com festa na véspera e mais presentes, ainda que desta vez pouco mais que simbólicos, que tornavam o regresso à vida de todos os dias um processo gradual, sem ressacas violentas.
Essa magia do Natal durou para além da minha infância. Até que houve um ano em que dei por mim num dia do início de Dezembro a pensar no que iria fazer depois do Natal e percebi que a magia tinha desaparecido. O Natal tinha deixado de ocupar o horizonte, tinha perdido a capacidade de lançar o seu manto diáfano de fantasia sobre o prosaico dia-a-dia. Os pozinhos dourados mágicos que as fadas lançavam em torvelinhos pelo ar e que tornavam o mundo um sítio maravilhoso e onde os milagres eram possíveis tinham desaparecido.
A suspension of disbelief que nos permite viver todas as aventuras e deixarmo-nos embalar por todas as fantasias tinha desaparecido. O Natal tinha passado a ser uma data no calendário – uma festa com coisas agradáveis, com prendas a dar e receber, com uns jantares especiais e com as pessoas a tentar ser mais simpáticas do que de costume, mas apenas uma data. Depois da qual todos voltaríamos a ser iguais ao que éramos antes, depois da qual o mundo voltaria a ser o que era antes, sem que a festa tivesse operado qualquer magia duradoura.
Antes disso, o Natal era mágico porque era transformador. Transformador como no Conto de Natal de Dickens, capaz de transformar as pessoas más em pessoas boas, capaz de transformar para melhor a vida das pessoas – não porque fosse apenas um dia agradável. Era especial porque permitia a esperança. A esperança de que nunca mais nenhuma rapariguinha dos fósforos morresse de frio. E, não possuindo esse poder, passou a ser irrelevante e até triste. Triste porque não dá prendas aos meninos pobres que se portam bem e que lhe escrevem cartas a pedir uma casa, uma família, uma camisola, livros para a escola, um emprego para o pai, uns sapatos, o fim da guerra.
Este ano o Natal não consegue ocupar todo o horizonte de ninguém, nem sequer o das crianças, porque elas sabem que este ano as coisas estão mais difíceis, vêem que os seus pais sorriem menos e adivinham que poucos dos seus desejos serão satisfeitos. Este Natal não consegue tapar a miséria do ano que vem a seguir. Este Natal e este fim de ano é apenas o preâmbulo de um ano onde os Ebenezer Scrooge não serão tocados pela magia do Natal, onde continuarão a explorar e a torturar os seus empregados e onde as crianças continuarão a morrer de frio.
Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar e que não há nenhuma justiça divina ou mágica que premeie os bons e castigue os maus. Este Natal veio para nos mostrar que a justiça não é algo que nos vá ser oferecido e que tem de ser arrebatada das mãos daqueles que a sequestram. E a única esperança que ele permite consiste em acreditar que haverá cada vez menos pessoas a pensar como escravos e a compreender que há, lá fora, um mundo a conquistar.
(jvmalheiros@gmail.com)
Texto publicado no jornal Público a 24 de Dezembro de 2013
Crónica 48/2013
Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar.
Quando eu era pequeno, não havia nada depois do Natal. Quando o Natal se começava a aproximar, quando chegavam as férias, eu começava a esperar o Natal e todas as expectativas, todos os desejos e todos os sonhos eram depositados aí. O Natal era um momento de esperança absoluta, que preenchia todo o horizonte, todo o futuro. Era essa a magia do Natal. A prova dessa magia era o investimento que o Natal representava, em planos, em tempo, na agitação dos preparativos.
O Natal absorvia tudo. Passávamos dias inteiros ainda antes das férias a escolher materiais e a fazer decorações de Natal para toda a casa, a comprar papéis dourados e a cortar, colar e pintar estrelas, velas e anjinhos. Era preciso ir à serra de Sintra buscar musgo para o presépio, que levava um dia a montar. A árvore ocupava outro dia. Depois as listas de compras, de presentes e de doces, as encomendas especiais, o bolo-rei nesta pastelaria, as broas na outra, os fritos a uma senhora que fazia para fora, a procura pelas lojas, depois o périplo por casa daqueles que não iríamos ver no Natal mas a quem deixávamos dias antes as prendas para abrir na Consoada.
Não era possível imaginar como seria o mundo depois do Natal, nem pensar sequer que houvesse um mundo depois do Natal. Ainda menos considerar a possibilidade de o Natal não ser aquilo que esperávamos, de não oferecer tudo o que se desejava.
E, mesmo que a realidade frustrasse uma parte das expectativas, no ano seguinte elas renasciam, da mesma maneira que um jogador compulsivo aposta todas as suas esperanças no jogo seguinte, sem pensar por um segundo em todos os jogos que já perdeu. E era verdade que depois do Natal ainda havia a passagem do ano e, na minha família, depois do fim de ano ainda havia o Dia de Reis, com festa na véspera e mais presentes, ainda que desta vez pouco mais que simbólicos, que tornavam o regresso à vida de todos os dias um processo gradual, sem ressacas violentas.
Essa magia do Natal durou para além da minha infância. Até que houve um ano em que dei por mim num dia do início de Dezembro a pensar no que iria fazer depois do Natal e percebi que a magia tinha desaparecido. O Natal tinha deixado de ocupar o horizonte, tinha perdido a capacidade de lançar o seu manto diáfano de fantasia sobre o prosaico dia-a-dia. Os pozinhos dourados mágicos que as fadas lançavam em torvelinhos pelo ar e que tornavam o mundo um sítio maravilhoso e onde os milagres eram possíveis tinham desaparecido.
A suspension of disbelief que nos permite viver todas as aventuras e deixarmo-nos embalar por todas as fantasias tinha desaparecido. O Natal tinha passado a ser uma data no calendário – uma festa com coisas agradáveis, com prendas a dar e receber, com uns jantares especiais e com as pessoas a tentar ser mais simpáticas do que de costume, mas apenas uma data. Depois da qual todos voltaríamos a ser iguais ao que éramos antes, depois da qual o mundo voltaria a ser o que era antes, sem que a festa tivesse operado qualquer magia duradoura.
Antes disso, o Natal era mágico porque era transformador. Transformador como no Conto de Natal de Dickens, capaz de transformar as pessoas más em pessoas boas, capaz de transformar para melhor a vida das pessoas – não porque fosse apenas um dia agradável. Era especial porque permitia a esperança. A esperança de que nunca mais nenhuma rapariguinha dos fósforos morresse de frio. E, não possuindo esse poder, passou a ser irrelevante e até triste. Triste porque não dá prendas aos meninos pobres que se portam bem e que lhe escrevem cartas a pedir uma casa, uma família, uma camisola, livros para a escola, um emprego para o pai, uns sapatos, o fim da guerra.
Este ano o Natal não consegue ocupar todo o horizonte de ninguém, nem sequer o das crianças, porque elas sabem que este ano as coisas estão mais difíceis, vêem que os seus pais sorriem menos e adivinham que poucos dos seus desejos serão satisfeitos. Este Natal não consegue tapar a miséria do ano que vem a seguir. Este Natal e este fim de ano é apenas o preâmbulo de um ano onde os Ebenezer Scrooge não serão tocados pela magia do Natal, onde continuarão a explorar e a torturar os seus empregados e onde as crianças continuarão a morrer de frio.
Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar e que não há nenhuma justiça divina ou mágica que premeie os bons e castigue os maus. Este Natal veio para nos mostrar que a justiça não é algo que nos vá ser oferecido e que tem de ser arrebatada das mãos daqueles que a sequestram. E a única esperança que ele permite consiste em acreditar que haverá cada vez menos pessoas a pensar como escravos e a compreender que há, lá fora, um mundo a conquistar.
(jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, dezembro 17, 2013
O Natal mais triste de que há memória
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Dezembro de 2013
Crónica 47/2013
Este ano, tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos.
A última década foi palco de uma guerra discreta entre o Menino Jesus e o Pai Natal. O Menino Jesus tinha sido quase completamente eclipsado pelo Pai Natal e há uns anos um grupo dos seus apoiantes decidiu contra-atacar.
Foi nessa altura que apareceram aqueles estandartes vermelhos com o Menino Jesus dourado que as pessoas punham nas varandas para competir com os Pais Natais todos a subirem pelas fachadas dos prédios, mas o Pai Natal continuou à frente na corrida. A razão é fácil de perceber: não há filmes onde apareça o Menino Jesus a descer pela chaminé e a pôr prendas nos sapatinhos. E a figura seria ainda mais inverosímil do que a do Pai Natal, com aqueles trajes menores na noite mais fria do ano.
O Pai Natal tem um ar de avô, de folião, é uma força da Natureza, um bom gigante. Ver um recém-nascido de auréola dourada e de fralda a carregar com brinquedos é impossível de imaginar. Nem se percebe por que razão um recém-nascido daria prendas a alguém, enquanto um avô a dar prendas é natural.
A mãe de uma amiga minha, crente fervorosa nos poderes do Menino Jesus (nunca percebi bem isto no catolicismo, de haver uns crentes no Menino Jesus, outros que põem a sua fé no Cristo crescido e outros só no ressuscitado, outros mais virados para a Nossa Senhora das Dores, outros para a Nossa Senhora de Fátima) sente qualquer referência ao Pai Natal como uma punhalada. “Ai o meu rico Menino Jesus”, suspira. “Já ninguém fala do Menino Jesus”. Disse-lhe uma vez, para a consolar, que o Pai Natal também era santo, que era o grego S. Nicolau numa produção americana, mas a referência não pareceu aliviá-la e olhou-me com ar desconfiado.
Primeiro pensei que a sua preferência era de ordem teológica, mas acabei por compreender que tem mais a ver com uma questão de classe e um tudo-nada com a estética. O Menino Jesus é branco e dourado, um anjinho rosado, sem asas mas com uma auréola que lhe dá ainda mais superpoderes e longos caracóis leves e louros sobre a fronte. Depois, nasceu já com cerca de um ano e meio, o que lhe dá um ar vigoroso e fofinho e um olhar vivo e doce, em vez do ar frágil e desconjuntado dos recém-nascidos normais. O Menino Jesus é mais queque, adivinha-se-lhe um enxoval de gosto irrepreensível, fitinhas azuis de cetim, babetes de cambraia bordados à mão, mantinhas de alpaca azul-bebé e ainda tem aquelas prendas de um inexcedível bom gosto dos padrinhos Reis Magos, naqueles cofres pequeninos de prata cinzelada, que são um património.
O Pai Natal pode ser simpático mas há algo de vulgar na sua pose. É gordo, está sempre a correr de um lado para o outro, sempre a chicotear as renas e a saltar pelos telhados e a carregar sacos. Com aquela roupa de lã e aquelas botas deve suar como um cavalo e cheirar como um cossaco. A sua higiene não inspira confiança e o seu gosto é duvidoso. Porquê a cabeleira à Demis Roussos? Com que frequência é que ele lavará aquele cabelo? E aquele ar rubicundo de onde virá? Não haverá ali algum excesso de cerveja? Isso explicaria o riso a propósito e despropósito. Há algo de pouco cristão naquelas gargalhadas, como diria Jorge de Burgos. E o excesso de peso? Por que é que tem sempre de falar tão alto? Há muito de novo-rico naquele espalhafato. A verdade é que o Pai Natal tem um ar um pouco inconveniente, nem conhecemos a família dele, tudo o que veste tem um ar discount e não é uma pessoa como nós.
O Menino Jesus é tudo o que o Pai Natal não é. É discretíssimo, lindo, educado, sabe estar e não se pode ser de melhores famílias.
É verdade que o Jesus real tinha a pele muito escura, que os seus pais foram escorraçados de todos os albergues e que a mãe foi obrigada a dar à luz num estábulo no meio dos animais, mas isso são águas passadas que não vale a pena estar a lembrar porque todas as famílias têm as suas coisas. O Menino Jesus hoje é louro, e pronto. E o pai adoptivo, soube-se há pouco tempo, afinal nem era carpinteiro mas sim empresário do sector imobiliário. E a mãe era uma verdadeira senhora, elegantíssima e recatadíssima, que obedece e quase não diz nada durante toda a Bíblia.
Para as massas que andam nos centros comerciais, o Menino Jesus pode ter sido eclipsado pelo Pai Natal, mas as pessoas de qualidade ainda sabem distinguir. O Pai Natal está para o Menino Jesus como um supermercado para uma loja gourmet. Pode vender mais e ser mais conhecido, mas quem quiser qualidade, ser servido com atenção e num ambiente exclusivo, prefere ir à loja gourmet. É um bocadinho mais caro, mas é outra coisa.
Mas este ano aconteceu uma coisa surpreendente: tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos. Quase ninguém os viu. Andam os dois envergonhados por nos terem incitado a comprar presentes para eles fazerem figura junto dos nossos filhos? Ou com vergonha dos muitos sapatos onde nem um nem o outro irão pôr prendas na consoada. Tanto um como o outro sabem que o Natal deste ano será o mais triste de que há memória.
(jvmalheiros@gmail.com)
Texto publicado no jornal Público a 17 de Dezembro de 2013
Crónica 47/2013
Este ano, tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos.
A última década foi palco de uma guerra discreta entre o Menino Jesus e o Pai Natal. O Menino Jesus tinha sido quase completamente eclipsado pelo Pai Natal e há uns anos um grupo dos seus apoiantes decidiu contra-atacar.
Foi nessa altura que apareceram aqueles estandartes vermelhos com o Menino Jesus dourado que as pessoas punham nas varandas para competir com os Pais Natais todos a subirem pelas fachadas dos prédios, mas o Pai Natal continuou à frente na corrida. A razão é fácil de perceber: não há filmes onde apareça o Menino Jesus a descer pela chaminé e a pôr prendas nos sapatinhos. E a figura seria ainda mais inverosímil do que a do Pai Natal, com aqueles trajes menores na noite mais fria do ano.
O Pai Natal tem um ar de avô, de folião, é uma força da Natureza, um bom gigante. Ver um recém-nascido de auréola dourada e de fralda a carregar com brinquedos é impossível de imaginar. Nem se percebe por que razão um recém-nascido daria prendas a alguém, enquanto um avô a dar prendas é natural.
A mãe de uma amiga minha, crente fervorosa nos poderes do Menino Jesus (nunca percebi bem isto no catolicismo, de haver uns crentes no Menino Jesus, outros que põem a sua fé no Cristo crescido e outros só no ressuscitado, outros mais virados para a Nossa Senhora das Dores, outros para a Nossa Senhora de Fátima) sente qualquer referência ao Pai Natal como uma punhalada. “Ai o meu rico Menino Jesus”, suspira. “Já ninguém fala do Menino Jesus”. Disse-lhe uma vez, para a consolar, que o Pai Natal também era santo, que era o grego S. Nicolau numa produção americana, mas a referência não pareceu aliviá-la e olhou-me com ar desconfiado.
Primeiro pensei que a sua preferência era de ordem teológica, mas acabei por compreender que tem mais a ver com uma questão de classe e um tudo-nada com a estética. O Menino Jesus é branco e dourado, um anjinho rosado, sem asas mas com uma auréola que lhe dá ainda mais superpoderes e longos caracóis leves e louros sobre a fronte. Depois, nasceu já com cerca de um ano e meio, o que lhe dá um ar vigoroso e fofinho e um olhar vivo e doce, em vez do ar frágil e desconjuntado dos recém-nascidos normais. O Menino Jesus é mais queque, adivinha-se-lhe um enxoval de gosto irrepreensível, fitinhas azuis de cetim, babetes de cambraia bordados à mão, mantinhas de alpaca azul-bebé e ainda tem aquelas prendas de um inexcedível bom gosto dos padrinhos Reis Magos, naqueles cofres pequeninos de prata cinzelada, que são um património.
O Pai Natal pode ser simpático mas há algo de vulgar na sua pose. É gordo, está sempre a correr de um lado para o outro, sempre a chicotear as renas e a saltar pelos telhados e a carregar sacos. Com aquela roupa de lã e aquelas botas deve suar como um cavalo e cheirar como um cossaco. A sua higiene não inspira confiança e o seu gosto é duvidoso. Porquê a cabeleira à Demis Roussos? Com que frequência é que ele lavará aquele cabelo? E aquele ar rubicundo de onde virá? Não haverá ali algum excesso de cerveja? Isso explicaria o riso a propósito e despropósito. Há algo de pouco cristão naquelas gargalhadas, como diria Jorge de Burgos. E o excesso de peso? Por que é que tem sempre de falar tão alto? Há muito de novo-rico naquele espalhafato. A verdade é que o Pai Natal tem um ar um pouco inconveniente, nem conhecemos a família dele, tudo o que veste tem um ar discount e não é uma pessoa como nós.
O Menino Jesus é tudo o que o Pai Natal não é. É discretíssimo, lindo, educado, sabe estar e não se pode ser de melhores famílias.
É verdade que o Jesus real tinha a pele muito escura, que os seus pais foram escorraçados de todos os albergues e que a mãe foi obrigada a dar à luz num estábulo no meio dos animais, mas isso são águas passadas que não vale a pena estar a lembrar porque todas as famílias têm as suas coisas. O Menino Jesus hoje é louro, e pronto. E o pai adoptivo, soube-se há pouco tempo, afinal nem era carpinteiro mas sim empresário do sector imobiliário. E a mãe era uma verdadeira senhora, elegantíssima e recatadíssima, que obedece e quase não diz nada durante toda a Bíblia.
Para as massas que andam nos centros comerciais, o Menino Jesus pode ter sido eclipsado pelo Pai Natal, mas as pessoas de qualidade ainda sabem distinguir. O Pai Natal está para o Menino Jesus como um supermercado para uma loja gourmet. Pode vender mais e ser mais conhecido, mas quem quiser qualidade, ser servido com atenção e num ambiente exclusivo, prefere ir à loja gourmet. É um bocadinho mais caro, mas é outra coisa.
Mas este ano aconteceu uma coisa surpreendente: tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos. Quase ninguém os viu. Andam os dois envergonhados por nos terem incitado a comprar presentes para eles fazerem figura junto dos nossos filhos? Ou com vergonha dos muitos sapatos onde nem um nem o outro irão pôr prendas na consoada. Tanto um como o outro sabem que o Natal deste ano será o mais triste de que há memória.
(jvmalheiros@gmail.com)
Manifesto 3D - Pela Dignidade, pela Democracia e pelo Desenvolvimento: Defender Portugal
Terça-feira, 17 de Dezembro de 2013
É tempo de defender Portugal de resgates que o empobrecem, desesperam e põem em perigo a liberdade e a democracia. É tempo de recusar a submissão passiva de Portugal a uma União Europeia transformada em troika permanente. Precisamos duma alternativa política que dê força e sentido prático à resistência e ao protesto. Os portugueses precisam de uma maioria para governar em nome da dignidade, da democracia e do desenvolvimento. É tempo de juntar forças.
É possível uma alternativa política aos resgates e à austeridade e há, para isso, um programa político claro e com entendimentos abrangentes. O tempo urge e os apelos à unidade devem ter consequências. Para impulsionar a construção desta maioria democrática, as forças políticas, movimentos e pessoas que já hoje podem e querem convergir não têm de esperar por entendimentos entre toda a oposição democrática. Têm de dar passos que favoreçam a acção conjunta, desde já, no plano político e eleitoral.
As bases programáticas da convergência já existem. A prioridade é o respeito pela democracia e pela Constituição, impedindo que os interesses da finança se sobreponham aos direitos dos cidadãos. Estamos de acordo quanto à necessidade de pôr travão à austeridade e renegociar a dívida. De impedir o sufoco de novos resgates e memorandos, com esse ou outro nome. De devolver dignidade ao trabalho, começando por actualizar o salário mínimo e garantir a negociação colectiva. De combater as injustiças na distribuição do rendimento e da riqueza, moralizando o sistema fiscal. De erradicar a pobreza. De reafirmar que a saúde, a educação e as pensões não são mercadorias e que o Estado Social não está à venda. De preservar o carácter público da água, dos serviços postais e dos transportes colectivos.
Também convergimos na vontade de impedir que a União Europeia seja um espaço não-democrático, baseado na relação desigual entre ricos e pobres, credores e devedores, mandantes e mandados. Na necessidade de defender Portugal das exigências de um tratado orçamental, que impõe o empobrecimento, a dependência e o declínio.
A nossa proposta é clara: desenvolver um movimento político amplo que no imediato sustente uma candidatura convergente a submeter a sufrágio nas próximas eleições para o Parlamento Europeu.
Defendemos a constituição de uma lista credível e mobilizadora, que envolva partidos, associações políticas, movimentos e pessoas que têm manifestado inquietação, discutido alternativas e proposto acção.
Temos como objectivo construir um movimento político que seja o mais amplo possível. Uma plataforma abrangente e ao mesmo tempo clara é realizável a partir das bases programáticas que enunciámos. Ela deve ser levada a sufrágio para lhe dar voz e força. Enquanto cidadãos e cidadãs sem filiação partidária, mas nem por isso menos empenhados e politicamente ativos, estamos prontos a fazer a nossa parte.
Site: http://www.manifesto3d.pt
Promotores
Abílio Hernandez, professor da Universidade de Coimbra e mandatário da candidatura Cidadãos por Coimbra
Alexandre Oliveira, produtor
Américo Monteiro, sindicalista
Ana Cristina Costa, economista e professora universitária
Ana Sousa Dias, jornalista
André Carmo, geógrafo
António Avelãs, professor e sindicalista
António Hespanha, professor universitário
António Eduardo Pinto Pereira, engenheiro
António Pedro Vasconcelos, cineasta
Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra e Diretor do Centro de Estudos Sociais
Carlos Brito, escritor e antigo parlamentar
Cipriano Justo, médico e professor universitário
Cláudio Torres, arqueólogo
Constantino Alves, padre
Daniel Oliveira, jornalista
Domingos Lopes, advogado
Eugénia Pires, economista
Fernando Bessa Ribeiro, professor universitário
Guadalupe Simões, enfermeira e sindicalista
Hélder Costa, dramaturgo/encenador
Hélio Samorrinha, consultor comercial
Henrique Sousa, investigador em ciência política
Isabel Allegro de Magalhães, professora catedrática da UNL (aposentada)
Isabel do Carmo, médica, professora universitária
Isabel Tadeu, funcionária pública
Ivan Nunes, doutorando em Estudos sobre Cinema
João Almeida, assessor de vereação da C. M. Lisboa
João Arriscado Nunes, professor da Universidade de Coimbra
João Botelho, realizador
João Leal Amado, professor da Universidade de Coimbra
João Paulo Avelãs Nunes, professor da Universidade de Coimbra
Jorge Leite, professor da Universidade de Coimbra
Jorge Malheiros, geógrafo e docente universitário
José Aranda da Silva, farmacêutico
José Augusto Ferreira da Silva, advogado e vereador eleito pela candidatura Cidadãos por Coimbra
José Goulão, jornalista
José Lopes Guerreiro, consultor e ex-Presidente da Câmara Municipal do Alvito
José Luís Albuquerque, economista
José Maria Castro Caldas, economista e investigador
José Reis, professor universitário e membro da AM de Coimbra eleito pela candidatura Cidadãos por Coimbra
José Vítor Malheiros, consultor
Licínio C. Lima, professor catedrático
Luís Moita, professor da Universidade de Autónoma de Lisboa
Luísa Costa Gomes, escritora
Manuel Brandão Alves, professor da Universidade de Lisboa
Manuel Carlos Silva, professor universitário e sindicalista
Manuel Carvalho da Silva, professor universitário e investigador
Manuel Coelho, médico e ex-autarca
Manuel Sarmento, professor universitário
Manuela Mendonça, professora e sindicalista
Manuela Silva, médica psiquiatra
Mariana Avelãs, tradutora
Miguel Gomes, realizador
Nuno Artur Silva, autor e produtor
Nuno Fonseca, designer
Paulo Fidalgo, médico
Pilar del Rio, jornalista
Ricardo Araújo Pereira, humorista
Ricardo Paes Mamede, economista e professor universitário
Rui Caleiras, sindicalista
Rui Graça Feijó, investigador
Sérgio Manso Pinheiro, geógrafo e funcionário público
Teresa Medina, professora universitária
Teresa Pizarro Beleza, professora de Direito da Universidade Nova de Lisboa
É tempo de defender Portugal de resgates que o empobrecem, desesperam e põem em perigo a liberdade e a democracia. É tempo de recusar a submissão passiva de Portugal a uma União Europeia transformada em troika permanente. Precisamos duma alternativa política que dê força e sentido prático à resistência e ao protesto. Os portugueses precisam de uma maioria para governar em nome da dignidade, da democracia e do desenvolvimento. É tempo de juntar forças.
É possível uma alternativa política aos resgates e à austeridade e há, para isso, um programa político claro e com entendimentos abrangentes. O tempo urge e os apelos à unidade devem ter consequências. Para impulsionar a construção desta maioria democrática, as forças políticas, movimentos e pessoas que já hoje podem e querem convergir não têm de esperar por entendimentos entre toda a oposição democrática. Têm de dar passos que favoreçam a acção conjunta, desde já, no plano político e eleitoral.
As bases programáticas da convergência já existem. A prioridade é o respeito pela democracia e pela Constituição, impedindo que os interesses da finança se sobreponham aos direitos dos cidadãos. Estamos de acordo quanto à necessidade de pôr travão à austeridade e renegociar a dívida. De impedir o sufoco de novos resgates e memorandos, com esse ou outro nome. De devolver dignidade ao trabalho, começando por actualizar o salário mínimo e garantir a negociação colectiva. De combater as injustiças na distribuição do rendimento e da riqueza, moralizando o sistema fiscal. De erradicar a pobreza. De reafirmar que a saúde, a educação e as pensões não são mercadorias e que o Estado Social não está à venda. De preservar o carácter público da água, dos serviços postais e dos transportes colectivos.
Também convergimos na vontade de impedir que a União Europeia seja um espaço não-democrático, baseado na relação desigual entre ricos e pobres, credores e devedores, mandantes e mandados. Na necessidade de defender Portugal das exigências de um tratado orçamental, que impõe o empobrecimento, a dependência e o declínio.
A nossa proposta é clara: desenvolver um movimento político amplo que no imediato sustente uma candidatura convergente a submeter a sufrágio nas próximas eleições para o Parlamento Europeu.
Defendemos a constituição de uma lista credível e mobilizadora, que envolva partidos, associações políticas, movimentos e pessoas que têm manifestado inquietação, discutido alternativas e proposto acção.
Temos como objectivo construir um movimento político que seja o mais amplo possível. Uma plataforma abrangente e ao mesmo tempo clara é realizável a partir das bases programáticas que enunciámos. Ela deve ser levada a sufrágio para lhe dar voz e força. Enquanto cidadãos e cidadãs sem filiação partidária, mas nem por isso menos empenhados e politicamente ativos, estamos prontos a fazer a nossa parte.
Site: http://www.manifesto3d.pt
Promotores
Abílio Hernandez, professor da Universidade de Coimbra e mandatário da candidatura Cidadãos por Coimbra
Alexandre Oliveira, produtor
Américo Monteiro, sindicalista
Ana Cristina Costa, economista e professora universitária
Ana Sousa Dias, jornalista
André Carmo, geógrafo
António Avelãs, professor e sindicalista
António Hespanha, professor universitário
António Eduardo Pinto Pereira, engenheiro
António Pedro Vasconcelos, cineasta
Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra e Diretor do Centro de Estudos Sociais
Carlos Brito, escritor e antigo parlamentar
Cipriano Justo, médico e professor universitário
Cláudio Torres, arqueólogo
Constantino Alves, padre
Daniel Oliveira, jornalista
Domingos Lopes, advogado
Eugénia Pires, economista
Fernando Bessa Ribeiro, professor universitário
Guadalupe Simões, enfermeira e sindicalista
Hélder Costa, dramaturgo/encenador
Hélio Samorrinha, consultor comercial
Henrique Sousa, investigador em ciência política
Isabel Allegro de Magalhães, professora catedrática da UNL (aposentada)
Isabel do Carmo, médica, professora universitária
Isabel Tadeu, funcionária pública
Ivan Nunes, doutorando em Estudos sobre Cinema
João Almeida, assessor de vereação da C. M. Lisboa
João Arriscado Nunes, professor da Universidade de Coimbra
João Botelho, realizador
João Leal Amado, professor da Universidade de Coimbra
João Paulo Avelãs Nunes, professor da Universidade de Coimbra
Jorge Leite, professor da Universidade de Coimbra
Jorge Malheiros, geógrafo e docente universitário
José Aranda da Silva, farmacêutico
José Augusto Ferreira da Silva, advogado e vereador eleito pela candidatura Cidadãos por Coimbra
José Goulão, jornalista
José Lopes Guerreiro, consultor e ex-Presidente da Câmara Municipal do Alvito
José Luís Albuquerque, economista
José Maria Castro Caldas, economista e investigador
José Reis, professor universitário e membro da AM de Coimbra eleito pela candidatura Cidadãos por Coimbra
José Vítor Malheiros, consultor
Licínio C. Lima, professor catedrático
Luís Moita, professor da Universidade de Autónoma de Lisboa
Luísa Costa Gomes, escritora
Manuel Brandão Alves, professor da Universidade de Lisboa
Manuel Carlos Silva, professor universitário e sindicalista
Manuel Carvalho da Silva, professor universitário e investigador
Manuel Coelho, médico e ex-autarca
Manuel Sarmento, professor universitário
Manuela Mendonça, professora e sindicalista
Manuela Silva, médica psiquiatra
Mariana Avelãs, tradutora
Miguel Gomes, realizador
Nuno Artur Silva, autor e produtor
Nuno Fonseca, designer
Paulo Fidalgo, médico
Pilar del Rio, jornalista
Ricardo Araújo Pereira, humorista
Ricardo Paes Mamede, economista e professor universitário
Rui Caleiras, sindicalista
Rui Graça Feijó, investigador
Sérgio Manso Pinheiro, geógrafo e funcionário público
Teresa Medina, professora universitária
Teresa Pizarro Beleza, professora de Direito da Universidade Nova de Lisboa
terça-feira, dezembro 10, 2013
Como a política pode estar ao serviço da decência
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Dezembro de 2013
Crónica 46/2013
Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.
1. Nos últimos dias, depois da morte de Nelson Mandela, vimos várias vezes o seu nome associado a dois outros grandes combatentes da liberdade e da igualdade, Mahatma Gandhi e Martin Luther King, numa espécie de quadro de honra do nosso panteão pessoal e talvez de toda a humanidade.
Lembro-me de que, quando eu era pequeno, quando se queria referir um exemplo de grande autoridade moral, os nomes que vinham à ideia e à boca de todos eram o de Gandhi e o de Albert Schweitzer, médico e missonário franco-alemão, que tinha dedicado a sua vida à assistência médica num canto perdido do Gabão e que tinha recebido o prémio Nobel da Paz em 1952.
A influência de King e o seu papel na conquista dos direitos cívicos dos negros americanos tornar-se-iam conhecidos fora dos Estados Unidos principalmente depois da sua morte, em 1968, e, apesar de todas as suas conhecidas imperfeições humanas, o seu nome tornar-se-ia um sinónimo de perseverança e coragem no combate pela dignidade humana e na recusa da violência como meio para a alcançar.
A popularidade de Schweitzer, inversamente, acabaria por se desvanecer depois da sua morte, em 1965, em resultado de uma crítica moderna que viu na sua vida um exemplo do paternalismo do homem branco em relação aos africanos e um obstáculo à sua auto-determinação.
Mandela, por seu lado, começa a tornar-se uma presença constante no panorama mediático em 1980, com a campanha internacional “Free Mandela”, como símbolo da luta contra o apartheid e, após a sua libertação, a negociação do fim do apartheid, da instauração da democracia e da transferência de poder para as mãos da maioria negra transformam-no sem hesitações no homem mais admirado do planeta. Poucos imaginavam que a África do Sul poderia desatar o nó górdio do apartheid sem um banho de sangue e num espaço de tempo tão curto. Mandela consegue-o, substituindo a vingança pela verdade e reconciliação e pondo em prática uma política literalmente desarmante.
O que é espantoso num trio como Gandhi, King e Mandela, que são talvez os três homens cuja vida é objecto de maior admiração no mundo moderno, é que se trata de três políticos.
Ninguém adivinharia, quando se vê o respeito, o fervor e a emoção com que estes três homens são olhados, que os políticos sejam considerados, em Portugal e em tantos outros países do mundo, um exemplo de corrupção, de falsidade, de falta de princípios, de deslealdade, de subserviência perante os fortes, de indiferença.
Poder-se-ia argumentar com a diferença entre os políticos de “antes” e os de “hoje”, mas Mandela, que abandonou a presidência em 1999 e continuou uma actividade pública depois disso, é claramente um homem do nosso tempo.
O que este trio nos mostra é a política no seu melhor. A política como ela deve ser e como ela pode ser. A política como instrumento de libertação, de progresso, de paz e de fraternidade. Não a política da subserviência ou do falso consenso. Mas a política do combate sem tréguas contra a iniquidade, da inflexibilidade na luta pela dignidade. É admirável que Mandela, que dirigiu a luta armada contra o apartheid, tenha recusado o ódio como móbil da sua acção política e tenha convencido todo um país a fazê-lo. Mas Mandela nunca abdicou do essencial: o fim do apartheid e a democracia. É por isso que o admiramos: pela sua firmeza no essencial e pela sua eficácia, por não aceitar a indignidade nem na forma como os negros eram tratados nem na forma como poderiam ter tratado os brancos.
O que a admiração das pessoas evidencia é que o melhor da política continua a ser a nossa maior aspiração e o mais nobre dos objectivos a que os homens se podem dedicar. Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.
Em Portugal, particularmente, já tínhamos esquecido que a política pode ser exaltante. Isso é outra coisa que podemos agradecer a Mandela.
Não precisamos de menos política. Precisamos apenas de outros políticos.
Outra coisa curiosa no nosso trio é que dois destes homens (Gandhi e Mandela) eram advogados - uma profissão quase com tão má reputação como a dos políticos. Como era advogado Aristides de Sousa Mendes, que é hoje homenageado pela Ordem dos Advogados.
2. Há, no consenso que pareceu existir nos últimos dias sobre o legado de Mandela, uma esperança. Não falo do consenso hipócrita que pretende reescrever a história e colher louros indevidos aproveitando a morte de um grande homem. Mas falo daqueles para quem, com sinceridade, o legado de Mandela é admirável, desde a sua decisão de abraçar a luta armada ao seu abandono da violência. Há, em todos os gestos de Mandela, um núcleo de crenças que podem ser um ponto de entendimento entre um grande número de pessoas. Constituem o que podemos chamar a decência. A crença em direitos iguais para todos os homens e mulheres. Governar para servir todo o povo. O direito de todos a viver e a trabalhar com dignidade.
Também nós esperamos que um dia, em breve, de surpresa, como o fim do apartheid, a política possa deixar de nos repugnar e possa escolher a decência e começar a servir os cidadãos. (jvmalheiros@gmail.com)
Texto publicado no jornal Público a 10 de Dezembro de 2013
Crónica 46/2013
Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.
1. Nos últimos dias, depois da morte de Nelson Mandela, vimos várias vezes o seu nome associado a dois outros grandes combatentes da liberdade e da igualdade, Mahatma Gandhi e Martin Luther King, numa espécie de quadro de honra do nosso panteão pessoal e talvez de toda a humanidade.
Lembro-me de que, quando eu era pequeno, quando se queria referir um exemplo de grande autoridade moral, os nomes que vinham à ideia e à boca de todos eram o de Gandhi e o de Albert Schweitzer, médico e missonário franco-alemão, que tinha dedicado a sua vida à assistência médica num canto perdido do Gabão e que tinha recebido o prémio Nobel da Paz em 1952.
A influência de King e o seu papel na conquista dos direitos cívicos dos negros americanos tornar-se-iam conhecidos fora dos Estados Unidos principalmente depois da sua morte, em 1968, e, apesar de todas as suas conhecidas imperfeições humanas, o seu nome tornar-se-ia um sinónimo de perseverança e coragem no combate pela dignidade humana e na recusa da violência como meio para a alcançar.
A popularidade de Schweitzer, inversamente, acabaria por se desvanecer depois da sua morte, em 1965, em resultado de uma crítica moderna que viu na sua vida um exemplo do paternalismo do homem branco em relação aos africanos e um obstáculo à sua auto-determinação.
Mandela, por seu lado, começa a tornar-se uma presença constante no panorama mediático em 1980, com a campanha internacional “Free Mandela”, como símbolo da luta contra o apartheid e, após a sua libertação, a negociação do fim do apartheid, da instauração da democracia e da transferência de poder para as mãos da maioria negra transformam-no sem hesitações no homem mais admirado do planeta. Poucos imaginavam que a África do Sul poderia desatar o nó górdio do apartheid sem um banho de sangue e num espaço de tempo tão curto. Mandela consegue-o, substituindo a vingança pela verdade e reconciliação e pondo em prática uma política literalmente desarmante.
O que é espantoso num trio como Gandhi, King e Mandela, que são talvez os três homens cuja vida é objecto de maior admiração no mundo moderno, é que se trata de três políticos.
Ninguém adivinharia, quando se vê o respeito, o fervor e a emoção com que estes três homens são olhados, que os políticos sejam considerados, em Portugal e em tantos outros países do mundo, um exemplo de corrupção, de falsidade, de falta de princípios, de deslealdade, de subserviência perante os fortes, de indiferença.
Poder-se-ia argumentar com a diferença entre os políticos de “antes” e os de “hoje”, mas Mandela, que abandonou a presidência em 1999 e continuou uma actividade pública depois disso, é claramente um homem do nosso tempo.
O que este trio nos mostra é a política no seu melhor. A política como ela deve ser e como ela pode ser. A política como instrumento de libertação, de progresso, de paz e de fraternidade. Não a política da subserviência ou do falso consenso. Mas a política do combate sem tréguas contra a iniquidade, da inflexibilidade na luta pela dignidade. É admirável que Mandela, que dirigiu a luta armada contra o apartheid, tenha recusado o ódio como móbil da sua acção política e tenha convencido todo um país a fazê-lo. Mas Mandela nunca abdicou do essencial: o fim do apartheid e a democracia. É por isso que o admiramos: pela sua firmeza no essencial e pela sua eficácia, por não aceitar a indignidade nem na forma como os negros eram tratados nem na forma como poderiam ter tratado os brancos.
O que a admiração das pessoas evidencia é que o melhor da política continua a ser a nossa maior aspiração e o mais nobre dos objectivos a que os homens se podem dedicar. Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.
Em Portugal, particularmente, já tínhamos esquecido que a política pode ser exaltante. Isso é outra coisa que podemos agradecer a Mandela.
Não precisamos de menos política. Precisamos apenas de outros políticos.
Outra coisa curiosa no nosso trio é que dois destes homens (Gandhi e Mandela) eram advogados - uma profissão quase com tão má reputação como a dos políticos. Como era advogado Aristides de Sousa Mendes, que é hoje homenageado pela Ordem dos Advogados.
2. Há, no consenso que pareceu existir nos últimos dias sobre o legado de Mandela, uma esperança. Não falo do consenso hipócrita que pretende reescrever a história e colher louros indevidos aproveitando a morte de um grande homem. Mas falo daqueles para quem, com sinceridade, o legado de Mandela é admirável, desde a sua decisão de abraçar a luta armada ao seu abandono da violência. Há, em todos os gestos de Mandela, um núcleo de crenças que podem ser um ponto de entendimento entre um grande número de pessoas. Constituem o que podemos chamar a decência. A crença em direitos iguais para todos os homens e mulheres. Governar para servir todo o povo. O direito de todos a viver e a trabalhar com dignidade.
Também nós esperamos que um dia, em breve, de surpresa, como o fim do apartheid, a política possa deixar de nos repugnar e possa escolher a decência e começar a servir os cidadãos. (jvmalheiros@gmail.com)
sexta-feira, dezembro 06, 2013
Na morte de Mandela
Publicado como post no Facebook, 16 Dezembro 2013
Há milhões de lugares merecidos no panteão da Humanidade. Acredito que são mesmo milhões. Muitos são anónimos e o seu nome nunca foi celebrado, mas são milhões. Milhões que merecem a nossa admiração e a nossa memória, que iluminaram as vidas de muitos outros, com graça, com generosidade, com abnegação, com ideias, com um sorriso, com invenção, com beleza, com um sonho de paz e justiça. Há pessoas comuns e pessoas famosas, há artistas e pensadores, há sábios e mártires, há heróis e santos neste panteão, que é o coração da Humanidade.
Mas há alguns a quem não podemos deixar de reservar um lugar especial neste panteão, e entre esses estão Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela, heróis e santos, homens de acção e de paz, que transformaram o mundo num sítio melhor porque não só mudaram o seu tempo como nos deram a esperança. Mandela deixou-nos mais ricos porque nos permitiu acreditar na paz quando só a guerra parecia uma solução, porque nos permitiu acreditar na reconciliação quando só a vingança parecia justa.
Não posso deixar de recordar o poema de Manuel Bandeira, com Irene a pedir licença a S. Pedro para entrar no céu e a resposta de S. Pedro, bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Mandela também não.
Há milhões de lugares merecidos no panteão da Humanidade. Acredito que são mesmo milhões. Muitos são anónimos e o seu nome nunca foi celebrado, mas são milhões. Milhões que merecem a nossa admiração e a nossa memória, que iluminaram as vidas de muitos outros, com graça, com generosidade, com abnegação, com ideias, com um sorriso, com invenção, com beleza, com um sonho de paz e justiça. Há pessoas comuns e pessoas famosas, há artistas e pensadores, há sábios e mártires, há heróis e santos neste panteão, que é o coração da Humanidade.
Mas há alguns a quem não podemos deixar de reservar um lugar especial neste panteão, e entre esses estão Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela, heróis e santos, homens de acção e de paz, que transformaram o mundo num sítio melhor porque não só mudaram o seu tempo como nos deram a esperança. Mandela deixou-nos mais ricos porque nos permitiu acreditar na paz quando só a guerra parecia uma solução, porque nos permitiu acreditar na reconciliação quando só a vingança parecia justa.
Não posso deixar de recordar o poema de Manuel Bandeira, com Irene a pedir licença a S. Pedro para entrar no céu e a resposta de S. Pedro, bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Mandela também não.
terça-feira, dezembro 03, 2013
O governo não merece a nossa delicadeza
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Dezembro de 2013
Crónica 45/2013
Texto publicado no jornal Público a 3 de Dezembro de 2013
Crónica 45/2013
Um aplauso a um membro do Governo é um gesto político. E este Governo não merece nem o aplauso de circunstância.
Na antiga Roma, para ser imperador era preciso ser aclamado. Certamente pelo exército, porque os imperadores eram impostos e mantidos pela espada, no melhor dos casos também pelo Senado, mas especialmente pelo povo. Os aplausos de que o imperador era objecto no teatro ou nas arenas mediam não apenas a sua popularidade mas também a sua legitimidade, o nível de aceitação da sua autoridade pelo povo. Os teatros serviam tanto para medir e reforçar essa legitimidade como para o divertimento da cidade. E durante séculos, nas mais diversas regiões do globo, os reis foram ungidos por Deus nas catedrais mas tinham de ser aclamados pelo povo nas ruas para poderem ostentar as suas coroas com merecimento. Um rei não aclamado era um intruso, um impostor, um monarca à espera de ser deposto.
Hoje, a escolha e a legitimidade dos dirigentes políticos é feita e conferida de outras formas, graças aos processos eleitorais que a democracia instituiu, mas nenhum político prescinde de avaliar a sua popularidade através de sondagens e da sua imagem nos media e existem limites aquém dos quais qualquer dirigente sabe que o seu poder periclita porque a sua legitimidade se perde.
O Governo actual possui uma legitimidade formal que lhe advém do apoio de uma maioria parlamentar e da confiança do Presidente da República. Possui, por outro lado, uma ilegitimidade substantiva que advém do facto de ter sido escolhido pelos eleitores com base em mentiras eleitorais e de governar contra a Constituição e contra o povo e ao serviço de poderes estranhos ao país, em flagrante traição do juramento que os seus elementos fizeram e da mais elementar noção de patriotismo. Mas, curiosamente, apesar de ser atacado na arena política e desprezado pela maioria dos comentadores, o governo continua a ser tratado pela sociedade em geral, nos raros eventos públicos onde os ministros e secretários de Estado se aventuram, como se se tratasse de pessoas civilizadas e de governantes com um mínimo de decência. Em particular, não lhes atiram ovos podres nem tomates maduros, quando tudo na sua acção o justificaria, para não referir o arremesso de objectos mais contundentes, que pertencem a outro domínio.
Um dos reflexos desse tratamento normal, com que o governo é generosamente brindado, é o facto de os seus elementos serem em geral aplaudidos no final das suas intervenções públicas, digam as sandices que disserem e anunciem os atentados aos cidadãos que anunciarem.
É evidente que, com a excepção de plateias do PSD ou de grandes empresários rentistas, esses aplausos são o que se chama aplausos “de circunstância”, dados e julgados devidos por uma questão de mera cortesia, como os que se oferecem aos oradores para recompensar o facto de terem tido o trabalho de subir ao palco mesmo quando o que dizem é imbecil ou banal. No entanto, quando se trata de declarações políticas, como as que os nossos governantes fazem, os aplausos que se oferecem não podem ser julgados apenas de circunstância e contêm um carga política que os aplaudentes por vezes não se dão conta. Por hábito, por conveniência ou por ingenuidade, os governantes pensam que os aplausos que ouvem, por escassos que sejam, avalizam as suas palavras e as suas políticas. E alguns dos assistentes podem pensar a mesma coisa.
A questão é que o aplauso que se faz a um político representa sempre alguma adesão ao que é dito ou a quem o diz. Não é uma questão de cortesia. E não pode ser oferecido de forma irreflectida.
É fundamental passar a demonstrar ao governo em geral e a cada um dos seus membros em particular que as suas políticas são rejeitadas por todos e a maneira mais simples de o fazer é retirar-lhes o aplauso que os governantes têm por adquirido. Hoje, quando são tão escassas as ferramentas de que o cidadão dispõe para agir politicamente, sequestrado o regime e o Estado por partidos dispostos a não deixar da democracia pedra sobre pedra, é fundamental que cada um de nós se apodere de todas as que restam. E uma delas é fazer-se ouvir pelo silêncio.
Rimbaud escreve num poema que por delicadeza perdeu a vida. Seria infeliz que os portugueses, pela mesma delicadeza, sacrificassem o uso de uma das últimas formas de protestar que lhes resta e preferissem deixar a gente que ocupa o poder roubar o futuro dos seus filhos.
Não existe cortesia que justifique pactuar com a barbárie. Não existe etiqueta que se sobreponha ao exercício da mais básica forma de liberdade de expressão que consiste em não aplaudir. Não é o último direito que nos resta mas quase. O governo age como se tivesse sido eleito ditador por quatro anos. Mas a cidadania não pode ser posta fora da lei durante quatro anos. O mínimo dos mínimos que podemos fazer é garantir que nenhum aplauso “de circunstância” saído das nossas mãos irá confortar o governo na sua certeza de impunidade. (jvmalheiros@gmail.com)
quinta-feira, novembro 28, 2013
A Web é demasiado importante para estar na mão do mercado
Por José Vítor Malheiros
Julho 2013
Particularmente marcantes nas profundas mudanças que a evolução da Web e do seu uso imprimiram na nossa vida nos últimos 20 anos, e que a entrada “Web” de Hermínio Martins e José Luís Garcia abordam [ver abaixo], são o carácter cada vez mais público da nossa vida privada e, paralelamente, o carácter cada vez mais privado dos espaços públicos onde se exerce e se manifesta a nossa cidadania.
É verdade que “público” e “privado” não se referem aqui rigorosamente à mesma dimensão, como as palavras poderiam sugerir.
Quando falamos do carácter cada vez mais público da nossa vida privada referimo-nos à sua exposição e publicidade - activa e assumida ou pelo menos consentida, ainda que talvez não informadamente consentida - e à desintegração ou reconfiguração de uma certa ideia de esfera privada e de esfera íntima que é hoje subvalorizada.
Por sua vez, quando falamos do carácter cada vez mais privado dos espaços públicos que ocupamos e usamos referimo-nos à sua propriedade. De facto, os “espaços públicos” virtuais representados pelas redes sociais como o Facebook, o Twitter ou o YouTube são serviços de empresas privadas, que definem as suas próprias regras, que se apropriam dos conteúdos que os seus utilizadores publicam nas suas páginas, que podem aplicar sanções como a suspensão ou a expulsão de utilizadores individuais ou de grupos de utilizadores e que podem mesmo cessar a sua actividade de um dia para o outro devido a uma decisão que seria, no âmbito empresarial, legal e legítima.
Porém, se esta antinomia público-privado não é, na acepção em que usamos as duas palavras, perfeita, ambos os fenómenos reflectem faces de uma mesma alteração que a Web promove: uma alienação de algo que era uma prerrogativa minha e uma propriedade minha (de mim como indivíduo ou da sociedade a que pertenço) em favor de algo que nem sou eu nem a sociedade onde vivo. Há aqui uma perda, palpável, mas difícil de quantificar, tanto mais quanto ela é voluntária (no caso da publicidade da vida privada), quanto o risco é apenas potencial (no caso da propriedade privada das nossas discussões públicas) e quanto ela tem lugar como contrapartida de uma acção que confere uma real sensação de autonomia e influência - se não um real poder. Esta perda de recolhimento, de reflexão, de introspecção, esta dessensibilização em relação à exibição da intimidade, esta renúncia a um tempo só meu, a um pensamento só meu, desvalorizará inevitavelmente o que é único e pessoal e intransmissível ou poderá estar na origem de uma nova proximidade e compreensão entre as pessoas, de uma nova transmissibilidade? Tornar-nos-emos mais humanos ou mais espectadores por causa disso?
E o estatuto privado dos novos espaços públicos saldar-se-á pela construção de um espaço virtual verdadeiramente comunitário, um commons da web (ar, água, comida, terra... Internet?), ou pela sua evolução para condomínios fechados, espaços de exclusão? Vamos nacionalizar ou privatizar as redes sociais?
As relações de poder no tabuleiro da Web estão ainda em grande turbilhão, mas o que é evidente desde já é que a Web se tornou demasiado central como campo de exercício de cidadania para ser controlada pelas regras do mercado - ainda que isso não queira dizer que tal coisa não possa acontecer. As regras que temos de fazer vingar nesta arena são as regras da democracia e as dos direitos humanos. O que significa, no mínimo, que há um commons que é preciso inventar na web e defender e que vai muito para além da defesa da neutralidade da infraestrutura da web. Se a Web não for democrática, nada o será. E não, ninguém disse que ia ser fácil.
José Vítor Malheiros
Julho 2013
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É verdade que “público” e “privado” não se referem aqui rigorosamente à mesma dimensão, como as palavras poderiam sugerir.
Quando falamos do carácter cada vez mais público da nossa vida privada referimo-nos à sua exposição e publicidade - activa e assumida ou pelo menos consentida, ainda que talvez não informadamente consentida - e à desintegração ou reconfiguração de uma certa ideia de esfera privada e de esfera íntima que é hoje subvalorizada.
Por sua vez, quando falamos do carácter cada vez mais privado dos espaços públicos que ocupamos e usamos referimo-nos à sua propriedade. De facto, os “espaços públicos” virtuais representados pelas redes sociais como o Facebook, o Twitter ou o YouTube são serviços de empresas privadas, que definem as suas próprias regras, que se apropriam dos conteúdos que os seus utilizadores publicam nas suas páginas, que podem aplicar sanções como a suspensão ou a expulsão de utilizadores individuais ou de grupos de utilizadores e que podem mesmo cessar a sua actividade de um dia para o outro devido a uma decisão que seria, no âmbito empresarial, legal e legítima.
Porém, se esta antinomia público-privado não é, na acepção em que usamos as duas palavras, perfeita, ambos os fenómenos reflectem faces de uma mesma alteração que a Web promove: uma alienação de algo que era uma prerrogativa minha e uma propriedade minha (de mim como indivíduo ou da sociedade a que pertenço) em favor de algo que nem sou eu nem a sociedade onde vivo. Há aqui uma perda, palpável, mas difícil de quantificar, tanto mais quanto ela é voluntária (no caso da publicidade da vida privada), quanto o risco é apenas potencial (no caso da propriedade privada das nossas discussões públicas) e quanto ela tem lugar como contrapartida de uma acção que confere uma real sensação de autonomia e influência - se não um real poder. Esta perda de recolhimento, de reflexão, de introspecção, esta dessensibilização em relação à exibição da intimidade, esta renúncia a um tempo só meu, a um pensamento só meu, desvalorizará inevitavelmente o que é único e pessoal e intransmissível ou poderá estar na origem de uma nova proximidade e compreensão entre as pessoas, de uma nova transmissibilidade? Tornar-nos-emos mais humanos ou mais espectadores por causa disso?
E o estatuto privado dos novos espaços públicos saldar-se-á pela construção de um espaço virtual verdadeiramente comunitário, um commons da web (ar, água, comida, terra... Internet?), ou pela sua evolução para condomínios fechados, espaços de exclusão? Vamos nacionalizar ou privatizar as redes sociais?
As relações de poder no tabuleiro da Web estão ainda em grande turbilhão, mas o que é evidente desde já é que a Web se tornou demasiado central como campo de exercício de cidadania para ser controlada pelas regras do mercado - ainda que isso não queira dizer que tal coisa não possa acontecer. As regras que temos de fazer vingar nesta arena são as regras da democracia e as dos direitos humanos. O que significa, no mínimo, que há um commons que é preciso inventar na web e defender e que vai muito para além da defesa da neutralidade da infraestrutura da web. Se a Web não for democrática, nada o será. E não, ninguém disse que ia ser fácil.
José Vítor Malheiros
Julho 2013
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“Portugal Social de A a Z” - Edição do Instituto de Ciências Sociais (ICS) 2013Coordenação de José Luís Cardoso, Pedro Magalhães e José Machado Pais
WEB
por Hermínio Martins e José Luís Garcia
A Web, sensivelmente como funciona hoje, data da década de 1990. Trata-se pois de um acontecimento recente, embora tão incorporado no quotidiano que se “naturalizou” tanto ou mais como qualquer outro fenómeno cultural, qualquer “tecno-facto” da vida pré-digital. Para além dos computadores pessoais habituais, hoje temos que ter em conta a difusão dos dispositivos de comunicação móveis, smartphones e tablets, especialmente os com acesso à Internet de banda larga. Os smartphones têm estado a adquirir variadíssimas funcionalidades, tornando-se um paradigma do dispositivo digital maxi-funcional. Acrescem ainda as dezenas de milhares de aplicações (apps) já desenvolvidas com outras a aparecer constantemente, para uso local ou trans-local, para sectores restritos da população ou para um grande universo de utilizadores, em rápida expansão. A velocidade de difusão dos telemóveis foi considerável, mas a difusão internacional dos smartphones tem sido avaliada por muitos comentadores como a mais rápida das tecnologias de consumidor em toda a história da civilização industrial, decerto da história das telecomunicações. De qualquer modo, o mundo, e a vida quotidiana, tornaram-se inimagináveis e mesmo impossíveis, sem esta aparelhagem, a sua presença e disponibilização contínua.
Em 2000 tinham acesso à Internet de banda larga cerca de 50 milhões de pessoas. Em 2012 contavam-se 2 mil milhões de pessoas (mais de um terço da população mundial). Em alguns anos, segundo extrapolações correntes, poderão contar-se 5 mil milhões de pessoas, o que tornaria a Internet a mais planetária e planetarizante das tecnologias de informação e comunicação na história. Mesmo assim, as preocupações com a “fractura” ou “fosso digital”, ou melhor os fossos digitais, têm sido permanentes nas últimas décadas. O exemplo mais óbvio desta assimetria, inicialmente, foi a disparidade entre os países avançados e os outros, em especial no caso dos países africanos, onde a infraestrutura de telecomunicações estava bem menos articulada, embora os telemóveis se tenham difundido extremamente nalguns países, ainda que sem acesso à Internet. De qualquer modo, esta distância está a diminuir constantemente. Alguns países saltaram para além da época dos telefones fixos para a era dos telemóveis (na Índia o número de assinantes de telemóveis é quase o mesmo que o dos habitantes do país), e agora para a era dos smartphones e dos tablets sem fios, embora com acesso limitado à Internet de banda larga, sem passar pela fase de expansão de telemóveis que nos países ocidentais precedeu a erupção dos smartphones.
O fosso digital dentro dos países, entre classes, grupos etárias ou gerações, por exemplo, deve ser registado: mesmo nos EUA, vinte milhões de pessoas não estão conectadas à Internet, por razões económicas. A disparidade mais comentada dentro dos países “avançados” tem sido entre as gerações, e especialmente entre os chamados “nativos digitais” e os que tiveram de se adaptar às novas tecnologias com um certo atraso ou capacidades limitadas. No entanto, em vários países tem-se verificado uma disposição cada vez maior para aceder à Internet da parte da população mais idosa, não só para informações de todo o tipo, para contactos pessoais e para entretenimento. A população mais jovem, dezenas ou mesmo centenas de milhões de adolescentes em todo o mundo, consome parte das suas energias psíquicas envolvidos em jogos online. Fora dos grupos mais jovens, o nível de instrução marca significativamente as disparidades na utilização regular da Internet. Em Portugal encontramos uma diferença de 58% entre os níveis de maior e menor instrução, por comparação à média da União Europeia a 27, onde existe uma distância de 46 pontos percentuais (dados Eurostat referentes a 2012).
O homo connexus, a pessoa que vive online, que se liga aos outros instantaneamente por dispositivos digitais, qualquer que seja a distância, paradoxalmente, é também cada vez mais um homo urbanus, concentrado em gigantescos centros urbanos. Parece que, mesmo com a grande “densidade dinâmica” de ligações virtuais muito extensas e de todos os tipos, cognitivas, afectivas, lúdicas, profissionais, e a alegada “morte da distância” precisamos ainda de viver em grandes cidades, ou numa série delas. Sujeitamo-nos à condição de estarmos “sós juntos” (o “alone together” de Sherry Turkle), vivendo “solidões interactivas” (no conceito de Dominique Wolton), assim como não-interactivas. Em Portugal, a concentração na costa marítima urbanizada parece uma tendência irresistível. Os tele-modos em rede de comunicação (emails, IMs, Web, redes sociais informáticas variadas, gerais ou especializadas), de cooperação, trabalho, negociação, coordenação, discussão, colaboração intelectual, comunicação e pesquisa científica, convívio, sexualidade, evangelização, comércio, mobilização humanitária ou política, etc., virtuais, são de vasta e crescente utilização. No nosso país, 45% da população publicava mensagens em redes sociais online ou enviava mensagens instantâneas, e 33% carregava conteúdo criado pelos próprios (dados Eurostat referentes a 2012).
Foi já proclamado o advento da “ciência-em-rede” (Michael Nielsen), da “economia em rede”, da “sociedade-em-rede” (Manuel Castells), da “sociedade de indivíduos-em-rede” (Barry Wellman), da “inteligência colectiva” dos internautas (Pierre Lévy), da “sabedoria das multidões” (James Surowiecki). No limite, surge a visão da Internet, com os seus milhares de milhões de internautas, como uma “mente-colmeia” (hive mind) planetária emergente, uma espécie de super-mente gerada pelas sinergias dos internautas: uma imagem inspirada no conceito de “noosfera” de Teilhard de Chardin. No entanto, os contactos pessoais, presenciais, em lugares físicos, como em reuniões, debates, colóquios, congressos (muitos deles com milhares de pessoas vindo de vários países e continentes), conferências, cimeiras, nacionais, internacionais, globais, multiplicam-se como nunca, especialmente em grandes centros urbanos (há excepções como Davos, e outras desse tipo, em que se encontram as super-elites económicas, financeiras, políticas, globais em locais afastados das metrópoles). É verdade que mesmo nesses encontros da vida real passa-se uma boa parte do tempo a ler e enviar mensagens electrónicas ou conversar com terceiros pelo telemóvel, quando não se está a olhar para ecrãs electrónicos ou para ecrãs de computadores, quase apagando a diferença entre seminários e webinars, entre conferências e tele-conferências. Muitos empresários e académicos passam a vida online e a viajar de avião, situação resumida na frase “net and jet”.
O Sistema Internet de hoje não foi desenhado, planeado ou instituído por ninguém em particular: constituiu-se gradualmente pelas interacções e ajustes mútuos de inúmeros agentes, inventores e organizações, como uma verdadeira “ordem espontânea” no sentido dado pelo teórico da economia Friedrich Hayek. Mesmo se este tenha pensado essencialmente em formações sócio-culturais como as linguagens naturais, o dinheiro como instituição, as tradições, os mercados e a “Common Law” da Inglaterra como emergentes não desenhados e planeados, a Internet hoje representa um excelente exemplo do que Hayek tinha em mente. Isto é especialmente verdade se nos lembrarmos que salientou que aquelas formações emergentes complexas não podem ser compreendidas de forma consciente na sua totalidade pelos participantes ou por terceiros, dependendo de conhecimento tácito, muito disperso, não codificável ou redutível a algoritmos (o que também é válido para os sistemas computacionais em geral). Hayek não se cansava de nos prevenir da vulnerabilidade de formações sociais e culturais não desenhadas, com os seus preciosos bens civilizacionais, pois podem ser corroídas ou mesmo rapidamente destruídas por factores políticos ou ideológicos, pela hybris cientificista ou tecnocrática, após terem sido obras de séculos.
A Internet de hoje constituiu-se espontaneamente, mas hoje representa o sistema tecnológico mais complexo do mundo, pelo menos à escala planetária, numa era de sistemas tecnológicos ou tecnocientíficos (como o Large Hadron Collider) muito complexos, e de todos os tempos. Estes sistemas tecnológicos são vulneráveis, especialmente os de tight coupling entre os seu subsistemas. Isto não só por impactos exteriores (desastres naturais, ataques bélicos, terrorismo), mas também por factores endógenos, inerentes, variados, que explicam que os acidentes ocorram “normalmente” (na acepção de Charles Perrow), quaisquer que sejam os cuidados contínuos e os mecanismos de segurança instalados. A Internet adquiriu uma grande resiliência, mas falhas e colapsos parciais e episódicos podem ocorrer, possivelmente devido a ciber-ataques intensos como ocorreu recentemente na Holanda. Apesar daquela capacidade de resposta, existe uma ciber-insegurança permanente dentro desse quadro. As investidas de piratas informáticos, vírus e outras formas de malware, a organizações económicas e todos os sistemas tecnológicos, tecno-económicos, industriais, militares, governamentais, controlados a algum nível por programas de software com alguma ligação à Internet, ocorrem constantemente. Esses ataques informáticos ou ciber-ataques podem partir de agências estatais, militares ou civis, criminosos, conjuntos de pessoas partilhando convicções ideológicas (o caso dos wikileaks ou offshore leaks), ou mesmo de pessoas isoladas sem qualquer objectivo definido, para além da satisfação pessoal de conseguir aceder ao proibido e vedado por códigos de segurança ultra-sofisticados, como os do Pentágono ou da Marinha dos EUA. Todos os sistemas conectados à Internet são vulneráveis a este tipo de agressões. O volume ou importância desses ataques, que têm lugar entre certos Estados de ciber-espionagem económica e militar em grande escala mas também de destruição ou de incapacitação de complexos tecnológicos via malware (como no caso do Stuxnet e o nuclear no Irão), é tal que se poderia dizer que de certo modo já vivemos na era de guerra fria cibernética. O ciberespaço adicionou-se à terra, o ar, os mares, e o espaço exterior dos satélites, como um quarto domínio de combate militar e de luta política envolvendo Estados e actores não-estatais.
Segundo a regra da “neutralidade da rede”, a Internet seria acessível a todos, sem discriminação de conteúdos, com excepções que se teriam de justificar caso a caso. No entanto, os filtros sucedem-se, em regimes democráticos, mas sobretudo em autoritários. Caso paradigmático é a “Grande Muralha Digital da China”, que impede o acesso a diversos sítios Web e conteúdos aos seus nacionais. Há que considerar também que um pequeno número de mega-plataformas gozam da preferência de centenas de milhões de internautas, como Google, Facebook, Twitter, reproduzindo domínios tecnológicos anteriores como os da Microsoft e da Apple, apesar do contra-movimento do software livre. Como explicar esta concentração, além do poder económico e de lóbis políticos? Um factor crucial foram os “efeitos de rede”. Segundo a “lei de Metcalfe”, as vantagens de empresas das indústrias digitais crescem exponencialmente com o número de utilizadores, podendo resultar assim a longo prazo num pequeno número de empresas gigantescas.
Como sugere Tim Wu, a história das indústrias digitais recentes recapitula o padrão histórico da economia das telecomunicações desde o século XIX, mas com a especificidade do “poder de redes” associado a algumas inovações de Silicon Valley nas últimas décadas. Sem dúvida que essas empresas podem abusar do seu poder, que querem ampliar com meios por vezes ilegais. A Microsoft, em particular, tem sido objecto de processos nos tribunais de vários países e na União Europeia devido a leis anti-monopolísticas. O “poder de redes” favorece a concentração neste domínio, como outras leis de potência (das quais a lei de Metcalfe é um exemplo), segundo as quais a distribuição de rendimento, riqueza, fama, prestígio, citações, status das universidades, o tamanho demográfico das cidades, etc., tende a aproximar-se de um padrão de desigualdade nos moldes da clássica “lei de Pareto”, 20/80. De acordo com esta lei, existe uma tendência forte para que a longo prazo se efectue uma convergência para um estado de coisas em que, mais ou menos, 20 % de uma população nacional possua 80% da riqueza ou desfrute de 80% do rendimento nacional (as proporções exactas podem variar consideravelmente).
Desde a década de 1970 as economias ocidentais sofreram um processo de concentração de rendimento, contrariando a tendência histórica de quase cem anos para maior igualdade da sua distribuição, que alguns cientistas sociais caracterizaram como uma lei de evolução das sociedades industriais. As leis de potência da economia das redes, inclusive do sector das telecomunicações digitais, ou mesmo de todos os domínios sócio-económicos afectados pela Revolução Digital, seguem esta trajectória: a “economia do imaterial”, a “economia de redes”, em que programas de software contam decisivamente em todos os domínios da vida tecno-económica e da vida social, está sujeita a “efeitos de rede” sem fim. As novas tecnologias da informação e a gestão do conhecimento pelo mercado como uma matéria prima substancial das economias estão a ser os meios através dos quais se está a operar a transformação do capitalismo no século XXI num modelo de exploração do máximo de possibilidades produtivas digitais. O novo tipo de capitalismo tem na dimensão informativa, tecnocientífica e cognitiva o seu grande capital imaterial. Um novo mundo, de patentes, de propriedade intelectual, aplicações, recursos humanos, comunicação e publicidade, plasma a nova dimensão do capitalismo. Como observa um dos vários teóricos da economia digital, Ramón Zallo (2011), se o ambiente digital congrega oportunidades inegáveis, relativas à distribuição da cultura, os riscos e problemas não são menores. A concentração do capital traduz-se em perda substantiva do pluralismo quanto à criação e distribuição culturais. Agudizam-se as limitações à diversidade cultural, a que se articula a clivagem crescente entre uma cultura transnacional de matriz anglo-saxónica e as culturas locais, remetidas cada vez mais para circuitos de nicho. A desterritorialização dos serviços intelectuais suscita também problemas quanto ao reconhecimento e remuneração da produção informativa e cultural, de que são expressões a usurpação e a imitação. A sociedade de informação global tem representado fundamentalmente a integração da informação e do conhecimento na esfera e dinâmica do mercado mundial.
Que modelos de relações sociais, que formas de vida, que modos de sociabilidade e de associação serão particularmente favorecidos a longo prazo pela saturação das nossas economias e sociedades pelos media digitais, e pela Internet, como medium dos media digitais? Uma tese abrangente elaborada por sociólogos recentemente pode ser resumida como a do “individualismo de redes”, que floresce neste mundo de digitalização e reticularização, com a Revolução Tripla. No essencial, afirma que há uma certa perda de relação com os grupos sociais tradicionais, para participarmos, anonimamente ou com identidades múltiplas, em redes sociais de vários tipos, que se multiplicam em termos de diferentes interesses e preocupações (por exemplo, de pacientes, de doentes de uma ou outra doença específica, de aficionados de um desporto ou outro, de uma actividade de lazer ou outra, de adolescentes obcecados com o suicídio…). Mesmo os nossos contactos, irregulares, frequentes ou mesmo diários, com a família, a escola, os amigos, colegas, as comunidades locais, fazem-se em parte através de redes sociais digitais ou pelo menos on-line (ainda mais no caso de participarmos em escolas virtuais e associações virtuais). O mesmo ocorre com a concertação de acções no mundo físico, cívicas ou políticas, desde as flash mobs até aos movimentos da Primavera Árabe e outros análogos.
Com as tecnologias digitais, todos podem procurar informação actualizada navegando na Internet, desafiando os peritos (um exemplo da muito apregoada “desintermediação”), mas faltam ainda mecanismos relativamente adequados para assegurar a fiabilidade do que se encontra ou de corrigir erros e falsidades (de informações e de fotos). Estamos longe de nos aproximarmos de um espaço público em que a racionalidade comunicativa proposta por Habermas possa avançar com relativa facilidade. O “imperativo de partilha on-line”, especialmente potente com respeito a música, fotos e vídeo, parece ser um dos traços de maior importância na sociedade de redes. Todavia, a partilha on-line é também de rumores e notícias falsas, de parcialidades, e inclusivamente de ódios. Muitas vezes o homo connexus surge como homo credulus, intoxicando-se com teorias conspirativas ou negacionistas de toda a espécie, “virais”. Todos podem ser autores, editores, broadcasters, propagandistas ou agitadores através das redes sociais digitais ou blogues, mas as leis de potência funcionam aqui também. A “electrografia”, a escrita em processador de texto ou em dispositivos móveis (mensagens de texto em especial), tem evidentemente alterado ortografia, sintaxe e léxico entre muitos cibernautas jovens devido em parte aos imperativos de concisão em mensagens rápidas: degradação cognitiva segundo alguns, criatividade segundo outros (a epistolografia da intimidade on-line tem sido comentada dos mesmos modos). Seja como for, a electrografia representa hoje uma força na transformação da linguagem e das línguas nacionais.
Se existe um individualismo de redes, funcionam também colectivos em redes digitais por toda a parte: as organizações económicas, os partidos políticos, as organizações estatais, funcionam também cada vez mais em rede. É pois adequado falar de uma economia de redes, de sistemas políticos em rede, de Estados em vias de reticularização, enfim, de “colectivos de redes”, e até de “colectivismo de redes” (Jaron Lanier chegou a falar de “Maoismo digital”). A tendência para o individualismo de redes representa uma aposta em que as facilidades de florescimento da vida individual num mundo reticular irão prevalecer sobre as outras formas de sociação transindividual em redes que poderão redefinir a escolha livre, a criatividade, a mobilidade cultural. Esta redefinição terá sentidos menos conformes a um individualismo moral e político consentâneo com a autêntica continuação do individualismo ocidental, com o seu legado cristão e kantiano, que prezava a vida privada (a eliminação da privacidade decorre da vida digital), a responsabilidade moral, o sentido crítico, a independência perante a doxa, o distanciamento da mundanidade.
Além disso, não há e-mail, mensagem de texto, mensagem instantânea, que não deixe rasto: todos os cibernautas deixam a sua “pegada digital”, a sua “sombra digital”. A vida on-line é praticamente toda capturável por Estados, e muita dela a acessível a várias agências ou piratas informáticos. A nossa vida on-line é arquivada por multinacionais e outras empresas, que procuram satisfazer-nos pelo conhecimento das “preferências” registadas pelos nossos actos digitais (todos os cliques), desde a mais tenra idade até à morte, mas que tornam os internautas em clientes a cada segundo do nosso quotidiano. A “aldeia global” manifesta-se hoje como um “centro comercial global”, a mercantilização universaliza-se pari passu com a digitalização e reticularização das nossas vidas individuais, profissionais, colectivas, organizacionais. O “individualismo de redes” é acompanhado pela economia de redes, o sistema financeiro de redes, o sistema político de redes, o mercado mundial de redes. O individualismo de redes também se pode caracterizar como “individualismo de redes de mercado” (com os cibernautas observados e solicitados permanentemente por empresas) ou como um individualismo de redes monitorizadas por Estados. E ainda não se vê como o individualismo de redes poderá superar a força das identidades primordiais, do sentido de pertença, da necessidade de pertença, a grupos e comunidades como etnias, comunidades linguísticas, nações, comunidades religiosas transnacionais (que recorrem também às tecnologias digitais com uma certa eficácia).
A Internet, a Web e as tecnologias digitais de informação e comunicação afectam praticamente todos os domínios sociais, económicos, financeiros, políticos, culturais, artísticos, científicos, religiosos da nossa civilização, bem como os nossos cérebros e mentes. Evidentemente, nestas páginas só nos foi possível aflorar alguns tópicos de um vasto leque de assuntos que a Revolução Digital em curso pode sugerir.
BIBLIOGRAFIA
Castells, Manuel. (2007) A Sociedade em Rede. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Lisboa, Gulbenkian
Doueihi, Milad (2008) La grande conversion numérique Paris, Seuil
Furtado, José Afonso (2012) Uma cultura da informação para o universo digital Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos
Rainie, Lee and Barry Wellman (2012) Networked: The new social operating system. Cambridge, MIT Press.
Turkle, Sherry (2011) Alone and together – why we expect more from technology and less from each other NY, Basic Books
Wu, Tom (2010) The master switch – the rise and fall of information empires NY, Random House
Lanier, Jaron (2006) "Digital Maoism: The hazards of the new online collectivism." The Edge 183.
Zallo, Ramón (2011) Estructuras de la comunicación y de la cultura. Políticas para la era digital. Barcelona. Editorial Gedisa.
A Web, sensivelmente como funciona hoje, data da década de 1990. Trata-se pois de um acontecimento recente, embora tão incorporado no quotidiano que se “naturalizou” tanto ou mais como qualquer outro fenómeno cultural, qualquer “tecno-facto” da vida pré-digital. Para além dos computadores pessoais habituais, hoje temos que ter em conta a difusão dos dispositivos de comunicação móveis, smartphones e tablets, especialmente os com acesso à Internet de banda larga. Os smartphones têm estado a adquirir variadíssimas funcionalidades, tornando-se um paradigma do dispositivo digital maxi-funcional. Acrescem ainda as dezenas de milhares de aplicações (apps) já desenvolvidas com outras a aparecer constantemente, para uso local ou trans-local, para sectores restritos da população ou para um grande universo de utilizadores, em rápida expansão. A velocidade de difusão dos telemóveis foi considerável, mas a difusão internacional dos smartphones tem sido avaliada por muitos comentadores como a mais rápida das tecnologias de consumidor em toda a história da civilização industrial, decerto da história das telecomunicações. De qualquer modo, o mundo, e a vida quotidiana, tornaram-se inimagináveis e mesmo impossíveis, sem esta aparelhagem, a sua presença e disponibilização contínua.
Em 2000 tinham acesso à Internet de banda larga cerca de 50 milhões de pessoas. Em 2012 contavam-se 2 mil milhões de pessoas (mais de um terço da população mundial). Em alguns anos, segundo extrapolações correntes, poderão contar-se 5 mil milhões de pessoas, o que tornaria a Internet a mais planetária e planetarizante das tecnologias de informação e comunicação na história. Mesmo assim, as preocupações com a “fractura” ou “fosso digital”, ou melhor os fossos digitais, têm sido permanentes nas últimas décadas. O exemplo mais óbvio desta assimetria, inicialmente, foi a disparidade entre os países avançados e os outros, em especial no caso dos países africanos, onde a infraestrutura de telecomunicações estava bem menos articulada, embora os telemóveis se tenham difundido extremamente nalguns países, ainda que sem acesso à Internet. De qualquer modo, esta distância está a diminuir constantemente. Alguns países saltaram para além da época dos telefones fixos para a era dos telemóveis (na Índia o número de assinantes de telemóveis é quase o mesmo que o dos habitantes do país), e agora para a era dos smartphones e dos tablets sem fios, embora com acesso limitado à Internet de banda larga, sem passar pela fase de expansão de telemóveis que nos países ocidentais precedeu a erupção dos smartphones.
O fosso digital dentro dos países, entre classes, grupos etárias ou gerações, por exemplo, deve ser registado: mesmo nos EUA, vinte milhões de pessoas não estão conectadas à Internet, por razões económicas. A disparidade mais comentada dentro dos países “avançados” tem sido entre as gerações, e especialmente entre os chamados “nativos digitais” e os que tiveram de se adaptar às novas tecnologias com um certo atraso ou capacidades limitadas. No entanto, em vários países tem-se verificado uma disposição cada vez maior para aceder à Internet da parte da população mais idosa, não só para informações de todo o tipo, para contactos pessoais e para entretenimento. A população mais jovem, dezenas ou mesmo centenas de milhões de adolescentes em todo o mundo, consome parte das suas energias psíquicas envolvidos em jogos online. Fora dos grupos mais jovens, o nível de instrução marca significativamente as disparidades na utilização regular da Internet. Em Portugal encontramos uma diferença de 58% entre os níveis de maior e menor instrução, por comparação à média da União Europeia a 27, onde existe uma distância de 46 pontos percentuais (dados Eurostat referentes a 2012).
O homo connexus, a pessoa que vive online, que se liga aos outros instantaneamente por dispositivos digitais, qualquer que seja a distância, paradoxalmente, é também cada vez mais um homo urbanus, concentrado em gigantescos centros urbanos. Parece que, mesmo com a grande “densidade dinâmica” de ligações virtuais muito extensas e de todos os tipos, cognitivas, afectivas, lúdicas, profissionais, e a alegada “morte da distância” precisamos ainda de viver em grandes cidades, ou numa série delas. Sujeitamo-nos à condição de estarmos “sós juntos” (o “alone together” de Sherry Turkle), vivendo “solidões interactivas” (no conceito de Dominique Wolton), assim como não-interactivas. Em Portugal, a concentração na costa marítima urbanizada parece uma tendência irresistível. Os tele-modos em rede de comunicação (emails, IMs, Web, redes sociais informáticas variadas, gerais ou especializadas), de cooperação, trabalho, negociação, coordenação, discussão, colaboração intelectual, comunicação e pesquisa científica, convívio, sexualidade, evangelização, comércio, mobilização humanitária ou política, etc., virtuais, são de vasta e crescente utilização. No nosso país, 45% da população publicava mensagens em redes sociais online ou enviava mensagens instantâneas, e 33% carregava conteúdo criado pelos próprios (dados Eurostat referentes a 2012).
Foi já proclamado o advento da “ciência-em-rede” (Michael Nielsen), da “economia em rede”, da “sociedade-em-rede” (Manuel Castells), da “sociedade de indivíduos-em-rede” (Barry Wellman), da “inteligência colectiva” dos internautas (Pierre Lévy), da “sabedoria das multidões” (James Surowiecki). No limite, surge a visão da Internet, com os seus milhares de milhões de internautas, como uma “mente-colmeia” (hive mind) planetária emergente, uma espécie de super-mente gerada pelas sinergias dos internautas: uma imagem inspirada no conceito de “noosfera” de Teilhard de Chardin. No entanto, os contactos pessoais, presenciais, em lugares físicos, como em reuniões, debates, colóquios, congressos (muitos deles com milhares de pessoas vindo de vários países e continentes), conferências, cimeiras, nacionais, internacionais, globais, multiplicam-se como nunca, especialmente em grandes centros urbanos (há excepções como Davos, e outras desse tipo, em que se encontram as super-elites económicas, financeiras, políticas, globais em locais afastados das metrópoles). É verdade que mesmo nesses encontros da vida real passa-se uma boa parte do tempo a ler e enviar mensagens electrónicas ou conversar com terceiros pelo telemóvel, quando não se está a olhar para ecrãs electrónicos ou para ecrãs de computadores, quase apagando a diferença entre seminários e webinars, entre conferências e tele-conferências. Muitos empresários e académicos passam a vida online e a viajar de avião, situação resumida na frase “net and jet”.
O Sistema Internet de hoje não foi desenhado, planeado ou instituído por ninguém em particular: constituiu-se gradualmente pelas interacções e ajustes mútuos de inúmeros agentes, inventores e organizações, como uma verdadeira “ordem espontânea” no sentido dado pelo teórico da economia Friedrich Hayek. Mesmo se este tenha pensado essencialmente em formações sócio-culturais como as linguagens naturais, o dinheiro como instituição, as tradições, os mercados e a “Common Law” da Inglaterra como emergentes não desenhados e planeados, a Internet hoje representa um excelente exemplo do que Hayek tinha em mente. Isto é especialmente verdade se nos lembrarmos que salientou que aquelas formações emergentes complexas não podem ser compreendidas de forma consciente na sua totalidade pelos participantes ou por terceiros, dependendo de conhecimento tácito, muito disperso, não codificável ou redutível a algoritmos (o que também é válido para os sistemas computacionais em geral). Hayek não se cansava de nos prevenir da vulnerabilidade de formações sociais e culturais não desenhadas, com os seus preciosos bens civilizacionais, pois podem ser corroídas ou mesmo rapidamente destruídas por factores políticos ou ideológicos, pela hybris cientificista ou tecnocrática, após terem sido obras de séculos.
A Internet de hoje constituiu-se espontaneamente, mas hoje representa o sistema tecnológico mais complexo do mundo, pelo menos à escala planetária, numa era de sistemas tecnológicos ou tecnocientíficos (como o Large Hadron Collider) muito complexos, e de todos os tempos. Estes sistemas tecnológicos são vulneráveis, especialmente os de tight coupling entre os seu subsistemas. Isto não só por impactos exteriores (desastres naturais, ataques bélicos, terrorismo), mas também por factores endógenos, inerentes, variados, que explicam que os acidentes ocorram “normalmente” (na acepção de Charles Perrow), quaisquer que sejam os cuidados contínuos e os mecanismos de segurança instalados. A Internet adquiriu uma grande resiliência, mas falhas e colapsos parciais e episódicos podem ocorrer, possivelmente devido a ciber-ataques intensos como ocorreu recentemente na Holanda. Apesar daquela capacidade de resposta, existe uma ciber-insegurança permanente dentro desse quadro. As investidas de piratas informáticos, vírus e outras formas de malware, a organizações económicas e todos os sistemas tecnológicos, tecno-económicos, industriais, militares, governamentais, controlados a algum nível por programas de software com alguma ligação à Internet, ocorrem constantemente. Esses ataques informáticos ou ciber-ataques podem partir de agências estatais, militares ou civis, criminosos, conjuntos de pessoas partilhando convicções ideológicas (o caso dos wikileaks ou offshore leaks), ou mesmo de pessoas isoladas sem qualquer objectivo definido, para além da satisfação pessoal de conseguir aceder ao proibido e vedado por códigos de segurança ultra-sofisticados, como os do Pentágono ou da Marinha dos EUA. Todos os sistemas conectados à Internet são vulneráveis a este tipo de agressões. O volume ou importância desses ataques, que têm lugar entre certos Estados de ciber-espionagem económica e militar em grande escala mas também de destruição ou de incapacitação de complexos tecnológicos via malware (como no caso do Stuxnet e o nuclear no Irão), é tal que se poderia dizer que de certo modo já vivemos na era de guerra fria cibernética. O ciberespaço adicionou-se à terra, o ar, os mares, e o espaço exterior dos satélites, como um quarto domínio de combate militar e de luta política envolvendo Estados e actores não-estatais.
Segundo a regra da “neutralidade da rede”, a Internet seria acessível a todos, sem discriminação de conteúdos, com excepções que se teriam de justificar caso a caso. No entanto, os filtros sucedem-se, em regimes democráticos, mas sobretudo em autoritários. Caso paradigmático é a “Grande Muralha Digital da China”, que impede o acesso a diversos sítios Web e conteúdos aos seus nacionais. Há que considerar também que um pequeno número de mega-plataformas gozam da preferência de centenas de milhões de internautas, como Google, Facebook, Twitter, reproduzindo domínios tecnológicos anteriores como os da Microsoft e da Apple, apesar do contra-movimento do software livre. Como explicar esta concentração, além do poder económico e de lóbis políticos? Um factor crucial foram os “efeitos de rede”. Segundo a “lei de Metcalfe”, as vantagens de empresas das indústrias digitais crescem exponencialmente com o número de utilizadores, podendo resultar assim a longo prazo num pequeno número de empresas gigantescas.
Como sugere Tim Wu, a história das indústrias digitais recentes recapitula o padrão histórico da economia das telecomunicações desde o século XIX, mas com a especificidade do “poder de redes” associado a algumas inovações de Silicon Valley nas últimas décadas. Sem dúvida que essas empresas podem abusar do seu poder, que querem ampliar com meios por vezes ilegais. A Microsoft, em particular, tem sido objecto de processos nos tribunais de vários países e na União Europeia devido a leis anti-monopolísticas. O “poder de redes” favorece a concentração neste domínio, como outras leis de potência (das quais a lei de Metcalfe é um exemplo), segundo as quais a distribuição de rendimento, riqueza, fama, prestígio, citações, status das universidades, o tamanho demográfico das cidades, etc., tende a aproximar-se de um padrão de desigualdade nos moldes da clássica “lei de Pareto”, 20/80. De acordo com esta lei, existe uma tendência forte para que a longo prazo se efectue uma convergência para um estado de coisas em que, mais ou menos, 20 % de uma população nacional possua 80% da riqueza ou desfrute de 80% do rendimento nacional (as proporções exactas podem variar consideravelmente).
Desde a década de 1970 as economias ocidentais sofreram um processo de concentração de rendimento, contrariando a tendência histórica de quase cem anos para maior igualdade da sua distribuição, que alguns cientistas sociais caracterizaram como uma lei de evolução das sociedades industriais. As leis de potência da economia das redes, inclusive do sector das telecomunicações digitais, ou mesmo de todos os domínios sócio-económicos afectados pela Revolução Digital, seguem esta trajectória: a “economia do imaterial”, a “economia de redes”, em que programas de software contam decisivamente em todos os domínios da vida tecno-económica e da vida social, está sujeita a “efeitos de rede” sem fim. As novas tecnologias da informação e a gestão do conhecimento pelo mercado como uma matéria prima substancial das economias estão a ser os meios através dos quais se está a operar a transformação do capitalismo no século XXI num modelo de exploração do máximo de possibilidades produtivas digitais. O novo tipo de capitalismo tem na dimensão informativa, tecnocientífica e cognitiva o seu grande capital imaterial. Um novo mundo, de patentes, de propriedade intelectual, aplicações, recursos humanos, comunicação e publicidade, plasma a nova dimensão do capitalismo. Como observa um dos vários teóricos da economia digital, Ramón Zallo (2011), se o ambiente digital congrega oportunidades inegáveis, relativas à distribuição da cultura, os riscos e problemas não são menores. A concentração do capital traduz-se em perda substantiva do pluralismo quanto à criação e distribuição culturais. Agudizam-se as limitações à diversidade cultural, a que se articula a clivagem crescente entre uma cultura transnacional de matriz anglo-saxónica e as culturas locais, remetidas cada vez mais para circuitos de nicho. A desterritorialização dos serviços intelectuais suscita também problemas quanto ao reconhecimento e remuneração da produção informativa e cultural, de que são expressões a usurpação e a imitação. A sociedade de informação global tem representado fundamentalmente a integração da informação e do conhecimento na esfera e dinâmica do mercado mundial.
Que modelos de relações sociais, que formas de vida, que modos de sociabilidade e de associação serão particularmente favorecidos a longo prazo pela saturação das nossas economias e sociedades pelos media digitais, e pela Internet, como medium dos media digitais? Uma tese abrangente elaborada por sociólogos recentemente pode ser resumida como a do “individualismo de redes”, que floresce neste mundo de digitalização e reticularização, com a Revolução Tripla. No essencial, afirma que há uma certa perda de relação com os grupos sociais tradicionais, para participarmos, anonimamente ou com identidades múltiplas, em redes sociais de vários tipos, que se multiplicam em termos de diferentes interesses e preocupações (por exemplo, de pacientes, de doentes de uma ou outra doença específica, de aficionados de um desporto ou outro, de uma actividade de lazer ou outra, de adolescentes obcecados com o suicídio…). Mesmo os nossos contactos, irregulares, frequentes ou mesmo diários, com a família, a escola, os amigos, colegas, as comunidades locais, fazem-se em parte através de redes sociais digitais ou pelo menos on-line (ainda mais no caso de participarmos em escolas virtuais e associações virtuais). O mesmo ocorre com a concertação de acções no mundo físico, cívicas ou políticas, desde as flash mobs até aos movimentos da Primavera Árabe e outros análogos.
Com as tecnologias digitais, todos podem procurar informação actualizada navegando na Internet, desafiando os peritos (um exemplo da muito apregoada “desintermediação”), mas faltam ainda mecanismos relativamente adequados para assegurar a fiabilidade do que se encontra ou de corrigir erros e falsidades (de informações e de fotos). Estamos longe de nos aproximarmos de um espaço público em que a racionalidade comunicativa proposta por Habermas possa avançar com relativa facilidade. O “imperativo de partilha on-line”, especialmente potente com respeito a música, fotos e vídeo, parece ser um dos traços de maior importância na sociedade de redes. Todavia, a partilha on-line é também de rumores e notícias falsas, de parcialidades, e inclusivamente de ódios. Muitas vezes o homo connexus surge como homo credulus, intoxicando-se com teorias conspirativas ou negacionistas de toda a espécie, “virais”. Todos podem ser autores, editores, broadcasters, propagandistas ou agitadores através das redes sociais digitais ou blogues, mas as leis de potência funcionam aqui também. A “electrografia”, a escrita em processador de texto ou em dispositivos móveis (mensagens de texto em especial), tem evidentemente alterado ortografia, sintaxe e léxico entre muitos cibernautas jovens devido em parte aos imperativos de concisão em mensagens rápidas: degradação cognitiva segundo alguns, criatividade segundo outros (a epistolografia da intimidade on-line tem sido comentada dos mesmos modos). Seja como for, a electrografia representa hoje uma força na transformação da linguagem e das línguas nacionais.
Se existe um individualismo de redes, funcionam também colectivos em redes digitais por toda a parte: as organizações económicas, os partidos políticos, as organizações estatais, funcionam também cada vez mais em rede. É pois adequado falar de uma economia de redes, de sistemas políticos em rede, de Estados em vias de reticularização, enfim, de “colectivos de redes”, e até de “colectivismo de redes” (Jaron Lanier chegou a falar de “Maoismo digital”). A tendência para o individualismo de redes representa uma aposta em que as facilidades de florescimento da vida individual num mundo reticular irão prevalecer sobre as outras formas de sociação transindividual em redes que poderão redefinir a escolha livre, a criatividade, a mobilidade cultural. Esta redefinição terá sentidos menos conformes a um individualismo moral e político consentâneo com a autêntica continuação do individualismo ocidental, com o seu legado cristão e kantiano, que prezava a vida privada (a eliminação da privacidade decorre da vida digital), a responsabilidade moral, o sentido crítico, a independência perante a doxa, o distanciamento da mundanidade.
Além disso, não há e-mail, mensagem de texto, mensagem instantânea, que não deixe rasto: todos os cibernautas deixam a sua “pegada digital”, a sua “sombra digital”. A vida on-line é praticamente toda capturável por Estados, e muita dela a acessível a várias agências ou piratas informáticos. A nossa vida on-line é arquivada por multinacionais e outras empresas, que procuram satisfazer-nos pelo conhecimento das “preferências” registadas pelos nossos actos digitais (todos os cliques), desde a mais tenra idade até à morte, mas que tornam os internautas em clientes a cada segundo do nosso quotidiano. A “aldeia global” manifesta-se hoje como um “centro comercial global”, a mercantilização universaliza-se pari passu com a digitalização e reticularização das nossas vidas individuais, profissionais, colectivas, organizacionais. O “individualismo de redes” é acompanhado pela economia de redes, o sistema financeiro de redes, o sistema político de redes, o mercado mundial de redes. O individualismo de redes também se pode caracterizar como “individualismo de redes de mercado” (com os cibernautas observados e solicitados permanentemente por empresas) ou como um individualismo de redes monitorizadas por Estados. E ainda não se vê como o individualismo de redes poderá superar a força das identidades primordiais, do sentido de pertença, da necessidade de pertença, a grupos e comunidades como etnias, comunidades linguísticas, nações, comunidades religiosas transnacionais (que recorrem também às tecnologias digitais com uma certa eficácia).
A Internet, a Web e as tecnologias digitais de informação e comunicação afectam praticamente todos os domínios sociais, económicos, financeiros, políticos, culturais, artísticos, científicos, religiosos da nossa civilização, bem como os nossos cérebros e mentes. Evidentemente, nestas páginas só nos foi possível aflorar alguns tópicos de um vasto leque de assuntos que a Revolução Digital em curso pode sugerir.
BIBLIOGRAFIA
Castells, Manuel. (2007) A Sociedade em Rede. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Lisboa, Gulbenkian
Doueihi, Milad (2008) La grande conversion numérique Paris, Seuil
Furtado, José Afonso (2012) Uma cultura da informação para o universo digital Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos
Rainie, Lee and Barry Wellman (2012) Networked: The new social operating system. Cambridge, MIT Press.
Turkle, Sherry (2011) Alone and together – why we expect more from technology and less from each other NY, Basic Books
Wu, Tom (2010) The master switch – the rise and fall of information empires NY, Random House
Lanier, Jaron (2006) "Digital Maoism: The hazards of the new online collectivism." The Edge 183.
Zallo, Ramón (2011) Estructuras de la comunicación y de la cultura. Políticas para la era digital. Barcelona. Editorial Gedisa.
terça-feira, novembro 26, 2013
A violência, a procura de justiça e o regresso à democracia
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Novembro de 2013
Crónica 44/2013
Texto publicado no jornal Público a 26 de Novembro de 2013
Crónica 44/2013
A eleição deste Governo aconteceu com base numa fraude eleitoral
Há quem pense que, ao falar da “onda de violência que aí virá”, Mário Soares está a legitimar o uso da violência como arma política ou mesmo a convocar essa violência.
Paulo Portas foi um dos que achou que “as declarações de um antigo Presidente da República são graves porque elas significam, mesmo que involuntariamente, a legitimação da violência e em democracia a violência nunca é a forma adequada de manifestar uma opinião".
De facto, Soares não declarou que era legítimo usar da violência e apenas alertou para o facto de que o caminho que o Governo está a seguir pode levar à violência e que, precisamente por isso, deve ser imediatamente inflectido.
Não tenho a mínima dúvida de que Soares receia uma explosão de violência - quanto mais não seja porque, uma vez iniciada, ninguém pode prever a sua evolução. E não tenho notícia de que o PS, ou mesmo os “radicais” do BE ou do PCP, se preparem para enquadrar, controlar e liderar essa explosão de violência de forma que sirva os seus objectivos políticos.
Mas sejamos claros: se alguém pensa que a política seguida pelo actual Governo não contém qualquer risco de dar origem a situações de violência social deve começar a tomar os medicamentos que o médico receitou. Uma pessoa no seu juízo só poderia pensar assim se, devido a uma raríssima situação de privilégio, não tivesse sido minimamente atingida pela “austeridade”, se não conhecesse ninguém que o tivesse sido e se tivesse os filmes de António Lopes Ribeiro como único ponto de contacto com a realidade quotidiana dos portugueses. Basta andar na rua e ver e ouvir as pessoas para perceber como a “austeridade” afectou as vidas de todos, como o seu presente os humilha e os desespera, como o futuro dos filhos os angustia, como a sua raiva é palpável, como o seu sentimento de injustiça está ao rubro. E com razão. Não é fácil aceitar que os nossos filhos não vão poder frequentar a universidade, que não podemos comprar os medicamentos de que a nossa mãe precisa, que o nosso filho com necessidades especiais não tenha apoio na escola, que o nosso salário tenha sido reduzido e não permita a extravagência de tomar um café, que a nossa filha esteja desempregada sem subsídio e precise de ajuda para pagar a luz e a água e toda a cascata de pequenas misérias e de tristes vergonhas em que a vida da maioria dos portugueses se tornou.
Como não é fácil aceitar que a sociedade mais justa, igualitária e livre que tentámos construir nas últimas décadas esteja a ser destruída pedra a pedra para favorecer um grupo de privilegiados. Ou que o nosso país esteja ocupado por potências financeiras estrangeiras e que o Governo português se demita de defender o seu país e adopte uma posição colaboracionista. Ou que a democracia tenha sido suspensa e substituída pela obediência aos ditames de Berlim e Frankfurt.
Paulo Portas tem toda a razão quando diz que “em democracia a violência nunca é a forma adequada de manifestar uma opinião". O pequeno problema é que a democracia não é esta coisa que temos, porque a democracia não se resume a votar de quatro em quatro anos. Ou, se ainda é democracia, é “a democracia de baixa intensidade” de que, numa expressão (in)feliz, fala Boaventura de Sousa Santos. A democracia é o regime da escolha pelo povo e a eleição deste Governo aconteceu com base numa fraude eleitoral: foi eleito um partido com um programa e, uma vez contados os votos, outro partido com outro programa tomou o poder. Que o tenha feito mantendo o mesmo nome não é a questão substantiva.
Acontece porém que, quando a dignidade das pessoas e a sobrevivência dos seus filhos é posta em causa, a violência pode ser a resposta. Não só uma resposta compreensível, mas justa. Estou a apelar à violência? Não, porque o que resulta da violência não é forçosamente uma solução, nem é necessariamente melhor e pode ser muito pior ainda. Mas na raiz da violência pode estar - e esteve muita vez ao longo da história - uma mais do que compreensível exigência de justiça.
Vivemos um momento político particular: o Governo que temos, legalmente eleito, governa de forma ilegítima. Politicamente ilegítima porque o seu programa não foi sufragado. Socialmente ilegítima porque aumenta a desigualdade e a pobreza. Eticamente ilegítima porque mente e desrespeita os seus compromissos. E não existe uma forma de o parar na sua desfilada. O sistema incipiente de “checks and balances” que temos em Portugal não funciona. O Governo ignora oposição, parceiros sociais, manifestações, tribunais e a academia e o PR assobia para o lado. O cocktail é explosivo e, como diz Soares, a violência está à porta. E a violência é uma arma política legítima quando não existe outra arma possivel.
Se em democracia a violência política não é admissível, seria bom regressarmos rapidamente à democracia. (jvmalheiros@gmail.com)
domingo, novembro 24, 2013
Escrever para viver melhor - Prefácio do livro “Os leitores também escrevem”
Prefácio do livro “Os leitores também escrevem”, lançado no dia 24 de Novembro de 2013
Por José Vítor Malheiros
Autores: António Catita, Maria Clotilde Moreira, José Amaral, Fernando Cardoso Rodrigues, João Fraga de Oliveira, Francisco José Ramalho Nunes, Augusto Küttner de Magalhães, Joaquim Abílio Pinto de Moura, Vítor Colaço Santos, Ana Santos, Rogério Gonçalves e Céu Mota. Nota de Fábio Ribeiro
Por José Vítor Malheiros
Autores: António Catita, Maria Clotilde Moreira, José Amaral, Fernando Cardoso Rodrigues, João Fraga de Oliveira, Francisco José Ramalho Nunes, Augusto Küttner de Magalhães, Joaquim Abílio Pinto de Moura, Vítor Colaço Santos, Ana Santos, Rogério Gonçalves e Céu Mota. Nota de Fábio Ribeiro
A expressão pretende ser um reconhecimento formal dos direitos dos leitores, mas acontece com ela o mesmo que com o tratamento cavalheiresco das mulheres pelos homens: tem um perfume de lisonja sedutor, mas esconde um perigoso lastro de paternalismo.
Dizer que “os leitores são a razão de ser dos jornais” quis dizer simplesmente durante décadas que os leitores eram os utilizadores finais do jornal, os leitores dos seus artigos, os consumidores dos seus anúncios. Mas há uma unidireccionalidade escondida na frase que condena os leitores a uma situação de meros receptores da mensagem. Quando um jornal diz que “os leitores são a razão de ser dos jornais” está a dizer que faz tudo a pensar nos seus leitores e que são os interesses dos leitores (tal como o jornal os concebe) que determinam as suas escolhas. Mas não que os leitores devam ter maior influência no jornal ou mais espaço nas suas páginas. A relação de poder sempre foi assimétrica e o aforismo reflecte essa assimetria. Afinal, o jornal sabe coisas que os leitores não sabem e esse ascendente justifica a relação de poder - é aliás por causa disso que os leitores compram o jornal. É para ficarem a saber mais, para receber a informação que o jornal recolheu, trabalhou e publicou em sua intenção.
Claro que os leitores nunca foram consumidores passivos e sempre fizeram conhecer as suas críticas, os seus comentários e sugestões, usando mecanismos mais ou menos tradicionais para influenciar os jornais, os directores, os jornalistas: fazendo chegar dicas e sugestões aos jornalistas, escrevendo Cartas ao Director, artigos de opinião, cartas ao Provedor, fazendo queixas e reclamações ou, mais drasticamente, deixando de comprar o jornal.
Mas a questão é que, apesar de tudo isso, durante séculos, a imprensa escrita foi uma plataforma onde o jornal falava e os leitores ouviam.
A Internet veio agitar de forma radical este status quo, tornando evidentes verdades conhecidas mas que durante muitos anos estiveram escondidas. A primeira descoberta foi que havia afinal muitos mais leitores exigentes do que deixavam antever as escassas dezenas de pessoas que se davam ao trabalho de enviar cartas ao director. A segunda, e mais traumática para muitos jornalistas, foi a constatação de que os leitores sabiam afinal mais, muito mais, do que os jornais que liam e eram capazes de uma análise crítica do que lhes era oferecido. Esta constatação não devia ser uma surpresa. Afinal, esse “grande público” de que falamos reúne todos os especialistas de todas as áreas e não há domínio do conhecimento que lhe escape e sobre o qual não tenha algo a dizer. Mas a dificuldade em reagir - o facto de ter de usar outro meio de comunicação, como a carta, muito mais pesado e lento, para enviar ao jornal as suas reacções - e o escasso feedback dos leitores que ele causava alimentou durante décadas esta ideia de um público que, apesar das honrosas excepções, era largamente passivo e expectante, admirativo e ignorante.
A explosão da blogosfera a partir do ano 2000 foi o primeiro sinal evidente de que as coisas estavam a mudar na relação entre leitores e jornais. De súbito, pessoas que eram simples leitores num dia, tornavam-se autores no dia seguinte (jornalistas, críticos, colunistas) e encontravam um público sequioso e uma influência inesperada. As discussões sobre a concorrência entre bloggers e jornalistas tornaram-se comuns e a pergunta “irão os blogs substituir os jornais?” tornou-se central nessas discussões. Os blogs não eram (não são), porém, apenas a transformação de leitores em autores com a correspondente multiplicação do número de palestras: eram principalmente um espaço onde o diálogo entre autores e leitores-comentadores encontrava um novo estatuto. A palestra começava a transformar-se numa conversa, para usar a expressão cunhada por Dan Gillmor no seu livro “We the media” (2004). As redes sociais como o Facebook e o Twitter viriam depois ampliar desmesuradamente este fenómeno, ao transformar os leitores nas principais fontes de recomendação dos sites de informação e ao dar ao “conteúdo gerado pelos utilizadores” o primeiro lugar no consumo de informação.
E, no entanto, as consequências deste empoderamento dos leitores estão ainda largamente por extrair, em Portugal e no resto do mundo, apesar de experiências pioneiras levadas a cabo por todo o lado.
Penso que uma das revoluções mais profundas que está a abalar o jornalismo tem a ver com esta nova relação com os leitores, ainda mal digerida e mal gerida, com este novo poder que os leitores possuem não só de criticar a informação dos jornais, mas de lançar as suas próprias discussões, de impor os seus temas e até de participar na produção de informação com um nível elevado de complexidade - através de projectos de crowdsourcing, por exemplo, onde milhares de cidadãos podem recolher informação, validá-la e difundi-la em parceria com órgãos de comunicação tradicionais.
Timidamente, os jornais abriram os seus sites a comentários de leitores, mais ou menos controlados, mas é evidente que isso é demasiado pouco, demasiado tarde. A conversa que os leitores querem é uma conversa entre adultos, sem tutelas, e os jornais, pura e simplesmente, não possuem ainda ferramentas (culturais, narrativas, organizacionais) para a levar plenamente a cabo.
É verdade que o espaço do comentário nos sites de jornais portugueses foi ocupado, na generalidade dos casos, por desabafos anónimos de baixo nível e não por exercícios de cidadania responsável, mas isso não se deve apenas à falta de qualidade dos leitores mas, também, à falta de qualidade do próprio espaço, cuja gestão exige um investimento que os jornais não possuem condições para fazer. Mas essa necessidade de diálogo existe e os jornais terão de encontrar meios para a satisfazer se não quiserem seguir o caminho da irrelevância.
“Os leitores também escrevem” é uma prova da vitalidade submersa que os leitores dos jornais possuem e que estes escassamente aproveitam - para não dizer que a desperdiçam.
Reunião de textos de doze leitores compulsivos de jornais, publicados como Cartas ao Director ou artigos de opinião, este livro é, antes de mais, uma declaração de amor aos jornais, exemplificando todos os matizes por que passa uma relação passional.
Para os autores de “Os leitores também escrevem”, os jornais (nas suas versões em papel ou online) são locais de encontro e de confronto. Encontro de ideias mas também de pessoas, confronto de leituras e de propostas. São locais de cidadania, de inscrição e de agência que têm de ser ocupados pelos cidadãos. São os locais onde as discussões racionais e emocionais acontecem, onde a história e o desejo têm lugar e que, por isso, são o lugar natural por onde passam as escolhas da cidade.
Há em todos estes textos uma urgência, uma exigência, uma generosidade e uma persistência que espantam. O que nos dizem estes textos e o gesto de os reunir em livro, para assim os expor a outro nível de discussão, é que podemos viver melhor, que queremos viver melhor e que sabemos viver melhor. E que a melhor maneira de o conseguir é incluir na conversa todos os cidadãos.
José Vítor Malheiros
Lisboa, Julho 2013
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