por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Dezembro de 2006
Crónica 45/2006
Neste Dezembro de 2006 termina a primeira Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza – com parcos resultados.
Na minha infância, nos anos 60, o Natal era a festa dos bolos e dos presentes no sapatinho, do presépio com musgo que se ia buscar a Sintra e da árvore de Natal com velas verdadeiras, a festa do nascimento do Menino Jesus, da Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. E além de tudo isto era também a Festa dos Pobres. Não que os pobres fizessem uma grande festa, mas porque era a quadra em que os ricos e remediados (a curiosa expressão que o salazarismo inventou para descrever a classe média não endinheirada da época) dedicavam um pouco do seu tempo e atenção aos pobres.
Havia muitos pobres. Havia trabalhadores pobres que começavam a bater à porta à hora do jantar a meados de Dezembro "desejando a Vossa Excelência e Excelentíssima Família Boas Festas e um Próspero Ano Novo", às vezes só com o boné na mão, outras trazendo um cartão de visita impresso para a ocasião. Eram os carteiros, os homens da companhia de electricidade, da companhia das águas, os "homens do lixo", os cantoneiros, os jardineiros, os bombeiros, os guardas-nocturnos, os limpa-chaminés, os homens que lavavam as ruas e que em troca de uma moeda também davam umas mangueiradas nos carros e muitos outros. Todos dedicavam os serões de Dezembro à obtenção do subsídio de Natal que o contrato não incluía. Mas também havia os outros: os pobres de pedir.
Esses também tinham direito a tratamento especial no Natal. Havia quem fizesse sopa a mais para os pobres que vinham bater à porta – para ser comida sobre os joelhos, sentado na escada, depois de tocar à porta de serviço, que dava para a cozinha. Havia os pobres que nesses dias traziam a família para apresentar à senhora que tem sido tão boa para nós, e havia mesmo quem deixasse a mesa da cozinha preparada com uma merenda para os "seus pobres".
Nesses dias em que a maior parte das mulheres ainda estava em casa e em que ainda se abria a porta da rua quando a campainha soava, muitas famílias ricas ou remediadas (às vezes apenas escassamente mais desafogadas que os recipientes da caridade) tinham os seus pobres, muitas vezes com dias certos, que vinham receber a esmola uma vez por semana, regulares como assalariados.
Os pobres marcavam também presença noutro mundo: nas histórias. Do "Conto de Natal" de Dickens, à "Menina dos fósforos" de Hans Christian Andersen, transmitindo a moral da dádiva ou (nos melhores casos) o sentimento de injustiça social às crianças de garganta apertada e lágrimas nos olhos. Não é uma caricatura: ouvi várias vezes em resposta à pergunta "Como é que Deus permite que haja pobreza?" que a existência dos pobres se justificava por estes permitirem o exercício da caridade cristã dos outros.
Vem tudo isto não só a propósito do Natal mas do fim, neste Dezembro de 2006, da primeira Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza – com parcos resultados.
José Sócrates acabou de nos vir dizer que a economia, as contas públicas e o emprego estão a dar passos positivos em Portugal, mas (como as Nações Unidas não se cansam de explicar a quem quer ouvir), em África ou em Portugal, não chega esperar que a economia arranque da pobreza os que lá vivem – tanto mais que a riqueza produzida tem uma estranha tendência para se espalhar pela sociedade de forma cada vez mais desigual. São necessárias políticas activas de combate à pobreza e à exclusão; de integração de emigrantes clandestinos; de educação de crianças, jovens e adultos; de formação profissional; de educação sanitária; de cuidados médicos; de protecção das mulheres; de microfinanciamento; de acções de realojamento e acompanhamento de famílias; de ajuda alimentar; de combate às redes de criminalidade que mantêm as escravaturas que geram grande parte da pobreza. Tudo acções que têm de ter como objectivo definido erradicar a pobreza. Sem essa atenção aos mais pobres dos pobres, qualquer discurso de solidariedade natalícia é vazio e sem sentido. (jvmalheiros@gmail.com)
terça-feira, dezembro 26, 2006
terça-feira, dezembro 19, 2006
Nós e os outros
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Dezembro de 2006
Crónica 44/2006
Quem são os "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a "Time"?
1. A ilustração de capa da última revista "Time" é um espelho, feito com um pedaço de mylar colado no papel, onde cada leitor se pode ver reflectido. O número é dedicado à Pessoa do Ano 2006 que desta vez é "Você" – "You" no original. Para que o leitor surpreendido pela honra não tenha dúvidas, a revista explica, ainda na capa: "Sim, você. Você controla a Idade da Informação".
A ideia é boa. É original e há bons argumentos para a defender, além de escovar o ego dos leitores reflectidos e de vender revistas – o que não é um crime.
2. A razão da escolha da "Time" é a explosão da chamada Web 2.0 – um conceito que se traduz na multiplicação de sites que permitem a partilha de informação e o trabalho cooperativo, que facilitam a criação de comunidades e que popularizaram os blogs, a difusão de informação e a comunicação entre cidadãos comuns. A Web 2.0 (uma designação adaptada por piada da indústria de software) e a Web social (um conceito que coloca a ênfase na Web como ferramenta de interacção social), a cujo nascimento estamos a assistir, são fenómenos de enorme impacto social, económico, cultural e político. Os tempos que estamos a viver são extremamente excitantes e todos temos a sensação de estar a participar numa revolução na qual depositamos enormes expectativas. E, por isso, a escolha da "Time" parece justa e estimulante.
3. O problema da tecnologia é que as possibilidades com que nos acena fazem-nos sonhar de tal forma que por vezes é difícil separar a potencialidade da realidade ou admitir que os caminhos da evolução podem não ser os mais desejáveis. E a realidade é que, por muito inclusiva que seja esta tecnologia (e é em muitos casos), também ela gera exclusão. Por muito poder que ela dê aos seus utilizadores anónimos (e dá em muitos casos), ela não permite resistir à lógica avassaladora de um mercado frequentemente desumano. Por muitas oportunidades económicas que ela abra (e abre em muitos casos), ela não tem permitido reduzir o fosso entre ricos e pobres – que cresceu ao longo dos mesmos anos em que a Web alargou a sua influência. Que, por muito social que ela seja, ela não dá mostras de poder inflectir o comportamento dos países ricos em relação ao ambiente, à pobreza ou à guerra.
4. Que existem potencialidades que apenas agora começamos a vislumbrar na Net parece evidente. Que a Net pode conferir um enorme poder ("empowerment") aos cidadãos também parece evidente. Que a Net pode servir (e deve servir) para difundir e aprofundar a democracia também não merece dúvida. Mas que esse poder constitua uma diferença para os milhares de milhões de seres humanos vítimas da fome, da guerra e da pobreza crónica, sem-abrigo, sem trabalho, sem-papéis, sem-terra, é uma completa falsidade. Eles não são os novos "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a Time. "You" não são eles. Eles são os outros. Não aqueles com quem se fala, mas apenas (no melhor dos casos), aqueles de quem se fala.
5. Se quando diz "you" a "Time" fala daqueles que terão a sorte de se ver reflectidos na sua capa, do grupo dos seus leitores, o "empowerment" poderá ser real. Mas ele não o é para os outros, para aqueles que a própria tecnologia permite dispensar, para os redundantes da sociedade pós-industrial. Para esses, o "you" é tão real como o "american dream" é real para um sem-abrigo nigeriano, como o "Give me your tired, your poor" da Mãe dos Exilados é real para uma prostituta seropositiva de Taiwan, como os quinze minutos de fama são reais para uma criança malnutrida do Burkina Faso. Esses não pertencem aos que estão "a transformar a Idade da Informação", como diz a "Time". Nem pertencem ao número dos que se assustam com o "excesso de democracia" da Web, como diz a "Time". Eles não controlam a Idade de Informação. E os seus números são crescentes.
Texto publicado no jornal Público a 19 de Dezembro de 2006
Crónica 44/2006
Quem são os "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a "Time"?
1. A ilustração de capa da última revista "Time" é um espelho, feito com um pedaço de mylar colado no papel, onde cada leitor se pode ver reflectido. O número é dedicado à Pessoa do Ano 2006 que desta vez é "Você" – "You" no original. Para que o leitor surpreendido pela honra não tenha dúvidas, a revista explica, ainda na capa: "Sim, você. Você controla a Idade da Informação".
A ideia é boa. É original e há bons argumentos para a defender, além de escovar o ego dos leitores reflectidos e de vender revistas – o que não é um crime.
2. A razão da escolha da "Time" é a explosão da chamada Web 2.0 – um conceito que se traduz na multiplicação de sites que permitem a partilha de informação e o trabalho cooperativo, que facilitam a criação de comunidades e que popularizaram os blogs, a difusão de informação e a comunicação entre cidadãos comuns. A Web 2.0 (uma designação adaptada por piada da indústria de software) e a Web social (um conceito que coloca a ênfase na Web como ferramenta de interacção social), a cujo nascimento estamos a assistir, são fenómenos de enorme impacto social, económico, cultural e político. Os tempos que estamos a viver são extremamente excitantes e todos temos a sensação de estar a participar numa revolução na qual depositamos enormes expectativas. E, por isso, a escolha da "Time" parece justa e estimulante.
3. O problema da tecnologia é que as possibilidades com que nos acena fazem-nos sonhar de tal forma que por vezes é difícil separar a potencialidade da realidade ou admitir que os caminhos da evolução podem não ser os mais desejáveis. E a realidade é que, por muito inclusiva que seja esta tecnologia (e é em muitos casos), também ela gera exclusão. Por muito poder que ela dê aos seus utilizadores anónimos (e dá em muitos casos), ela não permite resistir à lógica avassaladora de um mercado frequentemente desumano. Por muitas oportunidades económicas que ela abra (e abre em muitos casos), ela não tem permitido reduzir o fosso entre ricos e pobres – que cresceu ao longo dos mesmos anos em que a Web alargou a sua influência. Que, por muito social que ela seja, ela não dá mostras de poder inflectir o comportamento dos países ricos em relação ao ambiente, à pobreza ou à guerra.
4. Que existem potencialidades que apenas agora começamos a vislumbrar na Net parece evidente. Que a Net pode conferir um enorme poder ("empowerment") aos cidadãos também parece evidente. Que a Net pode servir (e deve servir) para difundir e aprofundar a democracia também não merece dúvida. Mas que esse poder constitua uma diferença para os milhares de milhões de seres humanos vítimas da fome, da guerra e da pobreza crónica, sem-abrigo, sem trabalho, sem-papéis, sem-terra, é uma completa falsidade. Eles não são os novos "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a Time. "You" não são eles. Eles são os outros. Não aqueles com quem se fala, mas apenas (no melhor dos casos), aqueles de quem se fala.
5. Se quando diz "you" a "Time" fala daqueles que terão a sorte de se ver reflectidos na sua capa, do grupo dos seus leitores, o "empowerment" poderá ser real. Mas ele não o é para os outros, para aqueles que a própria tecnologia permite dispensar, para os redundantes da sociedade pós-industrial. Para esses, o "you" é tão real como o "american dream" é real para um sem-abrigo nigeriano, como o "Give me your tired, your poor" da Mãe dos Exilados é real para uma prostituta seropositiva de Taiwan, como os quinze minutos de fama são reais para uma criança malnutrida do Burkina Faso. Esses não pertencem aos que estão "a transformar a Idade da Informação", como diz a "Time". Nem pertencem ao número dos que se assustam com o "excesso de democracia" da Web, como diz a "Time". Eles não controlam a Idade de Informação. E os seus números são crescentes.
terça-feira, dezembro 12, 2006
Poder às mulheres
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Dezembro de 2006
Crónica 43/2006
Quando as mulheres têm mais poder, as crianças são mais protegidas.
1. No passado domingo, Muhammad Yunus e o Banco Grameen, que este economista do Bangladesh fundou em 1976, receberam em Oslo o prémio Nobel da Paz. Criador do conceito de microcrédito, Yunus já ajudou a sair da pobreza mais de seis milhões de pessoas, que receberam na maior parte dos casos empréstimos de menos de 200 dólares para criar os seus próprios empregos.
Mais de 90 por cento dos beneficiários directos do microcrédito no mundo são mulheres e no Banco Grameeen a percentagem sobe aos 96 por cento. Porque é que o Grameen prefere emprestar a mulheres? Porque as mulheres usam melhor o dinheiro: têm maiores taxas de sucesso no lançamento ou expansão de um negócio, conseguem pagar os empréstimos a tempo e melhoram mais as condições de vida das suas famílias e o seu nível de nutrição do que os homens. Além de que a probabilidade de os filhos serem enviados à escola é muito mais elevada quando o dinheiro está no bolso da mãe do que na mão do pai.
2. Ontem, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou a seu relatório "Situação Mundial da Infância 2007". O documento coloca a tónica na igualdade de géneros, que considera não só um imperativo em termos de direitos humanos mas também a forma mais eficaz de defender os direitos das crianças.
Porque é que dar mais poder às mulheres protege as crianças? Porque, diz o relatório, nas famílias onde as mulheres são as principais decisoras, a proporção dos recursos destinados às crianças é muito maior. "As mulheres geralmente valorizam mais as metas relacionadas com o bem-estar e são mais propensas a usar a sua influência e os recursos sob o seu controlo para promover o atendimento das necessidades das famílias, em especial das crianças", diz o documento.
3. Nada disto são profissões de fé. Nem o Grameen nem a Unicef colocam a tónica na necessidade de dar mais poder às mulheres por razões filosóficas (ainda que elas também possam existir). Os seus argumentos são pragmáticos. Quando as mulheres têm mais dinheiro, mais prestígio social, as famílias vivem melhor e as crianças são mais protegidas. E nas famílias mais pobres dos países mais pobres as diferenças são mais flagrantes: o poder dado às mulheres permite não só salvar as próprias mulheres da discriminação, da exploração, da violência e da pobreza, mas resgatar mais crianças da fome, da ignorância e da doença e melhorar as condições de vida das famílias – e com elas, também dos homens. Aragon tinha razão: "la femme est l'avenir de l'homme".
4. Algo ressalta desta constatação. A representação estereotipada da mulher (nos media, na publicidade, no entretenimento, no discurso político, nas decisões judiciais), como ser de capacidade diminuída e condenado a actividades de menor relevância social, é um factor que reforça não só um estatuto iníquo, que ofende o sentido de justiça, como contribui para eternizar situações de discriminação que afectam as mulheres e toda a sociedade. Tanto entre nós como nos países menos desenvolvidos. O relativismo moral (que se mascara às vezes de aceitação das diferenças culturais) não pode pactuar com as situações que estão na raiz do mal. O que os dados nos dizem é que a luta contra a pobreza e pelas crianças passa necessariamente por dar mais poder às mulheres. E se começássemos por aqui?
Texto publicado no jornal Público a 12 de Dezembro de 2006
Crónica 43/2006
Quando as mulheres têm mais poder, as crianças são mais protegidas.
1. No passado domingo, Muhammad Yunus e o Banco Grameen, que este economista do Bangladesh fundou em 1976, receberam em Oslo o prémio Nobel da Paz. Criador do conceito de microcrédito, Yunus já ajudou a sair da pobreza mais de seis milhões de pessoas, que receberam na maior parte dos casos empréstimos de menos de 200 dólares para criar os seus próprios empregos.
Mais de 90 por cento dos beneficiários directos do microcrédito no mundo são mulheres e no Banco Grameeen a percentagem sobe aos 96 por cento. Porque é que o Grameen prefere emprestar a mulheres? Porque as mulheres usam melhor o dinheiro: têm maiores taxas de sucesso no lançamento ou expansão de um negócio, conseguem pagar os empréstimos a tempo e melhoram mais as condições de vida das suas famílias e o seu nível de nutrição do que os homens. Além de que a probabilidade de os filhos serem enviados à escola é muito mais elevada quando o dinheiro está no bolso da mãe do que na mão do pai.
2. Ontem, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou a seu relatório "Situação Mundial da Infância 2007". O documento coloca a tónica na igualdade de géneros, que considera não só um imperativo em termos de direitos humanos mas também a forma mais eficaz de defender os direitos das crianças.
Porque é que dar mais poder às mulheres protege as crianças? Porque, diz o relatório, nas famílias onde as mulheres são as principais decisoras, a proporção dos recursos destinados às crianças é muito maior. "As mulheres geralmente valorizam mais as metas relacionadas com o bem-estar e são mais propensas a usar a sua influência e os recursos sob o seu controlo para promover o atendimento das necessidades das famílias, em especial das crianças", diz o documento.
3. Nada disto são profissões de fé. Nem o Grameen nem a Unicef colocam a tónica na necessidade de dar mais poder às mulheres por razões filosóficas (ainda que elas também possam existir). Os seus argumentos são pragmáticos. Quando as mulheres têm mais dinheiro, mais prestígio social, as famílias vivem melhor e as crianças são mais protegidas. E nas famílias mais pobres dos países mais pobres as diferenças são mais flagrantes: o poder dado às mulheres permite não só salvar as próprias mulheres da discriminação, da exploração, da violência e da pobreza, mas resgatar mais crianças da fome, da ignorância e da doença e melhorar as condições de vida das famílias – e com elas, também dos homens. Aragon tinha razão: "la femme est l'avenir de l'homme".
4. Algo ressalta desta constatação. A representação estereotipada da mulher (nos media, na publicidade, no entretenimento, no discurso político, nas decisões judiciais), como ser de capacidade diminuída e condenado a actividades de menor relevância social, é um factor que reforça não só um estatuto iníquo, que ofende o sentido de justiça, como contribui para eternizar situações de discriminação que afectam as mulheres e toda a sociedade. Tanto entre nós como nos países menos desenvolvidos. O relativismo moral (que se mascara às vezes de aceitação das diferenças culturais) não pode pactuar com as situações que estão na raiz do mal. O que os dados nos dizem é que a luta contra a pobreza e pelas crianças passa necessariamente por dar mais poder às mulheres. E se começássemos por aqui?
terça-feira, dezembro 05, 2006
Privilégios e igualdade
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Dezembro de 2006
Crónica 42/2006
Caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Antes de mais, a declaração de interesses: sou jornalista e beneficiário da Caixa de Jornalistas.
A seguir, um facto: a Caixa de Jornalistas constitui um sub-sistema de saúde baseado na livre escolha do médico pelo beneficiário. O jornalista vai ao médico que deseja, paga, pede um recibo, envia o recibo para a Caixa e recebe o reembolso de parte dessa despesa, de acordo com uma tabela de comparticipações.
Depois, a minha posição: sou contra a extinção da Caixa de Jornalistas.
Finalmente, os argumentos:
1. Acabar com a Caixa de Jornalistas (CJ) é acabar com algo que funciona bem e com agrado dos seus utentes, para o substituir por algo que funciona mal e com desagrado dos seus utentes. Este argumento, por si só, deveria merecer alguma atenção por parte de um Governo que diz ter como bandeiras a produtividade e a eficiência da Administração Pública – para não falar da saúde.
2. O argumento para acabar com a CJ, segundo o Governo, não é financeiro, mas de uniformização. Mas não há razão para escolher a uniformização quando essa escolha implica uma degradação da qualidade de atendimento e de vida. Uma sociedade democrática vive da diferença, uma sociedade inovadora aceita e estimula a diferença e tem de aprender a gerir a diferença e a descentralizar. A diferença só é perturbadora nas sociedades totalitárias. Nivelar por baixo em nome da uniformização é inaceitável.
3. Vejamos o argumento financeiro (partindo da hipótese, sensata, de que o Governo está a mentir quando diz que não se trata de uma questão de dinheiro): existe o facto perturbador de a CJ e o Governo, que têm acesso aos mesmos números, chegarem a conclusões opostas quanto aos custos da instituição. A primeira diz que o sistema custa metade do sistema comum, o segundo diz que é mais caro. Há aqui uma diferença que seria bom esclarecer. Se for como diz a CJ, a extinção desta Caixa é um elogio do desperdício. Se for como diz o Governo, ele deveria mostrar números que provem o que é afirmado.
4. É evidente que não basta que os jornalistas consigam pagar com os seus descontos a sua própria Caixa. É evidente que há um dever de solidariedade social que os jornalistas reconhecem e aceitam. Ou seja: caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Mas, se existe alguma desigualdade no actual sistema, há várias formas de o sanar que não passam pela extinção da Caixa – que, repita-se, funciona bem. Se o Estado considera que gasta mais do que deve gastar com a CJ, isso pode e deve ser resolvido através de um ajustamento das comparticipações (ou de um aumento de contribuições, como a própria presidente da CJ propôs!) em vez da extinção.
Em conclusão: não há argumentos financeiros ou de equidade que se possam invocar para extinguir a CJ. A medida apenas pode ser defendida em nome de uma atitude de igualitarismo cego - para não pôr a hipótese de uma mera demonstração de força perante uma profissão que o poder gosta de ver dócil e fragilizada.
5. Considero improcedentes os argumentos sobre o desgaste rápido da profissão de jornalista, que justificariam alguma compensação ao nível dos serviços de saúde. Há profissões de desgaste mais rápido, sem essa benesse.
6. Há finalmente, outra questão, que a política portuguesa banalizou, mas que merece reparo: a grosseria com que o Governo trata entidades e cidadãos respeitáveis, recusando-se a dialogar até depois dos factos consumados, rompendo unilateralmente negociações sem a sensatez de uma discussão e sem a delicadeza de uma explicação. Uso o privilégio de escrever esta coluna para defender o direito à cortesia.
Texto publicado no jornal Público a 5 de Dezembro de 2006
Crónica 42/2006
Caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Antes de mais, a declaração de interesses: sou jornalista e beneficiário da Caixa de Jornalistas.
A seguir, um facto: a Caixa de Jornalistas constitui um sub-sistema de saúde baseado na livre escolha do médico pelo beneficiário. O jornalista vai ao médico que deseja, paga, pede um recibo, envia o recibo para a Caixa e recebe o reembolso de parte dessa despesa, de acordo com uma tabela de comparticipações.
Depois, a minha posição: sou contra a extinção da Caixa de Jornalistas.
Finalmente, os argumentos:
1. Acabar com a Caixa de Jornalistas (CJ) é acabar com algo que funciona bem e com agrado dos seus utentes, para o substituir por algo que funciona mal e com desagrado dos seus utentes. Este argumento, por si só, deveria merecer alguma atenção por parte de um Governo que diz ter como bandeiras a produtividade e a eficiência da Administração Pública – para não falar da saúde.
2. O argumento para acabar com a CJ, segundo o Governo, não é financeiro, mas de uniformização. Mas não há razão para escolher a uniformização quando essa escolha implica uma degradação da qualidade de atendimento e de vida. Uma sociedade democrática vive da diferença, uma sociedade inovadora aceita e estimula a diferença e tem de aprender a gerir a diferença e a descentralizar. A diferença só é perturbadora nas sociedades totalitárias. Nivelar por baixo em nome da uniformização é inaceitável.
3. Vejamos o argumento financeiro (partindo da hipótese, sensata, de que o Governo está a mentir quando diz que não se trata de uma questão de dinheiro): existe o facto perturbador de a CJ e o Governo, que têm acesso aos mesmos números, chegarem a conclusões opostas quanto aos custos da instituição. A primeira diz que o sistema custa metade do sistema comum, o segundo diz que é mais caro. Há aqui uma diferença que seria bom esclarecer. Se for como diz a CJ, a extinção desta Caixa é um elogio do desperdício. Se for como diz o Governo, ele deveria mostrar números que provem o que é afirmado.
4. É evidente que não basta que os jornalistas consigam pagar com os seus descontos a sua própria Caixa. É evidente que há um dever de solidariedade social que os jornalistas reconhecem e aceitam. Ou seja: caso se demonstre que os jornalistas estão a ser beneficiados relativamente ao cidadão comum, essa desigualdade deve ser reparada.
Mas, se existe alguma desigualdade no actual sistema, há várias formas de o sanar que não passam pela extinção da Caixa – que, repita-se, funciona bem. Se o Estado considera que gasta mais do que deve gastar com a CJ, isso pode e deve ser resolvido através de um ajustamento das comparticipações (ou de um aumento de contribuições, como a própria presidente da CJ propôs!) em vez da extinção.
Em conclusão: não há argumentos financeiros ou de equidade que se possam invocar para extinguir a CJ. A medida apenas pode ser defendida em nome de uma atitude de igualitarismo cego - para não pôr a hipótese de uma mera demonstração de força perante uma profissão que o poder gosta de ver dócil e fragilizada.
5. Considero improcedentes os argumentos sobre o desgaste rápido da profissão de jornalista, que justificariam alguma compensação ao nível dos serviços de saúde. Há profissões de desgaste mais rápido, sem essa benesse.
6. Há finalmente, outra questão, que a política portuguesa banalizou, mas que merece reparo: a grosseria com que o Governo trata entidades e cidadãos respeitáveis, recusando-se a dialogar até depois dos factos consumados, rompendo unilateralmente negociações sem a sensatez de uma discussão e sem a delicadeza de uma explicação. Uso o privilégio de escrever esta coluna para defender o direito à cortesia.
terça-feira, novembro 21, 2006
Prendas
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Novembro de 2006
Crónica 41/2006
No entanto, nada disto tem de ser assim. Há maneiras mais gratificantes de pôr um sorriso na cara de uma criança.
Todos os anos é a mesma coisa. Queixamo-nos do consumismo da data; queixamo-nos da agressão comercial e da despudorada publicidade destinada às crianças; queixamo-nos da abundância de prendas que as nossas crianças recebem – tantas que nem têm tempo para as desfrutar, tantas que nem conseguem apreciar as que têm; queixamo-nos do materialismo que substitui a solidariedade a que a data devia supostamente ser votada; queixamo-nos das prendas inúteis que recebemos, compradas só para que o nosso nome possa ser riscado de uma lista de prendas.
Todos os anos é a mesma coisa mas isso só nos assalta quando os centros comerciais se enchem dos enfeites natalícios (no final de Outubro!) e quando jovens matinais invisíveis começam a atafulhar as nossas caixas de correio com enormes panfletos coloridos e indesejados cheios de Pais Natais, enquanto os canais e os programas infantis explodem em anúncios.
Pensamos que nada disto é bom, que nada disto é necessário para os nossos filhos, que não é assim que os queremos educar, e descobrimo-nos uns dias antes do Natal mergulhados em mares de gente, a tentar encontrar a última versão da boneca, o último modelo da consola, a encher caixas com brinquedos e a embrulhar prendas num frenesim alucinado, infectados pelo espírito do Natal venal.
Envergonhamo-nos desta girândola de futilidades enquanto mil milhões de seres humanos vivem com 80 cêntimos de euro por dia, enquanto mais de 4.000 crianças morrem por dia por falta de água e de cuidados básicos de higiene, mas continuamos no ano seguinte e no aniversário seguinte, depois da purificação de um suspiro.
E, no entanto, nada disto tem de ser assim. A dádiva natalícia não tem de ser um estímulo da posse e da cupidez e o desejo de dar não tem de ser sempre canalizado para as prateleiras das grandes superfícies. Há maneiras mais gratificantes de pôr um sorriso na cara de uma criança.
Há no mercado um número crescente de empresas que promete oferecer para causas nobres uns cêntimos por cada compra que fazemos ou uma parte dos lucros que fizerem em certos produtos. Todas estas iniciativas são meritórias – ainda que não seja sempre claro se o fazem por cálculo comercial ou genuína solidariedade – e isto é certamente algo que podemos fazer. Mas é possível fazer coisas ainda mais simples e mais úteis, como evitar submergir os nossos filhos e os dos outros em brinquedos supérfluos e dedicar esse tempo e esse dinheiro a comprar algo verdadeiramente útil para alguém que verdadeiramente precisa.
Há organismos internacionais e associações não-governamentais reconhecidas que canalizam dádivas para crianças necessitadas em todo o mundo e hoje em dia todas essas dádivas estão à distância de um clique na Internet. Pode ser dinheiro ou brinquedos, mas também podem ser oferecidas coisas tão básicas como livros ou carteiras para a escola, sapatos ou bibes, mosquiteiros ou... um porco. E estas dádivas têm a vantagem de poder ser usadas para presentear também os nossos amigos, pois elas podem ser feitas em nome de outra pessoa – que recebe um certificado a dizer que a sua prenda está nas mãos de uma criança algures no mundo.
É evidente que isto é difícil de explicar a uma criança de três anos, mas há certamente uma idade a partir da qual estes presentes serão apreciados. E mesmo que apenas encontremos oportunidade para fazer uma destas prendas por ano, isso será melhor que nada.
Os sorrisos podem ficar um bocado mais longe, mas sabemos que eles são sinceros.
Texto publicado no jornal Público a 21 de Novembro de 2006
Crónica 41/2006
No entanto, nada disto tem de ser assim. Há maneiras mais gratificantes de pôr um sorriso na cara de uma criança.
Todos os anos é a mesma coisa. Queixamo-nos do consumismo da data; queixamo-nos da agressão comercial e da despudorada publicidade destinada às crianças; queixamo-nos da abundância de prendas que as nossas crianças recebem – tantas que nem têm tempo para as desfrutar, tantas que nem conseguem apreciar as que têm; queixamo-nos do materialismo que substitui a solidariedade a que a data devia supostamente ser votada; queixamo-nos das prendas inúteis que recebemos, compradas só para que o nosso nome possa ser riscado de uma lista de prendas.
Todos os anos é a mesma coisa mas isso só nos assalta quando os centros comerciais se enchem dos enfeites natalícios (no final de Outubro!) e quando jovens matinais invisíveis começam a atafulhar as nossas caixas de correio com enormes panfletos coloridos e indesejados cheios de Pais Natais, enquanto os canais e os programas infantis explodem em anúncios.
Pensamos que nada disto é bom, que nada disto é necessário para os nossos filhos, que não é assim que os queremos educar, e descobrimo-nos uns dias antes do Natal mergulhados em mares de gente, a tentar encontrar a última versão da boneca, o último modelo da consola, a encher caixas com brinquedos e a embrulhar prendas num frenesim alucinado, infectados pelo espírito do Natal venal.
Envergonhamo-nos desta girândola de futilidades enquanto mil milhões de seres humanos vivem com 80 cêntimos de euro por dia, enquanto mais de 4.000 crianças morrem por dia por falta de água e de cuidados básicos de higiene, mas continuamos no ano seguinte e no aniversário seguinte, depois da purificação de um suspiro.
E, no entanto, nada disto tem de ser assim. A dádiva natalícia não tem de ser um estímulo da posse e da cupidez e o desejo de dar não tem de ser sempre canalizado para as prateleiras das grandes superfícies. Há maneiras mais gratificantes de pôr um sorriso na cara de uma criança.
Há no mercado um número crescente de empresas que promete oferecer para causas nobres uns cêntimos por cada compra que fazemos ou uma parte dos lucros que fizerem em certos produtos. Todas estas iniciativas são meritórias – ainda que não seja sempre claro se o fazem por cálculo comercial ou genuína solidariedade – e isto é certamente algo que podemos fazer. Mas é possível fazer coisas ainda mais simples e mais úteis, como evitar submergir os nossos filhos e os dos outros em brinquedos supérfluos e dedicar esse tempo e esse dinheiro a comprar algo verdadeiramente útil para alguém que verdadeiramente precisa.
Há organismos internacionais e associações não-governamentais reconhecidas que canalizam dádivas para crianças necessitadas em todo o mundo e hoje em dia todas essas dádivas estão à distância de um clique na Internet. Pode ser dinheiro ou brinquedos, mas também podem ser oferecidas coisas tão básicas como livros ou carteiras para a escola, sapatos ou bibes, mosquiteiros ou... um porco. E estas dádivas têm a vantagem de poder ser usadas para presentear também os nossos amigos, pois elas podem ser feitas em nome de outra pessoa – que recebe um certificado a dizer que a sua prenda está nas mãos de uma criança algures no mundo.
É evidente que isto é difícil de explicar a uma criança de três anos, mas há certamente uma idade a partir da qual estes presentes serão apreciados. E mesmo que apenas encontremos oportunidade para fazer uma destas prendas por ano, isso será melhor que nada.
Os sorrisos podem ficar um bocado mais longe, mas sabemos que eles são sinceros.
terça-feira, novembro 14, 2006
Partilhar e reutilizar
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Novembro de 2006
Crónica 40/2006
Em vez de blindar as obras, as CC permitem que o seu autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada.
A culpa, é antes de mais, da tecnologia digital. Antes do digital, cada cópia (de uma música, de um filme, de um livro) ia ficando cada vez mais ténue, mais afastada do original, cada vez com mais ruído, até se tornar pouco prática ou inútil. Não que não houvesse cópias, mas cada cópia transportava consigo uma penalização. Com o digital apareceu o paraíso da cópia igual ao original e nasceu o inferno para o copyright.
A culpa é, depois, da Internet. Com a difusão permitida pela Internet, onde todos somos editores e é fácil localizar tudo, as cópias tornaram-se banais; o acesso a material com copyright, quotidiano. Mas a Web não trouxe só a facilidade da cópia – trouxe uma maré alta de informação, de cultura, de inputs novos e constantes que veio modificar a forma como trabalhamos, como criamos, como comunicamos: a Web banalizou a reutilização da informação, sem que o quadro legal do copyright tivesse integrado esse novo paradigma.
As licenças Creative Commons, que foram ontem lançadas em Portugal, flexibilizam o conceito de copyright e vêm ajudar a ordenar um mundo onde a ilegalidade se tornou a regra.
A cópia, a reutilização, a reciclagem, o remix (como gosta de dizer o criador das Creative Commons, o jurista/filósofo/tecnólogo Lawrence Lessig) são a base da inovação e da criação na sociedade actual, mas a lei do copyright tem estado mais interessada em defender os direitos patrimoniais dos velhos autores do que em promover o aparecimento de novos criadores e de novas obras.
O problema com as leis de copyright é que elas são demasiado restritivas num mundo cuja tecnologia é muito permissiva – um mundo marcado não só pela grande rapidez nas cópias e grande fluidez na circulação de informação mas também pela possibilidade do anonimato dos utilizadores.
É esta tensão que as CC vêm resolver, de uma forma inovadora que é um ovo de Colombo: em vez de blindar as obras de autor contra o seu uso, reutilização e manipulação, as CC permitem que o autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada. E é claro que, se não quiser abdicar de direito nenhum, não tem de o fazer.
Uma das novidades das Creative Commons é que estas licenças não são uma nova lei – elas funcionam como contratos individuais, celebrados ao abrigo das leis existentes, onde cada autor define a latitude a permitir à utilização das suas obras.
Esta forma de partilha da informação e de reutilização, de remix, é usada na produção científica há séculos com excelentes resultados. Apesar de os artigos estarem protegidos por direitos de autor, no domínio da ciência considera-se que os seus dados podem (e devem) ser reutilizados por outros, que vão assim criando novas obras que vão sendo publicadas de acordo com o mesmo código de uso (e deontológico). E se alguém decidir, de repente, ganhar dinheiro com uma invenção baseada na investigação de outros, que foi difundida gratuitamente? Nesse caso, o autor da invenção deve partilhar os seus benefícios com aqueles que contribuíram para ela.
As CC não são a única experiência actual no domínio da redefinição dos direitos de autor – os movimentos de Free Software e de copyleft são os mais conhecidos – mas todas elas demonstram a necessidade e a oportunidade que a tecnologia criou de definir não apenas "novas formas de propriedade" mas novas formas de "apropriação comum" e de regular o crescente uso partilhado da informação. Estas tendências são tanto mais interessantes quanto elas vêm equilibrar novos poderes e novos quase-monopólios que a tecnologia ameaçava criar. De que forma todas estas tendências se vão articular é algo que apenas os próximos episódios dirão.
Texto publicado no jornal Público a 14 de Novembro de 2006
Crónica 40/2006
Em vez de blindar as obras, as CC permitem que o seu autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada.
A culpa, é antes de mais, da tecnologia digital. Antes do digital, cada cópia (de uma música, de um filme, de um livro) ia ficando cada vez mais ténue, mais afastada do original, cada vez com mais ruído, até se tornar pouco prática ou inútil. Não que não houvesse cópias, mas cada cópia transportava consigo uma penalização. Com o digital apareceu o paraíso da cópia igual ao original e nasceu o inferno para o copyright.
A culpa é, depois, da Internet. Com a difusão permitida pela Internet, onde todos somos editores e é fácil localizar tudo, as cópias tornaram-se banais; o acesso a material com copyright, quotidiano. Mas a Web não trouxe só a facilidade da cópia – trouxe uma maré alta de informação, de cultura, de inputs novos e constantes que veio modificar a forma como trabalhamos, como criamos, como comunicamos: a Web banalizou a reutilização da informação, sem que o quadro legal do copyright tivesse integrado esse novo paradigma.
As licenças Creative Commons, que foram ontem lançadas em Portugal, flexibilizam o conceito de copyright e vêm ajudar a ordenar um mundo onde a ilegalidade se tornou a regra.
A cópia, a reutilização, a reciclagem, o remix (como gosta de dizer o criador das Creative Commons, o jurista/filósofo/tecnólogo Lawrence Lessig) são a base da inovação e da criação na sociedade actual, mas a lei do copyright tem estado mais interessada em defender os direitos patrimoniais dos velhos autores do que em promover o aparecimento de novos criadores e de novas obras.
O problema com as leis de copyright é que elas são demasiado restritivas num mundo cuja tecnologia é muito permissiva – um mundo marcado não só pela grande rapidez nas cópias e grande fluidez na circulação de informação mas também pela possibilidade do anonimato dos utilizadores.
É esta tensão que as CC vêm resolver, de uma forma inovadora que é um ovo de Colombo: em vez de blindar as obras de autor contra o seu uso, reutilização e manipulação, as CC permitem que o autor abdique dos seus direitos de forma seleccionada. E é claro que, se não quiser abdicar de direito nenhum, não tem de o fazer.
Uma das novidades das Creative Commons é que estas licenças não são uma nova lei – elas funcionam como contratos individuais, celebrados ao abrigo das leis existentes, onde cada autor define a latitude a permitir à utilização das suas obras.
Esta forma de partilha da informação e de reutilização, de remix, é usada na produção científica há séculos com excelentes resultados. Apesar de os artigos estarem protegidos por direitos de autor, no domínio da ciência considera-se que os seus dados podem (e devem) ser reutilizados por outros, que vão assim criando novas obras que vão sendo publicadas de acordo com o mesmo código de uso (e deontológico). E se alguém decidir, de repente, ganhar dinheiro com uma invenção baseada na investigação de outros, que foi difundida gratuitamente? Nesse caso, o autor da invenção deve partilhar os seus benefícios com aqueles que contribuíram para ela.
As CC não são a única experiência actual no domínio da redefinição dos direitos de autor – os movimentos de Free Software e de copyleft são os mais conhecidos – mas todas elas demonstram a necessidade e a oportunidade que a tecnologia criou de definir não apenas "novas formas de propriedade" mas novas formas de "apropriação comum" e de regular o crescente uso partilhado da informação. Estas tendências são tanto mais interessantes quanto elas vêm equilibrar novos poderes e novos quase-monopólios que a tecnologia ameaçava criar. De que forma todas estas tendências se vão articular é algo que apenas os próximos episódios dirão.
terça-feira, novembro 07, 2006
Puxar e empurrar
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Novembro de 2006
Crónica 39/2006
O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção"
Já estamos de tal forma habituados que nem falamos disso, mas uma das características mais importantes da Web é o facto de a rede não enviar informação para ninguém que não a tenha previamente pedido. Para aceder a um site temos de escrever o seu endereço ou de clicar num link. Só depois o site envia para o nosso computador a página que pedimos. A expressão técnica para isto é tecnologia "pull" (puxar): para obter a informação que queremos é preciso "puxá-la" para o nosso computador.
A tecnologia "pull" é o oposto da tecnologia "push", que consiste em "empurrar" a informação para os clientes. A TV ou a rádio são exemplos clássicos de tecnologia "push". Toda a difusão é "push" (radiodifusão, teledifusão), ainda que isso não signifique que o utilizador seja obrigado a consumir aquilo que é empurrado para cima dele. De entre a oferta que é difundida, o consumidor pode escolher o que quer, mas é evidente que o poder de escolha que é entregue ao utilizador da Web é infinitamente maior.
É por isto que dizemos que na Web se "disponibiliza" informação (que fica quieta num servidor à espera de ser chamada pelos interessados), enquanto nos outros meios se diz que se "distribui" ou se "difunde" informação.
É, entre outros factores, a lógica "pull" da web que permite que todos sejamos editores: como não se gasta energia para empurrar a informação para todo o universo de utilizadores possíveis (à espera que um deles a use), como basta escrever um texto e depositá-lo num servidor, ficando o "custo do transporte" do lado do consumidor, isso facilita a multiplicação de produtores de informação.
Se há um domínio onde a lógica predominante continua a ser a de empurrar o produto para a frente dos olhos do consumidor, não só quando ele não o pede mas mesmo quando ele expressamente não o deseja, é o mundo da publicidade.
O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção": se queremos ver um filme na televisão, interrompem-nos o filme com anúncios; se queremos ouvir um debate na rádio, obrigam-nos a ouvir um ror de anúncios; se queremos jantar, telefonam-nos para nos convencer a mudar de banco.
Poder-se-ia definir a publicidade como a arte de obrigar o consumidor a ver algo que não quer, para o convencer a comprar algo de que não precisa. E o verdadeiro êxito consiste em forçar um cidadão a ver um anúncio o número de vezes suficiente para o levar a vomitar.
Esta violação da vontade do cidadão é alegremente tolerada com a desculpa de que se trata "da economia" e o argumento totalitário de que, se alguém não quer ver publicidade, pode não ver televisão, não ouvir rádio, nem ler jornais, não ir ao cinema e andar pela rua de olhos fechados.
O advento da Internet fez sonhar um mundo diferente: um mundo onde a publicidade passasse também a seguir a lógica "pull" e pudesse ser apresentada apenas a quem a pedisse. Isto faz tanto mais sentido quanto os consumidores gostam de publicidade (quando é bem feita), precisam dela e usam-na para os ajudar a tomar decisões de compra. A única coisa que gostariam de dispensar é a agressão, não a publicidade. Quem quer comprar um carro não dispensa os anúncios de carros e quem se interessa por tecnologia (mesmo que não vá comprar um computador) folheia com prazer e proveito os anúncios de informática. A promessa de uma publicidade civilizada, porém, está ainda por cumprir. A publicidade online está a ganhar terreno, crescendo a bom ritmo, mas, apesar da tecnologia permitir formas inteligentes de promoção de bens e serviços, as fórmulas mais usadas repetem as receitas agressivas e pouco interessantes dos outros suportes e o "permission marketing" (onde se pergunta aos clientes que publicidade querem receber) é ainda uma miragem. Mas, da mesma maneira que a Web representou uma revolução, pelo poder que deu aos consumidores de informação, há uma revolução a ganhar para os anunciantes que comecem a tratar os consumidores como seres pensantes.
Texto publicado no jornal Público a 7 de Novembro de 2006
Crónica 39/2006
O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção"
Já estamos de tal forma habituados que nem falamos disso, mas uma das características mais importantes da Web é o facto de a rede não enviar informação para ninguém que não a tenha previamente pedido. Para aceder a um site temos de escrever o seu endereço ou de clicar num link. Só depois o site envia para o nosso computador a página que pedimos. A expressão técnica para isto é tecnologia "pull" (puxar): para obter a informação que queremos é preciso "puxá-la" para o nosso computador.
A tecnologia "pull" é o oposto da tecnologia "push", que consiste em "empurrar" a informação para os clientes. A TV ou a rádio são exemplos clássicos de tecnologia "push". Toda a difusão é "push" (radiodifusão, teledifusão), ainda que isso não signifique que o utilizador seja obrigado a consumir aquilo que é empurrado para cima dele. De entre a oferta que é difundida, o consumidor pode escolher o que quer, mas é evidente que o poder de escolha que é entregue ao utilizador da Web é infinitamente maior.
É por isto que dizemos que na Web se "disponibiliza" informação (que fica quieta num servidor à espera de ser chamada pelos interessados), enquanto nos outros meios se diz que se "distribui" ou se "difunde" informação.
É, entre outros factores, a lógica "pull" da web que permite que todos sejamos editores: como não se gasta energia para empurrar a informação para todo o universo de utilizadores possíveis (à espera que um deles a use), como basta escrever um texto e depositá-lo num servidor, ficando o "custo do transporte" do lado do consumidor, isso facilita a multiplicação de produtores de informação.
Se há um domínio onde a lógica predominante continua a ser a de empurrar o produto para a frente dos olhos do consumidor, não só quando ele não o pede mas mesmo quando ele expressamente não o deseja, é o mundo da publicidade.
O paradigma vigente no mundo da publicidade é o do "marketing de interrupção": se queremos ver um filme na televisão, interrompem-nos o filme com anúncios; se queremos ouvir um debate na rádio, obrigam-nos a ouvir um ror de anúncios; se queremos jantar, telefonam-nos para nos convencer a mudar de banco.
Poder-se-ia definir a publicidade como a arte de obrigar o consumidor a ver algo que não quer, para o convencer a comprar algo de que não precisa. E o verdadeiro êxito consiste em forçar um cidadão a ver um anúncio o número de vezes suficiente para o levar a vomitar.
Esta violação da vontade do cidadão é alegremente tolerada com a desculpa de que se trata "da economia" e o argumento totalitário de que, se alguém não quer ver publicidade, pode não ver televisão, não ouvir rádio, nem ler jornais, não ir ao cinema e andar pela rua de olhos fechados.
O advento da Internet fez sonhar um mundo diferente: um mundo onde a publicidade passasse também a seguir a lógica "pull" e pudesse ser apresentada apenas a quem a pedisse. Isto faz tanto mais sentido quanto os consumidores gostam de publicidade (quando é bem feita), precisam dela e usam-na para os ajudar a tomar decisões de compra. A única coisa que gostariam de dispensar é a agressão, não a publicidade. Quem quer comprar um carro não dispensa os anúncios de carros e quem se interessa por tecnologia (mesmo que não vá comprar um computador) folheia com prazer e proveito os anúncios de informática. A promessa de uma publicidade civilizada, porém, está ainda por cumprir. A publicidade online está a ganhar terreno, crescendo a bom ritmo, mas, apesar da tecnologia permitir formas inteligentes de promoção de bens e serviços, as fórmulas mais usadas repetem as receitas agressivas e pouco interessantes dos outros suportes e o "permission marketing" (onde se pergunta aos clientes que publicidade querem receber) é ainda uma miragem. Mas, da mesma maneira que a Web representou uma revolução, pelo poder que deu aos consumidores de informação, há uma revolução a ganhar para os anunciantes que comecem a tratar os consumidores como seres pensantes.
terça-feira, outubro 31, 2006
Basta chover
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Outubro de 2006
Crónica 38/2006
Os mais compassivos passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro.
Quando chove, a rua é um lago. Não é um lago, é um rio. O lago é ao fundo da rua, no cruzamento. É preciso dar uma volta pela rua de cima, ou entrar na água resolutamente quase até ao joelho. Quem tem botas altas de borracha às vezes consegue passar, se não fizer ondas, devagar, e se conseguir não sair de cima do passeio submerso. Mas se vier a passar um autocarro nesse momento...
A rua de cima não está inundada, mas como é inclinada a água escorre rápida pelo passeio num manto que chega às meias e aos pés. Ao menos a água do passeio parece limpa. Na valeta corre um rio acastanhado. Apesar da água e dos carros há quem prefira ir pelo meio da faixa de rodagem, onde a água já empurra pedras, folhas e cascalho. É menos escorregadia que o passeio de pedras polidas.
A paragem de autocarro tem um telhado pequeno que serve para fazer sombra nos dias de sol, mas nos dias de chuva é inútil. É difícil dizer se se está mais protegido da chuva debaixo do abrigo ou cá fora. Lá dentro há os pingos grossos que escorrem dos guarda-chuvas, os casacos molhados dos outros, a chuva que entra numa cortina por entre os vidros e, quando nos distraímos, o algeroz do abrigo, que despeja água como um garrafão. Cá fora há umas árvores que deixam passar a chuva mas pelo menos não têm goteiras. O problema são os carros que passam. Há os que passam depressa, atirando uma toalha de água suja e pesada que chega à altura da cintura, e os mais compassivos, que passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro. Não há alternativa. Não se pode pedir aos carros que andem a passo de enterro só para não molhar os peões. Há quem desça o guarda-chuva para os pés quando passa um carro, mas acontece como à proverbial manta: quando tapa os pés descobre a cabeça.
O mais difícil são as crianças. É difícil ter uma criança ao colo num dia de chuva? E uma ao colo e outra pela mão? Com as mochilas? E um guarda-chuva na mão? Na paragem do autocarro? Com os carros que passam a regar os pés e o ocasional fio de água a entrar pelo pescoço? E ao fim do dia, quando a criança ao colo dorme, a outra se arrasta, e às mochilas se soma o saco das compras? A grande dúvida nestes casos é o que se deve fazer com o guarda-chuva.
Dentro do autocarro o ar está pesado de humidade e os assentos são escassos. Os guarda-chuvas molhados escorrem para dentro dos sapatos, os sacos molhados têm de ficar em cima dos joelhos, as crianças empilham-se sobre as mochilas e as lancheiras. Um casaco de malha cai no chão enlameado. Tem de ir para lavar, com este tempo. O ar desolado e cansado de todos faz lembrar as fotos de refugiados. Até o ar de resignação de alguns. Aqui, pelo menos, não chove. As crianças desenham nas janelas embaciadas.
Lá fora as sarjetas fazem o contrário do que deviam fazer: lançam água aos borbotões para a rua. Os carros passam pelo autocarro mas já não atiram água para os pés dos que lá estão. Quem está sentado à janela do autocarro pode ver o interior dos carros, lá em baixo. O interior dos carros parece seco e arrumado.
O sonho de todos os que estão no autocarro é um carro. Um carro onde as crianças possam ir no banco de trás, as mochilas amontoadas no banco da frente, os guarda-chuvas molhados no chão, ao lado dos sacos das compras. Um carro onde passem horas no trânsito, ao abrigo da chuva, atrás dos limpa pára-brisas, e onde os únicos momentos difíceis seja a trasfega das crianças da escola para o carro e do carro para casa. É verdade que não dá para sair de casa mais tarde, mas é outro conforto. Assim basta chover para que o dia se transforme num inferno. O cansaço e as crianças e as mochilas ficam mais pesados com a chuva. Vamos lá ver se não entrou água em casa. Só faltava acabar o dia de esfregona em punho. Ontem diziam na televisão que se deve andar de transportes públicos. Devia ser um desses que vai ali num carro.
Texto publicado no jornal Público a 31 de Outubro de 2006
Crónica 38/2006
Os mais compassivos passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro.
Quando chove, a rua é um lago. Não é um lago, é um rio. O lago é ao fundo da rua, no cruzamento. É preciso dar uma volta pela rua de cima, ou entrar na água resolutamente quase até ao joelho. Quem tem botas altas de borracha às vezes consegue passar, se não fizer ondas, devagar, e se conseguir não sair de cima do passeio submerso. Mas se vier a passar um autocarro nesse momento...
A rua de cima não está inundada, mas como é inclinada a água escorre rápida pelo passeio num manto que chega às meias e aos pés. Ao menos a água do passeio parece limpa. Na valeta corre um rio acastanhado. Apesar da água e dos carros há quem prefira ir pelo meio da faixa de rodagem, onde a água já empurra pedras, folhas e cascalho. É menos escorregadia que o passeio de pedras polidas.
A paragem de autocarro tem um telhado pequeno que serve para fazer sombra nos dias de sol, mas nos dias de chuva é inútil. É difícil dizer se se está mais protegido da chuva debaixo do abrigo ou cá fora. Lá dentro há os pingos grossos que escorrem dos guarda-chuvas, os casacos molhados dos outros, a chuva que entra numa cortina por entre os vidros e, quando nos distraímos, o algeroz do abrigo, que despeja água como um garrafão. Cá fora há umas árvores que deixam passar a chuva mas pelo menos não têm goteiras. O problema são os carros que passam. Há os que passam depressa, atirando uma toalha de água suja e pesada que chega à altura da cintura, e os mais compassivos, que passam devagar e apenas banham os pés dos que esperam o autocarro. Não há alternativa. Não se pode pedir aos carros que andem a passo de enterro só para não molhar os peões. Há quem desça o guarda-chuva para os pés quando passa um carro, mas acontece como à proverbial manta: quando tapa os pés descobre a cabeça.
O mais difícil são as crianças. É difícil ter uma criança ao colo num dia de chuva? E uma ao colo e outra pela mão? Com as mochilas? E um guarda-chuva na mão? Na paragem do autocarro? Com os carros que passam a regar os pés e o ocasional fio de água a entrar pelo pescoço? E ao fim do dia, quando a criança ao colo dorme, a outra se arrasta, e às mochilas se soma o saco das compras? A grande dúvida nestes casos é o que se deve fazer com o guarda-chuva.
Dentro do autocarro o ar está pesado de humidade e os assentos são escassos. Os guarda-chuvas molhados escorrem para dentro dos sapatos, os sacos molhados têm de ficar em cima dos joelhos, as crianças empilham-se sobre as mochilas e as lancheiras. Um casaco de malha cai no chão enlameado. Tem de ir para lavar, com este tempo. O ar desolado e cansado de todos faz lembrar as fotos de refugiados. Até o ar de resignação de alguns. Aqui, pelo menos, não chove. As crianças desenham nas janelas embaciadas.
Lá fora as sarjetas fazem o contrário do que deviam fazer: lançam água aos borbotões para a rua. Os carros passam pelo autocarro mas já não atiram água para os pés dos que lá estão. Quem está sentado à janela do autocarro pode ver o interior dos carros, lá em baixo. O interior dos carros parece seco e arrumado.
O sonho de todos os que estão no autocarro é um carro. Um carro onde as crianças possam ir no banco de trás, as mochilas amontoadas no banco da frente, os guarda-chuvas molhados no chão, ao lado dos sacos das compras. Um carro onde passem horas no trânsito, ao abrigo da chuva, atrás dos limpa pára-brisas, e onde os únicos momentos difíceis seja a trasfega das crianças da escola para o carro e do carro para casa. É verdade que não dá para sair de casa mais tarde, mas é outro conforto. Assim basta chover para que o dia se transforme num inferno. O cansaço e as crianças e as mochilas ficam mais pesados com a chuva. Vamos lá ver se não entrou água em casa. Só faltava acabar o dia de esfregona em punho. Ontem diziam na televisão que se deve andar de transportes públicos. Devia ser um desses que vai ali num carro.
terça-feira, outubro 24, 2006
Défice democrático
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Outubro de 2006
Crónica 37/2006
Não se compreende nem se aceita que os políticos apenas saibam gerir o confronto recorrendo à chantagem ou à polícia.
Na semana passada, o secretário de Estado Adjunto e da Educação, Jorge Pedreira, declarou a disponibilidade do Ministério da Educação para continuar a discutir o Estatuto da Carreira Docente com os sindicatos e mesmo para fazer algumas cedências nessa matéria que considerava aceitáveis, desde que os professores pusessem fim ao "clima de conflitualidade" e às suas "acções de luta".
Também na semana passada, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, decidiu gerir o conflito com uma companhia de teatro que fez um "sit-in" no Rivoli, em defesa da manutenção da gestão pública daquele teatro, recusando-se a manter qualquer diálogo com os manifestantes, cortando-lhes a electricidade e a água, baixando a temperatura do teatro para vencer os manifestantes pelo frio e fechando-lhes as portas de forma a impedir o seu contacto com o exterior. Os manifestantes acabariam por ser evacuados de madrugada pela polícia (sem oferecer resistência) depois de mais de três dias de ocupação.
Ambos os episódios são exemplos de como os políticos portugueses continuam a conviver mal com o confronto democrático e a contestação e de como o seu sentimento de autoridade é tão frágil que receiam pô-lo em causa caso enveredem por uma simples discussão com os seus críticos. Se no caso do "sit-in" do Rivoli se podia invocar o (débil) argumento da legalidade (ainda que os sit-ins, manifestações pacíficas, tenham uma honrosa genealogia que vai de Gandhi ao movimento dos direitos cívicos americano), no caso das manifestações e protestos dos professores nem esse existia – o que não impediu o secretário de Estado de tentar a sua jogada autocrática e censória.
Um amigo dizia-me há dias que em Portugal não é possível ter uma boa discussão – nem sequer entre amigos. As pessoas fogem do confronto, sentem-se mal perante as diferenças de opinião e levam as opiniões tão a peito que sentem as diferenças como afrontas que ferem os sentimentos mais do que excitam a razão e que podem danificar amizades sem com isso aprofundar a verdade. Por isso, disfarçam as diferenças até cair no falso consenso. A maior parte das discussões acaba à nascença, com o "Ah, mas eu não acho nada disso" que devia ser o sinal de partida para uma viva troca de argumentos.
Que os portugueses comuns fujam da discussão como o Diabo da Cruz, enfim. O que não se compreende nem se aceita é que os políticos apenas saibam gerir o confronto político recorrendo à chantagem ou à polícia.
Numa democracia liberal, o confronto das ideias e a negociação entre interesses legítimos é central ao processo de decisão. E pagamos aos políticos (entre outras coisas) para que eles participem nesse confronto de ideias, discutam, ouçam e depois decidam e executem. Esse confronto deveria, aliás, ser bem-vindo pelos políticos, já que ele estimula a participação democrática e contribui para o esclarecimento. Que esse confronto de ideias se realize num pano de fundo de conflitualidade social (com manifestações, greves e sit-ins) é um dos preços da democracia.
Se um político tiver a pele tão fina que não suporte participar nessa discussão deve abster-se de se apresentar ao povo como governante ou autarca. E, se considera que esse confronto de ideias deve ser reprimido pela força, não tem lugar num sistema democrático. Os políticos deveriam, pelo contrário, agradecer estas oportunidades, mediáticas por natureza, de explicar a bondade das suas políticas aos seus concidadãos. A utilização da força e da chantagem sugerem, com razão ou sem ela, que não possuem argumentos para apresentar ou que receiam o escrutínio do debate público.
A lamentável declaração de Jorge Pedreira é inaceitável em democracia e deveria ter sido objecto de um pedido de desculpas e de uma demissão. E o gesto de Rui Rio é mais um sinal da autoritária insegurança a que o autarca do Porto já nos habituou.
Texto publicado no jornal Público a 24 de Outubro de 2006
Crónica 37/2006
Não se compreende nem se aceita que os políticos apenas saibam gerir o confronto recorrendo à chantagem ou à polícia.
Na semana passada, o secretário de Estado Adjunto e da Educação, Jorge Pedreira, declarou a disponibilidade do Ministério da Educação para continuar a discutir o Estatuto da Carreira Docente com os sindicatos e mesmo para fazer algumas cedências nessa matéria que considerava aceitáveis, desde que os professores pusessem fim ao "clima de conflitualidade" e às suas "acções de luta".
Também na semana passada, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, decidiu gerir o conflito com uma companhia de teatro que fez um "sit-in" no Rivoli, em defesa da manutenção da gestão pública daquele teatro, recusando-se a manter qualquer diálogo com os manifestantes, cortando-lhes a electricidade e a água, baixando a temperatura do teatro para vencer os manifestantes pelo frio e fechando-lhes as portas de forma a impedir o seu contacto com o exterior. Os manifestantes acabariam por ser evacuados de madrugada pela polícia (sem oferecer resistência) depois de mais de três dias de ocupação.
Ambos os episódios são exemplos de como os políticos portugueses continuam a conviver mal com o confronto democrático e a contestação e de como o seu sentimento de autoridade é tão frágil que receiam pô-lo em causa caso enveredem por uma simples discussão com os seus críticos. Se no caso do "sit-in" do Rivoli se podia invocar o (débil) argumento da legalidade (ainda que os sit-ins, manifestações pacíficas, tenham uma honrosa genealogia que vai de Gandhi ao movimento dos direitos cívicos americano), no caso das manifestações e protestos dos professores nem esse existia – o que não impediu o secretário de Estado de tentar a sua jogada autocrática e censória.
Um amigo dizia-me há dias que em Portugal não é possível ter uma boa discussão – nem sequer entre amigos. As pessoas fogem do confronto, sentem-se mal perante as diferenças de opinião e levam as opiniões tão a peito que sentem as diferenças como afrontas que ferem os sentimentos mais do que excitam a razão e que podem danificar amizades sem com isso aprofundar a verdade. Por isso, disfarçam as diferenças até cair no falso consenso. A maior parte das discussões acaba à nascença, com o "Ah, mas eu não acho nada disso" que devia ser o sinal de partida para uma viva troca de argumentos.
Que os portugueses comuns fujam da discussão como o Diabo da Cruz, enfim. O que não se compreende nem se aceita é que os políticos apenas saibam gerir o confronto político recorrendo à chantagem ou à polícia.
Numa democracia liberal, o confronto das ideias e a negociação entre interesses legítimos é central ao processo de decisão. E pagamos aos políticos (entre outras coisas) para que eles participem nesse confronto de ideias, discutam, ouçam e depois decidam e executem. Esse confronto deveria, aliás, ser bem-vindo pelos políticos, já que ele estimula a participação democrática e contribui para o esclarecimento. Que esse confronto de ideias se realize num pano de fundo de conflitualidade social (com manifestações, greves e sit-ins) é um dos preços da democracia.
Se um político tiver a pele tão fina que não suporte participar nessa discussão deve abster-se de se apresentar ao povo como governante ou autarca. E, se considera que esse confronto de ideias deve ser reprimido pela força, não tem lugar num sistema democrático. Os políticos deveriam, pelo contrário, agradecer estas oportunidades, mediáticas por natureza, de explicar a bondade das suas políticas aos seus concidadãos. A utilização da força e da chantagem sugerem, com razão ou sem ela, que não possuem argumentos para apresentar ou que receiam o escrutínio do debate público.
A lamentável declaração de Jorge Pedreira é inaceitável em democracia e deveria ter sido objecto de um pedido de desculpas e de uma demissão. E o gesto de Rui Rio é mais um sinal da autoritária insegurança a que o autarca do Porto já nos habituou.
terça-feira, outubro 17, 2006
Fácil, barato e justo
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Outubro de 2006
Crónica 36/2006
Seria interessante que, aproveitando o élan deste Nobel da Paz, os bancos decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados.
É uma piada mas também é verdade: para obter um empréstimo de um banco, é preciso demonstrar primeiro que não se precisa do dinheiro.
Se se precisa mesmo de dinheiro (principalmente se se trata de criar uma pequena empresa e principalmente se não se puder oferecer a hipoteca da casa como garantia), o mais provável é não o obter. E nem vale a pena imaginar as hipóteses de um pobre, desempregado, obter um empréstimo junto de um banco tradicional. Mesmo que seja para comprar uma caixa de ferramentas para poder ir trabalhar. Os empréstimos não são para os pobres.
A genial ideia de Muhammad Yunus, o criador do microcrédito, a quem acaba de ser concedido um mais que merecido Prémio Nobel da Paz, esteve em fazer exactamente o contrário do que as instituições de crédito tradicionais fazem: antes de mais, acreditar nas pessoas (na sua capacidade e na sua honestidade); em segundo lugar, não exigir garantias senão a palavra dos credores; em terceiro lugar, emprestar aos pobres (e, em particular, às mulheres, que têm no êxito do microcrédito um papel central).
O Banco Grameen é uma exaltante história de combate à pobreza e à exclusão que já emprestou 4.500 milhões de euros a 6,6 milhões de pobres, tendo mudado radicalmente a vida de muitos. E o exemplo frutificou: o Banco Mundial diz que o microcrédito já beneficiou 500 milhões de pessoas em todo o mundo, com uma particular incidência na Ásia.
Estes números ganham toda a sua dimensão quando pensamos que 1200 milhões de pessoas (uma em cada seis) vive com menos de 80 cêntimos de euro (um dólar) por dia e que outras 2700 milhões de pessoas vive com menos de 1,6 euros (dois dólares) por dia.
O microcrédito não é apenas para os países pobres e tem presença em muitos países desenvolvidos – onde os pobres abundam e onde o fosso entre os mais pobres e os mais ricos tem aliás aumentado.
Em Portugal, foi criada em 1998 a Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), instituição promotora do microcrédito, da qual são membros fundadores, além de vários indivíduos, as duas maiores instituições financeiras portuguesas: o Banco Comercial Português (BCP) e a Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Segundo o site desta associação, foram concedidos desde o início da sua actividade "615 empréstimos (que criaram 711 empregos)" representando um total de "2.686.724 € de crédito concedido".
É possível que haja outras instituições de crédito portuguesas com linhas de microcrédito que a ANDC ignore ou não contabilize. Seja como for, penso que se pode dizer sem receio de errar que os números de microcrédito em Portugal são extremamente reduzidos. E só não se pode dizer que sejam insignificantes porque, para as escassas centenas que beneficiaram deles, eles foram certamente significativos.
Eles são porém certamente irrelevantes do ponto de vista das duas instituições financeiras em questão (já para não falar do conjunto dos bancos portugueses), quando comparados com os seus activos, o total de créditos concedidos, os seus lucros ou qualquer outro indicador.
Comemora-se hoje o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Seria interessante que, em comemoração da data, em nome daqueles objectivos de Desenvolvimento Sustentável com que as personalidades bem-pensantes recheiam as suas intervenções públicas, em nome dos princípios de Responsabilidade Social das Empresas que os empresários modernos gostam de citar e aproveitando o élan deste Nobel da Paz, cuja iniciativa tantos exaltaram, as instituições de crédito – a começar pelos sócios fundadores ANDC, o BCP e a CGD – decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados, àqueles que querem criar o seu emprego e não têm como.
Seria possível dedicar a esse objectivo um milésimo do total de crédito? Um décimo milésimo?
Seria fácil fazê-lo, seria barato (não se trata de donativos, mas de empréstimos que são reembolsados!) e seria um gesto concreto de combate à pobreza e pelo desenvolvimento.
Texto publicado no jornal Público a 17 de Outubro de 2006
Crónica 36/2006
Seria interessante que, aproveitando o élan deste Nobel da Paz, os bancos decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados.
É uma piada mas também é verdade: para obter um empréstimo de um banco, é preciso demonstrar primeiro que não se precisa do dinheiro.
Se se precisa mesmo de dinheiro (principalmente se se trata de criar uma pequena empresa e principalmente se não se puder oferecer a hipoteca da casa como garantia), o mais provável é não o obter. E nem vale a pena imaginar as hipóteses de um pobre, desempregado, obter um empréstimo junto de um banco tradicional. Mesmo que seja para comprar uma caixa de ferramentas para poder ir trabalhar. Os empréstimos não são para os pobres.
A genial ideia de Muhammad Yunus, o criador do microcrédito, a quem acaba de ser concedido um mais que merecido Prémio Nobel da Paz, esteve em fazer exactamente o contrário do que as instituições de crédito tradicionais fazem: antes de mais, acreditar nas pessoas (na sua capacidade e na sua honestidade); em segundo lugar, não exigir garantias senão a palavra dos credores; em terceiro lugar, emprestar aos pobres (e, em particular, às mulheres, que têm no êxito do microcrédito um papel central).
O Banco Grameen é uma exaltante história de combate à pobreza e à exclusão que já emprestou 4.500 milhões de euros a 6,6 milhões de pobres, tendo mudado radicalmente a vida de muitos. E o exemplo frutificou: o Banco Mundial diz que o microcrédito já beneficiou 500 milhões de pessoas em todo o mundo, com uma particular incidência na Ásia.
Estes números ganham toda a sua dimensão quando pensamos que 1200 milhões de pessoas (uma em cada seis) vive com menos de 80 cêntimos de euro (um dólar) por dia e que outras 2700 milhões de pessoas vive com menos de 1,6 euros (dois dólares) por dia.
O microcrédito não é apenas para os países pobres e tem presença em muitos países desenvolvidos – onde os pobres abundam e onde o fosso entre os mais pobres e os mais ricos tem aliás aumentado.
Em Portugal, foi criada em 1998 a Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), instituição promotora do microcrédito, da qual são membros fundadores, além de vários indivíduos, as duas maiores instituições financeiras portuguesas: o Banco Comercial Português (BCP) e a Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Segundo o site desta associação, foram concedidos desde o início da sua actividade "615 empréstimos (que criaram 711 empregos)" representando um total de "2.686.724 € de crédito concedido".
É possível que haja outras instituições de crédito portuguesas com linhas de microcrédito que a ANDC ignore ou não contabilize. Seja como for, penso que se pode dizer sem receio de errar que os números de microcrédito em Portugal são extremamente reduzidos. E só não se pode dizer que sejam insignificantes porque, para as escassas centenas que beneficiaram deles, eles foram certamente significativos.
Eles são porém certamente irrelevantes do ponto de vista das duas instituições financeiras em questão (já para não falar do conjunto dos bancos portugueses), quando comparados com os seus activos, o total de créditos concedidos, os seus lucros ou qualquer outro indicador.
Comemora-se hoje o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Seria interessante que, em comemoração da data, em nome daqueles objectivos de Desenvolvimento Sustentável com que as personalidades bem-pensantes recheiam as suas intervenções públicas, em nome dos princípios de Responsabilidade Social das Empresas que os empresários modernos gostam de citar e aproveitando o élan deste Nobel da Paz, cuja iniciativa tantos exaltaram, as instituições de crédito – a começar pelos sócios fundadores ANDC, o BCP e a CGD – decidissem dedicar uma percentagem do seu crédito aos menos afortunados, àqueles que querem criar o seu emprego e não têm como.
Seria possível dedicar a esse objectivo um milésimo do total de crédito? Um décimo milésimo?
Seria fácil fazê-lo, seria barato (não se trata de donativos, mas de empréstimos que são reembolsados!) e seria um gesto concreto de combate à pobreza e pelo desenvolvimento.
terça-feira, outubro 10, 2006
O cigarro em cativeiro
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Outubro de 2006
Crónica 35/2006
O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender.
Entre as muitas razões para ter começado a fumar, na minha adolescência (além da pressão dos pares e da vontade de adquirir a aparência madura que não tinha), está sem dúvida a escrita. A minha escrita e a dos outros – ou seja, a minha leitura. Escrever foi durante muitos anos uma actividade indissociável do cigarro, e a reflexão e a discussão algo indissociável do fumo.
A associação do cigarro à escrita deve-se a muitos livros e a muitos nomes, mas entre eles os de Camus e Sartre estão em lugar de destaque. Não consigo evocar uma imagem deles sem um cigarro na mão (existem fotografias, eu sei) e o facto de partilharem esse vício era a prova da ligação íntima entre a criação literária, a prática intelectual e política e o acto de fumar.
Além de Camus e de Sartre há outra figura que merece lugar no panteão de responsáveis do meu tabagismo: Somerset Maugham, que eu tinha devorado na colecção dos Livros do Brasil, onde ele aparecia (a fumar) na contracapa, a encimar uma pequena biografia onde se dizia que a sua mãe era uma "senhora de rara beleza". Nessa fotografia Somerset aparecia com um cigarro na mão levantada, numa pose "à escritor", a olhar sonhadoramente para cima, com a mente no Olimpo da criação, e o fumo do seu cigarro divide-se em dois, desenhando na fotografia uma andorinha branca.
Se houve uma imagem que me fez começar a fumar, foi essa. Se houve um exemplo que me levou a continuar a fumar e a fazer a dura travessia de noviço a dependente, foi o de Camus e de Sartre.
Além do cigarro, a escrita esteve durante muitos anos ligada a outro elemento, tão importante como o terceiro pé do tripé: o café. Não a bebida, mas o lugar. O lugar do ruído, do bulício, das pessoas que se cruzam num pano de fundo sempre diferente, do fumo dos outros e lugar do encontro. O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender. Lugar de introversão e espectáculo, só o café fornece mil oportunidades por segundo de saltar para dentro e para fora da nossa cabeça.
Se há cidade onde esta associação entre vida intelectual, cafés e tabaco está viva, é Paris. Paris é a cidade dos cafés e os intelectuais franceses fumam quase como imagem de marca – apesar do antitabagismo também aí dar passos largos. É por isso que é especialmente significativo o anúncio, feito pelo Governo francês, de que, a partir de Fevereiro de 2007, será proibido fumar em locais públicos em geral e que, um ano depois, a proibição se alargará a cafés, restaurantes, bares e discotecas.
Para alguém que poluiu a sua quota-parte de cafés e frequentadores de cafés, a notícia tem um sabor a fin-de-siècle. Fin de siècle não porque ela seja um exemplo de elegante desesperança ou de decadência em si, mas porque nesta higiénica recusa da decadência há, inelutavelmente, algo que se perde.
Devo dizer que não contesto o fundo da medida, ainda que pense que algo menos radical pudesse proteger igualmente a saúde pública (espaços isolados reservados para fumadores, com sistemas de extracção de fumo mais eficazes). O fumo do tabaco é algo que é comprovadamente pernicioso e ninguém tem o direito de expor os outros a algo que prejudica a sua saúde. Os argumentos sobre a liberdade dos fumadores não têm aqui cabimento pois o que se proíbe é que alguém injecte fumo nos pulmões dos outros e não nos seus próprios. É chato para os fumadores? Chatíssimo. Mas os benefícios para os fumadores passivos justificam o incómodo para os fumadores activos.
Mas o que esta medida (que se anuncia para Portugal) simbolicamente consegue fazer é cortar mais um laço entre o cigarro e a criação intelectual, retirá-lo daquilo que para mim era o seu habitat para o colocar num jardim zoológico, atrás de um vidro. Não sei se o cigarro conseguirá reproduzir-se em cativeiro. Duvido que a figura de Somerset a dar umas passas rápidas atrás de uma divisória de vidro me tivesse conseguido fazer sonhar.
Texto publicado no jornal Público a 10 de Outubro de 2006
Crónica 35/2006
O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender.
Entre as muitas razões para ter começado a fumar, na minha adolescência (além da pressão dos pares e da vontade de adquirir a aparência madura que não tinha), está sem dúvida a escrita. A minha escrita e a dos outros – ou seja, a minha leitura. Escrever foi durante muitos anos uma actividade indissociável do cigarro, e a reflexão e a discussão algo indissociável do fumo.
A associação do cigarro à escrita deve-se a muitos livros e a muitos nomes, mas entre eles os de Camus e Sartre estão em lugar de destaque. Não consigo evocar uma imagem deles sem um cigarro na mão (existem fotografias, eu sei) e o facto de partilharem esse vício era a prova da ligação íntima entre a criação literária, a prática intelectual e política e o acto de fumar.
Além de Camus e de Sartre há outra figura que merece lugar no panteão de responsáveis do meu tabagismo: Somerset Maugham, que eu tinha devorado na colecção dos Livros do Brasil, onde ele aparecia (a fumar) na contracapa, a encimar uma pequena biografia onde se dizia que a sua mãe era uma "senhora de rara beleza". Nessa fotografia Somerset aparecia com um cigarro na mão levantada, numa pose "à escritor", a olhar sonhadoramente para cima, com a mente no Olimpo da criação, e o fumo do seu cigarro divide-se em dois, desenhando na fotografia uma andorinha branca.
Se houve uma imagem que me fez começar a fumar, foi essa. Se houve um exemplo que me levou a continuar a fumar e a fazer a dura travessia de noviço a dependente, foi o de Camus e de Sartre.
Além do cigarro, a escrita esteve durante muitos anos ligada a outro elemento, tão importante como o terceiro pé do tripé: o café. Não a bebida, mas o lugar. O lugar do ruído, do bulício, das pessoas que se cruzam num pano de fundo sempre diferente, do fumo dos outros e lugar do encontro. O recolhimento do café não é comparável a nenhum outro e só quem o sentiu o pode compreender. Lugar de introversão e espectáculo, só o café fornece mil oportunidades por segundo de saltar para dentro e para fora da nossa cabeça.
Se há cidade onde esta associação entre vida intelectual, cafés e tabaco está viva, é Paris. Paris é a cidade dos cafés e os intelectuais franceses fumam quase como imagem de marca – apesar do antitabagismo também aí dar passos largos. É por isso que é especialmente significativo o anúncio, feito pelo Governo francês, de que, a partir de Fevereiro de 2007, será proibido fumar em locais públicos em geral e que, um ano depois, a proibição se alargará a cafés, restaurantes, bares e discotecas.
Para alguém que poluiu a sua quota-parte de cafés e frequentadores de cafés, a notícia tem um sabor a fin-de-siècle. Fin de siècle não porque ela seja um exemplo de elegante desesperança ou de decadência em si, mas porque nesta higiénica recusa da decadência há, inelutavelmente, algo que se perde.
Devo dizer que não contesto o fundo da medida, ainda que pense que algo menos radical pudesse proteger igualmente a saúde pública (espaços isolados reservados para fumadores, com sistemas de extracção de fumo mais eficazes). O fumo do tabaco é algo que é comprovadamente pernicioso e ninguém tem o direito de expor os outros a algo que prejudica a sua saúde. Os argumentos sobre a liberdade dos fumadores não têm aqui cabimento pois o que se proíbe é que alguém injecte fumo nos pulmões dos outros e não nos seus próprios. É chato para os fumadores? Chatíssimo. Mas os benefícios para os fumadores passivos justificam o incómodo para os fumadores activos.
Mas o que esta medida (que se anuncia para Portugal) simbolicamente consegue fazer é cortar mais um laço entre o cigarro e a criação intelectual, retirá-lo daquilo que para mim era o seu habitat para o colocar num jardim zoológico, atrás de um vidro. Não sei se o cigarro conseguirá reproduzir-se em cativeiro. Duvido que a figura de Somerset a dar umas passas rápidas atrás de uma divisória de vidro me tivesse conseguido fazer sonhar.
terça-feira, outubro 03, 2006
As reformas dos outros
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Outubro de 2006
Crónica 34/2006
Há quem considere que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal.
Existem, relativamente à Segurança Social, duas grandes posições de princípio. De um lado, os que consideram que a Segurança Social é um mecanismo estrutural de solidariedade social e que os seus descontos de hoje se destinam a assegurar as necessidades dos seus concidadãos mais frágeis (idosos, doentes, desempregados), na certeza de que, quando eles próprios se encontrarem em situação de fragilidade, os seus concidadãos estarão disponíveis para os ajudar financeiramente.
De outro lado, os que consideram que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal, que estão dispostos a desembolsar mensalmente apenas devido à certeza de que, quando necessitarem, poderão utilizar essa reserva que constituíram e que esperam que o Estado tenha gerido sabiamente de forma a ter aumentado o seu pecúlio.
Os primeiros preocupam-se com a garantia de que, no momento em que dela necessitarem, a Segurança Social terá receitas suficientes (o que significa, entre outras coisas, contribuintes suficientes) para prover às suas necessidades.
Os segundos são os que costumam comparar a "performance financeira" dos seus descontos com o rendimento de Fundos de Investimento privados e que sonham com o dia em que possam deixar de pagar a "reforma dos outros" para confiar exclusivamente na sua capacidade de investimento para se sustentarem na velhice e na doença.
Hoje em dia, pode dizer-se que, em linhas gerais, a primeira posição representa a esquerda do espectro político e a segunda a direita – mas essa linha divisória está longe de ser clara. Isto tanto mais quanto o estado social nasceu no pós-guerra de uma aliança entre a esquerda socialista e a democracia cristã – ainda que ambas cheguem ao conceito da solidariedade a partir de pontos diversos e com escopos não coincidentes.
Se aceitarmos um puro princípio mutualista, de associação para partilha de risco e socorro mútuo, podemos considerar que não há um problema financeiro na segurança social. A segurança social partilha o que há – quando há.
A questão é que a solidariedade transgeracional (os novos que trabalham pagam as pensões dos velhos que não trabalham) tem de se guiar também por princípios de equidade transgeracional: não é justo que pessoas que trabalharam e contribuíram da mesma maneira, recebam benefícios completamente diferentes apenas porque nasceram com trinta anos de intervalo. O problema de equidade transgeracional pode ser suavizado com a constituição de fundos de reserva que guardem vacas gordas para os anos magros – mas a situação de duas gerações pode ser financeiramente tão diferente que nenhuma reserva seja suficiente para evitar a iniquidade.
Numa situação em que há um problema de financiamento do sistema que se agrava por razões demográficas, é evidente que se deve tentar agir sobre esse factor (o que o Governo não faz), promovendo a natalidade. Mas é evidente que se deve também promover o valor (e demonstrar a utilidade) da solidariedade.
Neste momento, a investida da direita neoliberal e das empresas que exploram o ramo consiste em tentar convencer os mais ricos a investir em esquemas privados com apelos ao egoísmo e ataques ao estado social (os "ciganos do rendimento mínimo"). E, enquanto esse ataque se faz por todos os meios do marketing empresarial, o Estado social responde apenas no pouco glamoroso plano político.
Há fortes razões (solidárias e egoístas, religiosas e económicas, políticas e éticas, humanitárias e pragmáticas) para defender o Estado social. Mas é preciso que o Estado e os cidadãos para quem a solidariedade é um valor central, o façam pelo menos com a mesma convicção dos seus inimigos.
Texto publicado no jornal Público a 3 de Outubro de 2006
Crónica 34/2006
Há quem considere que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal.
Existem, relativamente à Segurança Social, duas grandes posições de princípio. De um lado, os que consideram que a Segurança Social é um mecanismo estrutural de solidariedade social e que os seus descontos de hoje se destinam a assegurar as necessidades dos seus concidadãos mais frágeis (idosos, doentes, desempregados), na certeza de que, quando eles próprios se encontrarem em situação de fragilidade, os seus concidadãos estarão disponíveis para os ajudar financeiramente.
De outro lado, os que consideram que os seus descontos para a Segurança Social são uma espécie de poupança pessoal, que estão dispostos a desembolsar mensalmente apenas devido à certeza de que, quando necessitarem, poderão utilizar essa reserva que constituíram e que esperam que o Estado tenha gerido sabiamente de forma a ter aumentado o seu pecúlio.
Os primeiros preocupam-se com a garantia de que, no momento em que dela necessitarem, a Segurança Social terá receitas suficientes (o que significa, entre outras coisas, contribuintes suficientes) para prover às suas necessidades.
Os segundos são os que costumam comparar a "performance financeira" dos seus descontos com o rendimento de Fundos de Investimento privados e que sonham com o dia em que possam deixar de pagar a "reforma dos outros" para confiar exclusivamente na sua capacidade de investimento para se sustentarem na velhice e na doença.
Hoje em dia, pode dizer-se que, em linhas gerais, a primeira posição representa a esquerda do espectro político e a segunda a direita – mas essa linha divisória está longe de ser clara. Isto tanto mais quanto o estado social nasceu no pós-guerra de uma aliança entre a esquerda socialista e a democracia cristã – ainda que ambas cheguem ao conceito da solidariedade a partir de pontos diversos e com escopos não coincidentes.
Se aceitarmos um puro princípio mutualista, de associação para partilha de risco e socorro mútuo, podemos considerar que não há um problema financeiro na segurança social. A segurança social partilha o que há – quando há.
A questão é que a solidariedade transgeracional (os novos que trabalham pagam as pensões dos velhos que não trabalham) tem de se guiar também por princípios de equidade transgeracional: não é justo que pessoas que trabalharam e contribuíram da mesma maneira, recebam benefícios completamente diferentes apenas porque nasceram com trinta anos de intervalo. O problema de equidade transgeracional pode ser suavizado com a constituição de fundos de reserva que guardem vacas gordas para os anos magros – mas a situação de duas gerações pode ser financeiramente tão diferente que nenhuma reserva seja suficiente para evitar a iniquidade.
Numa situação em que há um problema de financiamento do sistema que se agrava por razões demográficas, é evidente que se deve tentar agir sobre esse factor (o que o Governo não faz), promovendo a natalidade. Mas é evidente que se deve também promover o valor (e demonstrar a utilidade) da solidariedade.
Neste momento, a investida da direita neoliberal e das empresas que exploram o ramo consiste em tentar convencer os mais ricos a investir em esquemas privados com apelos ao egoísmo e ataques ao estado social (os "ciganos do rendimento mínimo"). E, enquanto esse ataque se faz por todos os meios do marketing empresarial, o Estado social responde apenas no pouco glamoroso plano político.
Há fortes razões (solidárias e egoístas, religiosas e económicas, políticas e éticas, humanitárias e pragmáticas) para defender o Estado social. Mas é preciso que o Estado e os cidadãos para quem a solidariedade é um valor central, o façam pelo menos com a mesma convicção dos seus inimigos.
terça-feira, setembro 26, 2006
Privacidade
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Setembro de 2006
Crónica 33/2006
Muitas pessoas olham para estes excessos com resignação, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso.
1. Faça uma pesquisa no Google. Verá aparecer na parte de cima da sua página e na barra da direita uma série de links identificados pela fórmula "Links patrocinados".
Estes links remetem para sites relacionados com aquilo que pesquisou e o seu aparecimento obedece às regras da publicidade. Tudo o que o anunciante tem de fazer é escolher a expressão ou expressões a que pretende associar o seu site. Uma pastelaria que pretenda anunciar no Google pode, por exemplo, escolher a expressão "chá e torradas" de forma que, sempre que alguém a escreve na caixa de pesquisa, o nome da pastelaria apareça nos Links patrocinados.
A tecnologia enriquece a pesquisa pois oferece ao utilizador, para além dos resultados que satisfazem exactamente os termos da sua pesquisa, uma colecção de links relacionados que podem ser interessantes. E oferece aos anunciantes, por outro lado, um público-alvo que já se inclui numa faixa de interessados pela sua actividade. Um casamento perfeito.
2. Abra uma conta no Gmail (o serviço gratuito de correio electrónico do Google). Verá que, ao lado da sua caixa de mail, aparece igualmente uma coluna de "Links patrocinados" que, curiosamente, têm também alguma coisa a ver com o teor das suas mensagens. São também links de anunciantes que escolheram determinadas expressões e que a mesma tecnologia do Google consegue associar a determinadas mensagens.
Nas suas páginas de Ajuda, o Google garante que "o Google NÃO lê a sua correspondência".
Como é que faz então? A explicação vem na linha seguinte: trata-se de "um processo totalmente automatizado". Não há ninguém no Google a ler a sua correspondência, mas há um programa que a lê e que pesquisa os termos relevantes para poder associar a uma mensagem sobre automóveis um anúncio de gasolina e a uma declaração de amor o link de uma florista.
3. O programa secreto de escutas sem autorização judicial que a National Security Agency lançou nos Estados Unidos por ordem do presidente George W. Bush, que monitoriza correio electrónico e telefonemas, recorre também a tecnologia semelhante. Os telefonemas são ouvidos por programas que conseguem identificar os indivíduos que incluam na mesma chamada expressões como "Bush" e "bomba", mas não existe uma batalhão de pessoas a ouvir as chamadas. O facto permite que os defensores do programa (cuja existência só recentemente e relutantemente foi reconhecida pela Casa Branca) digam que não se trata de um programa de escutas. O programa de intercepção de comunicações Echelon, lançado pelos EUA e pela Grã-Bretanha, faz a mesma coisa a nível mundial.
4. O sociólogo espanhol e teórico da Sociedade da Informação Manuel Castells já tinha alertado para o fim da privacidade na Era da Internet, mas o que sucede é que um número considerável de pessoas olha para estes excessos com resignação, como se eles fossem inerentes à tecnologia, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso e não houvesse escolha possível no seu controlo. A ameaça terrorista, por outro lado, veio reforçar a convicção da bondade da redução das liberdades individuais quando está em causa a segurança.
5. Seja em nome do marketing (que promete adequar a oferta publicitária aos nossos desejos se permitirmos o escrutínio da nossa vida pessoal) ou da segurança (que nos jura que o escrutínio da vida pessoal dos cidadãos é essencial à identificação dos terroristas) a verdade é que a invasão da vida privada está em curso. Por ignorância, comodidade ou crença na absoluta benevolência das autoridades, os cidadãos têm permitido que essa vigilância se alargue. E, por espantoso que pareça, o facto de essa invasão estar em grande medida a ser realizada por robôs constitui um descanso para muita gente, como se os robôs não fossem os mais obedientes servidores do poder.
Texto publicado no jornal Público a 26 de Setembro de 2006
Crónica 33/2006
Muitas pessoas olham para estes excessos com resignação, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso.
1. Faça uma pesquisa no Google. Verá aparecer na parte de cima da sua página e na barra da direita uma série de links identificados pela fórmula "Links patrocinados".
Estes links remetem para sites relacionados com aquilo que pesquisou e o seu aparecimento obedece às regras da publicidade. Tudo o que o anunciante tem de fazer é escolher a expressão ou expressões a que pretende associar o seu site. Uma pastelaria que pretenda anunciar no Google pode, por exemplo, escolher a expressão "chá e torradas" de forma que, sempre que alguém a escreve na caixa de pesquisa, o nome da pastelaria apareça nos Links patrocinados.
A tecnologia enriquece a pesquisa pois oferece ao utilizador, para além dos resultados que satisfazem exactamente os termos da sua pesquisa, uma colecção de links relacionados que podem ser interessantes. E oferece aos anunciantes, por outro lado, um público-alvo que já se inclui numa faixa de interessados pela sua actividade. Um casamento perfeito.
2. Abra uma conta no Gmail (o serviço gratuito de correio electrónico do Google). Verá que, ao lado da sua caixa de mail, aparece igualmente uma coluna de "Links patrocinados" que, curiosamente, têm também alguma coisa a ver com o teor das suas mensagens. São também links de anunciantes que escolheram determinadas expressões e que a mesma tecnologia do Google consegue associar a determinadas mensagens.
Nas suas páginas de Ajuda, o Google garante que "o Google NÃO lê a sua correspondência".
Como é que faz então? A explicação vem na linha seguinte: trata-se de "um processo totalmente automatizado". Não há ninguém no Google a ler a sua correspondência, mas há um programa que a lê e que pesquisa os termos relevantes para poder associar a uma mensagem sobre automóveis um anúncio de gasolina e a uma declaração de amor o link de uma florista.
3. O programa secreto de escutas sem autorização judicial que a National Security Agency lançou nos Estados Unidos por ordem do presidente George W. Bush, que monitoriza correio electrónico e telefonemas, recorre também a tecnologia semelhante. Os telefonemas são ouvidos por programas que conseguem identificar os indivíduos que incluam na mesma chamada expressões como "Bush" e "bomba", mas não existe uma batalhão de pessoas a ouvir as chamadas. O facto permite que os defensores do programa (cuja existência só recentemente e relutantemente foi reconhecida pela Casa Branca) digam que não se trata de um programa de escutas. O programa de intercepção de comunicações Echelon, lançado pelos EUA e pela Grã-Bretanha, faz a mesma coisa a nível mundial.
4. O sociólogo espanhol e teórico da Sociedade da Informação Manuel Castells já tinha alertado para o fim da privacidade na Era da Internet, mas o que sucede é que um número considerável de pessoas olha para estes excessos com resignação, como se eles fossem inerentes à tecnologia, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso e não houvesse escolha possível no seu controlo. A ameaça terrorista, por outro lado, veio reforçar a convicção da bondade da redução das liberdades individuais quando está em causa a segurança.
5. Seja em nome do marketing (que promete adequar a oferta publicitária aos nossos desejos se permitirmos o escrutínio da nossa vida pessoal) ou da segurança (que nos jura que o escrutínio da vida pessoal dos cidadãos é essencial à identificação dos terroristas) a verdade é que a invasão da vida privada está em curso. Por ignorância, comodidade ou crença na absoluta benevolência das autoridades, os cidadãos têm permitido que essa vigilância se alargue. E, por espantoso que pareça, o facto de essa invasão estar em grande medida a ser realizada por robôs constitui um descanso para muita gente, como se os robôs não fossem os mais obedientes servidores do poder.
terça-feira, setembro 19, 2006
Todos os fogos
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Setembro de 2006
Crónica 32/2006
Um papa incendiário ou imprudente não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
1. Se fosse apenas um teólogo entre outros, Ratzinger poderia falar do que lhe apetecesse, no tom que lhe apetecesse, citando quem lhe apetecesse. Dá-se porém a circunstância de Ratzinger ser não só uma autoridade da Igreja Católica mas o seu Sumo Pontífice. Investido desta autoridade, deste poder espiritual e político e desta capacidade de representação, é evidente que o papa Bento XVI não pode dizer o que disse em Ratisbona.
As suas palavras, se foram medidas, mostram-nos um papa calculistamente incendiário e apostado em alimentar e liderar um conflito de religiões. Se não o foram, mostram um papa imprudente e que ainda não percebeu que deixou para sempre de ser professor de teologia, o que não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
Com esta intervenção, Bento XVI perdeu (junto das outras comunidades religiosas e também entre os católicos) uma parte da autoridade que deveria pelo contrário preocupar-se em reforçar por todos os meios, de forma a constituir-se como um elemento de racionalização e apaziguamento na relação entre religiões. Se houve altura em que esse diálogo se mostrou necessário, esta é certamente uma delas.
Posto isto, é evidente por outro lado que a reacção de uma parte do mundo muçulmano, traduzida em ameaças e agressões, não é de forma alguma admissível – mesmo que se faça das palavras do Papa a leitura menos benevolente.
É evidente que existe um problema com o Islão que não tem a ver com a mensagem do Alcorão (na Bíblia também é possível encontrar mensagens para todos os gostos) ou com a história de Maomé (também há protagonistas bíblicos para todos os gostos), mas com a manutenção de uma interpretação retrógrada, fundamentalista e agressiva do Islão que possui em muitos países e regiões do mundo islâmico uma posição predominante. É evidente que isso também existiu no mundo cristão – as conversões à espadeirada, os massacres de "infiéis", os autos-de-fé e a Inquisição (cuja versão modernizada Ratzinger dirigiu) são páginas negras da história "ocidental" e é verdade que continua a haver quem faça do cristianismo uma leitura retrógrada, fundamentalista e agressiva (certos evangelistas norte-americanos são um exemplo). Mas a diferença é que essas leituras totalitárias cristãs não são hoje hegemónicas (o diabo seja surdo) e, acima de tudo, existe uma avalanche de vozes "ocidentais" que as condenam - na política, nos media, na academia, nas próprias igrejas. Falta ouvir essa avalancha no mundo muçulmano.
2. A jornalista italiana Oriana Fallaci, que morreu na semana passada e que foi – apesar dos seus inúmeros destemperos – uma corajosa defensora da liberdade, considerava o fundamentalismo islâmico o novo nazismo.
É importante compreender que, de facto, o fundamentalismo islâmico - teocrático, totalitário, imperialista, segregacionista, bélico e terrorista – constitui uma ameaça à democracia e à liberdade e que neste confronto não se deve ceder um milímetro do essencial em nome do medo ou da má consciência. Para dar um exemplo concreto: é inaceitável que a situação de inferioridade de mulheres muçulmanas seja aceite nas sociedades ocidentais em nome do multiculturalismo, da aceitação da diferença ou do respeito religioso.
Só que, muitas vezes, alguns dos que defendem a firmeza na defesa dos valores da liberdade, apressam-se a meter no mesmo saco dos fundamentalistas todos os muçulmanos e todos os árabes e, já agora, aqueles que são mais morenos que a conta.
É importante ter em conta, por outro lado, que em nome da firmeza, não se pode pôr de lado a acção política e deixar de tentar compreender o fenómeno do terrorismo para erradicar as suas causas e para dissolver a base de recrutamento dos terroristas.
Entre estas duas posições (defesa da liberdade e da igualdade, respeito da diferença e acção política contra o terrorismo), inscreve-se um carreiro que se vai estreitando, onde cada vez é mais difícil caminhar, de onde é fácil cair para um lado ou para o outro e onde a companhia é cada vez mais escassa.
Texto publicado no jornal Público a 19 de Setembro de 2006
Crónica 32/2006
Um papa incendiário ou imprudente não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
1. Se fosse apenas um teólogo entre outros, Ratzinger poderia falar do que lhe apetecesse, no tom que lhe apetecesse, citando quem lhe apetecesse. Dá-se porém a circunstância de Ratzinger ser não só uma autoridade da Igreja Católica mas o seu Sumo Pontífice. Investido desta autoridade, deste poder espiritual e político e desta capacidade de representação, é evidente que o papa Bento XVI não pode dizer o que disse em Ratisbona.
As suas palavras, se foram medidas, mostram-nos um papa calculistamente incendiário e apostado em alimentar e liderar um conflito de religiões. Se não o foram, mostram um papa imprudente e que ainda não percebeu que deixou para sempre de ser professor de teologia, o que não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.
Com esta intervenção, Bento XVI perdeu (junto das outras comunidades religiosas e também entre os católicos) uma parte da autoridade que deveria pelo contrário preocupar-se em reforçar por todos os meios, de forma a constituir-se como um elemento de racionalização e apaziguamento na relação entre religiões. Se houve altura em que esse diálogo se mostrou necessário, esta é certamente uma delas.
Posto isto, é evidente por outro lado que a reacção de uma parte do mundo muçulmano, traduzida em ameaças e agressões, não é de forma alguma admissível – mesmo que se faça das palavras do Papa a leitura menos benevolente.
É evidente que existe um problema com o Islão que não tem a ver com a mensagem do Alcorão (na Bíblia também é possível encontrar mensagens para todos os gostos) ou com a história de Maomé (também há protagonistas bíblicos para todos os gostos), mas com a manutenção de uma interpretação retrógrada, fundamentalista e agressiva do Islão que possui em muitos países e regiões do mundo islâmico uma posição predominante. É evidente que isso também existiu no mundo cristão – as conversões à espadeirada, os massacres de "infiéis", os autos-de-fé e a Inquisição (cuja versão modernizada Ratzinger dirigiu) são páginas negras da história "ocidental" e é verdade que continua a haver quem faça do cristianismo uma leitura retrógrada, fundamentalista e agressiva (certos evangelistas norte-americanos são um exemplo). Mas a diferença é que essas leituras totalitárias cristãs não são hoje hegemónicas (o diabo seja surdo) e, acima de tudo, existe uma avalanche de vozes "ocidentais" que as condenam - na política, nos media, na academia, nas próprias igrejas. Falta ouvir essa avalancha no mundo muçulmano.
2. A jornalista italiana Oriana Fallaci, que morreu na semana passada e que foi – apesar dos seus inúmeros destemperos – uma corajosa defensora da liberdade, considerava o fundamentalismo islâmico o novo nazismo.
É importante compreender que, de facto, o fundamentalismo islâmico - teocrático, totalitário, imperialista, segregacionista, bélico e terrorista – constitui uma ameaça à democracia e à liberdade e que neste confronto não se deve ceder um milímetro do essencial em nome do medo ou da má consciência. Para dar um exemplo concreto: é inaceitável que a situação de inferioridade de mulheres muçulmanas seja aceite nas sociedades ocidentais em nome do multiculturalismo, da aceitação da diferença ou do respeito religioso.
Só que, muitas vezes, alguns dos que defendem a firmeza na defesa dos valores da liberdade, apressam-se a meter no mesmo saco dos fundamentalistas todos os muçulmanos e todos os árabes e, já agora, aqueles que são mais morenos que a conta.
É importante ter em conta, por outro lado, que em nome da firmeza, não se pode pôr de lado a acção política e deixar de tentar compreender o fenómeno do terrorismo para erradicar as suas causas e para dissolver a base de recrutamento dos terroristas.
Entre estas duas posições (defesa da liberdade e da igualdade, respeito da diferença e acção política contra o terrorismo), inscreve-se um carreiro que se vai estreitando, onde cada vez é mais difícil caminhar, de onde é fácil cair para um lado ou para o outro e onde a companhia é cada vez mais escassa.
terça-feira, setembro 12, 2006
Cinco anos de ataque
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Setembro de 2006
Crónica 31/2006
O terror pode ser potenciado pela atitude dos atacados. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
A revista "The Atlantic" deste mês tem um artigo de capa com o título "We Win" ("Ganhamos"), da autoria de James Fallows, um reputado jornalista americano.
O artigo é sobre a "guerra contra o terrorismo" e Fallows tenta fazer um balanço dos cinco anos de actividade dos Estados Unidos nesta frente desde o 11 de Setembro.
O título do artigo é justificado por dois factos: desde o 11 de Setembro os Estados Unidos não voltaram a ser atacados pela Al Qaeda e as capacidades operacionais de Osama Bin Laden são hoje nulas ou perto disso.
Fallows passa em revista várias áreas de intervenção da administração americana (para isso entrevistou cerca de sessenta peritos em diferentes áreas, incluindo os autores de alguns dos livros mais relevantes publicados sobre a matéria nos EUA) mas, apesar dos seus esforços, não consegue encontrar nenhuma outra razão para proclamar vitória.
Tudo o resto (da intervenção no Afeganistão à invasão do Iraque, da evolução da economia aos direitos humanos, da vida quotidiana dos americanos à autoridade moral dos EUA no mundo) apresenta, na opinião dos entrevistados de Fallows, um balanço predominantemente negativo.
É, aliás, precisamente essa a razão da proposta de Fallows: "Como é que os Estados Unidos podem escapar a esta armadilha?", escreve o jornalista. "Declarando, simplesmente, que a 'guerra global contra o terror' acabou, e que nós ganhámos".
Ou seja: os EUA devem declarar que ganharam a "guerra contra o terrorismo" porque já controlaram tudo o que podia ser controlado – a Al Qaeda Central (leia-se Bin Laden) – e porque todos os seus esforços para além disso estão a ter efeitos perniciosos em termos políticos, sociais, de segurança e económicos. Na realidade o autor defende que se anuncie vitória precisamente porque se está a perder e porque a continuação da guerra só vai piorar as coisas.
A armadilha de que Fallows fala é a resposta americana ao terrorismo, cujos resultados avalia de forma tragicamente negativa. E, se sairmos do universo dos grupos radicais que apoiam George W. Bush ou daqueles que beneficiam directamente da sua política, esta é a opinião mais moderada que se pode encontrar.
Como a palavra indica, o terrorismo visa aterrorizar – mas o terror pode ser potenciado ou reduzido pelas atitudes dos atacados. E a política de Bush potenciou o terror. Que o país tenha sido invadido por sistemas de segurança, que os bolseiros oriundos de países muçulmanos tenham passado a ser indesejados, que o racismo tenha aumentado, que os direitos cívicos sejam atropelados, que as prisões secretas e a tortura sejam aceites como necessários, que a lei marcial se tenha banalizado, que a lei internacional seja atropelada, são vitórias do terrorismo. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
Os cinco anos depois do 11 de Setembro têm um balanço negro, mas por demonstrarem como a democracia pode ser facilmente posta em risco, mesmo num país com os pergaminhos dos Estados Unidos. Não são esquerdistas a dizê-lo (como alguns querem fazer crer) mas democratas de todas as áreas. Em Março passado, a antiga Juíza do Supremo Tribunal americano Sandra Day O'Connor, republicana, considerou as liberdades constitucionais dos EUA em risco – e alertou para o facto de que é assim que começam as ditaduras. Vozes dissidentes que alertam para os perigos que espreitam as liberdades, a democracia e o direito ecoam hoje aos milhares nos EUA.
Os EUA poderiam ter tido a sua "finest hour" no pós-11 de Setembro mas, apesar do heroísmo da parte de cidadãos anónimos, os líderes americanos ficaram aquém do que se tinha o direito de esperar. É sintomático e triste que, cinco anos volvidos, a maior parte das atenções estejam concentradas nas mentiras não esclarecidas da administração Bush e que dúvidas continuem a persistir sobre aspectos essenciais do próprio 11 de Setembro. A sociedade aberta está sob ataque.
Texto publicado no jornal Público a 12 de Setembro de 2006
Crónica 31/2006
O terror pode ser potenciado pela atitude dos atacados. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
A revista "The Atlantic" deste mês tem um artigo de capa com o título "We Win" ("Ganhamos"), da autoria de James Fallows, um reputado jornalista americano.
O artigo é sobre a "guerra contra o terrorismo" e Fallows tenta fazer um balanço dos cinco anos de actividade dos Estados Unidos nesta frente desde o 11 de Setembro.
O título do artigo é justificado por dois factos: desde o 11 de Setembro os Estados Unidos não voltaram a ser atacados pela Al Qaeda e as capacidades operacionais de Osama Bin Laden são hoje nulas ou perto disso.
Fallows passa em revista várias áreas de intervenção da administração americana (para isso entrevistou cerca de sessenta peritos em diferentes áreas, incluindo os autores de alguns dos livros mais relevantes publicados sobre a matéria nos EUA) mas, apesar dos seus esforços, não consegue encontrar nenhuma outra razão para proclamar vitória.
Tudo o resto (da intervenção no Afeganistão à invasão do Iraque, da evolução da economia aos direitos humanos, da vida quotidiana dos americanos à autoridade moral dos EUA no mundo) apresenta, na opinião dos entrevistados de Fallows, um balanço predominantemente negativo.
É, aliás, precisamente essa a razão da proposta de Fallows: "Como é que os Estados Unidos podem escapar a esta armadilha?", escreve o jornalista. "Declarando, simplesmente, que a 'guerra global contra o terror' acabou, e que nós ganhámos".
Ou seja: os EUA devem declarar que ganharam a "guerra contra o terrorismo" porque já controlaram tudo o que podia ser controlado – a Al Qaeda Central (leia-se Bin Laden) – e porque todos os seus esforços para além disso estão a ter efeitos perniciosos em termos políticos, sociais, de segurança e económicos. Na realidade o autor defende que se anuncie vitória precisamente porque se está a perder e porque a continuação da guerra só vai piorar as coisas.
A armadilha de que Fallows fala é a resposta americana ao terrorismo, cujos resultados avalia de forma tragicamente negativa. E, se sairmos do universo dos grupos radicais que apoiam George W. Bush ou daqueles que beneficiam directamente da sua política, esta é a opinião mais moderada que se pode encontrar.
Como a palavra indica, o terrorismo visa aterrorizar – mas o terror pode ser potenciado ou reduzido pelas atitudes dos atacados. E a política de Bush potenciou o terror. Que o país tenha sido invadido por sistemas de segurança, que os bolseiros oriundos de países muçulmanos tenham passado a ser indesejados, que o racismo tenha aumentado, que os direitos cívicos sejam atropelados, que as prisões secretas e a tortura sejam aceites como necessários, que a lei marcial se tenha banalizado, que a lei internacional seja atropelada, são vitórias do terrorismo. Neste particular, Bush cumpriu à risca os planos de Bin Laden.
Os cinco anos depois do 11 de Setembro têm um balanço negro, mas por demonstrarem como a democracia pode ser facilmente posta em risco, mesmo num país com os pergaminhos dos Estados Unidos. Não são esquerdistas a dizê-lo (como alguns querem fazer crer) mas democratas de todas as áreas. Em Março passado, a antiga Juíza do Supremo Tribunal americano Sandra Day O'Connor, republicana, considerou as liberdades constitucionais dos EUA em risco – e alertou para o facto de que é assim que começam as ditaduras. Vozes dissidentes que alertam para os perigos que espreitam as liberdades, a democracia e o direito ecoam hoje aos milhares nos EUA.
Os EUA poderiam ter tido a sua "finest hour" no pós-11 de Setembro mas, apesar do heroísmo da parte de cidadãos anónimos, os líderes americanos ficaram aquém do que se tinha o direito de esperar. É sintomático e triste que, cinco anos volvidos, a maior parte das atenções estejam concentradas nas mentiras não esclarecidas da administração Bush e que dúvidas continuem a persistir sobre aspectos essenciais do próprio 11 de Setembro. A sociedade aberta está sob ataque.
terça-feira, setembro 05, 2006
Pior que o Bin Laden
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Setembro de 2006
Crónica 30/2006
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar"
O relato desfiava uma série de acidentes de percurso e vicissitudes num pano de fundo de fricções com diferentes instituições e autoridades, onde se misturavam descrições de abusos de poder, de pequenas infâmias e médias corrupções, papéis entregues fora de prazo, repartições kafkianas, acordos orais desrespeitados e taxas inesperadas.
O motorista de táxi contava as peripécias num fluxo furioso ininterrupto, como se falasse para si próprio, entrecortado com os habituais remoques "Vocês é que deviam pôr estas coisas nos jornais", "Era bom era que isto se soubesse".
"Isto" não era porém fácil de identificar e menos ainda de denunciar. Apareciam uns "eles" que por vezes eram a Câmara, outras a polícia, outras os fornecedores ou os credores e o relato não era sempre claro. O facto é que o homem culpava algumas das mais representativas instituições da vida democrática e económica de serem responsáveis por ter sido obrigado a abandonar o seu pequeno negócio, um quiosque, que tinha inicialmente passado para a sua mão através de um contrato de subaluguer aparentemente irregular que ele não tinha conseguido regularizar apesar de pressões e promessas várias. Alguns dos pormenores eram inverosímeis - informações erradas dadas por diversas instituições, garantias privadas de funcionários que se vieram a revelar irrealizáveis, prazos impossíveis de cumprir, etc. Mas como sabe qualquer pessoa que se tenha cruzado com a burocracia desmiolada de algumas organizações, inverosímil está longe de querer dizer falso.
"Sabe o que é eu gostava?" Não sabia, mas a resposta não foi inesperada: "O que eu gostava era de ganhar o Euromilhões!". Mas antes que tivesse tempo de responder que com um prémio do Euromilhões se pode de facto comprar um belo quiosque...
"Se eu ganhasse o Euromilhões, era ainda pior que o Bin Laden... Estes gajos todos haviam de ver... havia de rebentar com eles todos à bomba." A voz tinha subido de tom e o rubor de intensidade. "Era mais terrorista que a Al-Qaeda. Eles haviam de ver! O Bin Laden ainda é bom para eles".
A cólera não permitia águas na fervura do género "de facto, isso é muito chato, mas o importante...". Deixei o gás sair até chegar ao destino, reagindo com um mínimo de monossílabos, mas o fervor radical não tinha diminuído mesmo depois da corrida paga.
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar. O Bin Laden, esse pode, porque é rico! Mas eu tenho de andar aqui o dia todo agarrado à roda para ganhar o sustento. Mas se eu tivesse dinheiro... ai se eu tivesse dinheiro, o terrorista que eu não havia de ser!" Não havia um fio de ironia na voz.
Que as circunstâncias fazem o terrorista já se sabe, mas era a primeira vez que me tinha cruzado com uma vocação tão fervorosa frustrada pela falta de dinheiro e com uma utilização tão original de um prémio do Euromilhões. Era a primeira vez que me cruzava com alguém que só não era terrorista porque não tinha dinheiro para isso.
Fiquei com pena de que a conversa não tivesse sido ouvida pelos muitos comentadores políticos cujo fanático determinismo histórico os leva a considerar que a explicação das causas de um comportamento equivale a uma justificação moral desse comportamento. O que o meu taxista demonstrava era que a frustração (seja qual for a causa) pode dar origem a comportamentos de agressividade difusa (o que Wilhelm Reich explica aliás de forma interessante num velho texto sobre o esquerdismo) e que não espanta que alguém que se sente perseguido, humilhado, acossado e sem saída, responda com a agressividade que tiver à mão. No caso do meu taxista, por enquanto, é a peroração sanguínea, mas se ele ganhar o Euromilhões...
Texto publicado no jornal Público a 5 de Setembro de 2006
Crónica 30/2006
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar"
O relato desfiava uma série de acidentes de percurso e vicissitudes num pano de fundo de fricções com diferentes instituições e autoridades, onde se misturavam descrições de abusos de poder, de pequenas infâmias e médias corrupções, papéis entregues fora de prazo, repartições kafkianas, acordos orais desrespeitados e taxas inesperadas.
O motorista de táxi contava as peripécias num fluxo furioso ininterrupto, como se falasse para si próprio, entrecortado com os habituais remoques "Vocês é que deviam pôr estas coisas nos jornais", "Era bom era que isto se soubesse".
"Isto" não era porém fácil de identificar e menos ainda de denunciar. Apareciam uns "eles" que por vezes eram a Câmara, outras a polícia, outras os fornecedores ou os credores e o relato não era sempre claro. O facto é que o homem culpava algumas das mais representativas instituições da vida democrática e económica de serem responsáveis por ter sido obrigado a abandonar o seu pequeno negócio, um quiosque, que tinha inicialmente passado para a sua mão através de um contrato de subaluguer aparentemente irregular que ele não tinha conseguido regularizar apesar de pressões e promessas várias. Alguns dos pormenores eram inverosímeis - informações erradas dadas por diversas instituições, garantias privadas de funcionários que se vieram a revelar irrealizáveis, prazos impossíveis de cumprir, etc. Mas como sabe qualquer pessoa que se tenha cruzado com a burocracia desmiolada de algumas organizações, inverosímil está longe de querer dizer falso.
"Sabe o que é eu gostava?" Não sabia, mas a resposta não foi inesperada: "O que eu gostava era de ganhar o Euromilhões!". Mas antes que tivesse tempo de responder que com um prémio do Euromilhões se pode de facto comprar um belo quiosque...
"Se eu ganhasse o Euromilhões, era ainda pior que o Bin Laden... Estes gajos todos haviam de ver... havia de rebentar com eles todos à bomba." A voz tinha subido de tom e o rubor de intensidade. "Era mais terrorista que a Al-Qaeda. Eles haviam de ver! O Bin Laden ainda é bom para eles".
A cólera não permitia águas na fervura do género "de facto, isso é muito chato, mas o importante...". Deixei o gás sair até chegar ao destino, reagindo com um mínimo de monossílabos, mas o fervor radical não tinha diminuído mesmo depois da corrida paga.
"A sorte deles é que eu tenho contas para pagar e uma família para sustentar. O Bin Laden, esse pode, porque é rico! Mas eu tenho de andar aqui o dia todo agarrado à roda para ganhar o sustento. Mas se eu tivesse dinheiro... ai se eu tivesse dinheiro, o terrorista que eu não havia de ser!" Não havia um fio de ironia na voz.
Que as circunstâncias fazem o terrorista já se sabe, mas era a primeira vez que me tinha cruzado com uma vocação tão fervorosa frustrada pela falta de dinheiro e com uma utilização tão original de um prémio do Euromilhões. Era a primeira vez que me cruzava com alguém que só não era terrorista porque não tinha dinheiro para isso.
Fiquei com pena de que a conversa não tivesse sido ouvida pelos muitos comentadores políticos cujo fanático determinismo histórico os leva a considerar que a explicação das causas de um comportamento equivale a uma justificação moral desse comportamento. O que o meu taxista demonstrava era que a frustração (seja qual for a causa) pode dar origem a comportamentos de agressividade difusa (o que Wilhelm Reich explica aliás de forma interessante num velho texto sobre o esquerdismo) e que não espanta que alguém que se sente perseguido, humilhado, acossado e sem saída, responda com a agressividade que tiver à mão. No caso do meu taxista, por enquanto, é a peroração sanguínea, mas se ele ganhar o Euromilhões...
terça-feira, agosto 29, 2006
A memória de Grass
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Agosto de 2006
Crónica 30/2006
É indesmentível que a omissão deste episódio nos relatos da vida de Grass deve ser criticada.
A propósito da recente divulgação pelo escritor Günter Grass da sua participação nas Waffen-SS quando jovem, não faltou quem considerasse o silêncio que o escritor manteve durante sessenta anos sobre este episódio da sua vida como uma falta particularmente grave devido ao facto de Grass sempre ter insistido no dever de memória do povo alemão em relação ao nazismo.
Para estes críticos, a diferença manifestada entre prédica e prática por Grass seria o sinal de uma descarada hipocrisia que demonstraria a absoluta falta de autoridade moral do homem e do escritor.
No entanto, como este tipo de reacção veio principalmente de quem não demonstra grande simpatia pelas posições políticas do escritor, é difícil acreditar na total boa-fé desses comentários.
Por outras palavras: é difícil acreditar que, se Grass sempre tivesse defendido o esquecimento e o perdão em relação ao nazismo, os actuais moralizadores não vissem no episódio Waffen-SS a raiz secreta dessa atitude e não condenassem o escritor com uma particular veemência por defender uma posição pretensamente moral apenas para benefício próprio e lavagem da sua própria história. Numa terceira hipótese, se o escritor sempre tivesse contornado o tema do nazismo na sua obra e na sua acção cívica (o que teria sido difícil para um escritor alemão nascido em 1927), é igualmente difícil acreditar que os actuais críticos não o condenassem também de uma forma particularmente viva precisamente por isso, vendo nessa omissão uma forma interesseira de camuflar a mancha vergonhosa da sua folha militar.
Posto isto, é indesmentível que a atitude de Grass é criticável. A omissão deste episódio nos relatos da sua vida é uma mentira e deve ser como tal criticada. A questão aqui é o grau que deve merecer essa crítica - e não saber se o apreço que nos merece o escritor deve ser ou não posto em causa, nem outras bizarrices como discutir se ele deveria devolver o Nobel ou outras distinções literárias.
Essa avaliação não deve esquecer, porém, que é prática comum omitir dos relatos de vida ou dos currículos profissionais os episódios menos brilhantes e que isso apenas é criticável neste caso por se tratar de uma figura com uma actividade pública directamente relacionada com o assunto do episódio escamoteado.
A razão apresentada por Grass para o segredo é clara: a vergonha. Quando se tornou evidente para si o significado das Waffen SS e do próprio regime nazi (que era público e notório que apenas tinha surgido no espírito de Grass depois do fim da guerra), o sentimento que lhe ficou da sua adesão e da sua passagem por aquele corpo foi de vergonha – e escondeu-o até o conseguir admitir publicamente.
Repito que o acto é criticável, porque a mentira é moralmente criticável – Kant já deu os argumentos – mas a razão é compreensível e humana. E é de notar que tenha sido o próprio Grass a confessar a sua falta - que é, esclareça-se, a sua omissão do episódio e não o episódio em si, que dificilmente se pode considerar que tenha tido lugar em situação de consentimento informado.
O que me parece importante realçar nesta história, porém, não é a oposição que existe entre o segredo de Grass e a sua defesa da necessidade de encarar o passado, mas a forte relação que também existe entre ambos os factos. Essa necessidade, que Grass coloca na primeira linha do dever cívico e moral, foi claramente sentida pelo escritor de uma forma particularmente dolorosa e pessoal, como hoje percebemos. E não se pode deixar de ver na confissão agora feita e na sua militância pelo dever de memória como uma atitude de onde não está ausente um acto pessoal de contrição.
Texto publicado no jornal Público a 29 de Agosto de 2006
Crónica 30/2006
É indesmentível que a omissão deste episódio nos relatos da vida de Grass deve ser criticada.
A propósito da recente divulgação pelo escritor Günter Grass da sua participação nas Waffen-SS quando jovem, não faltou quem considerasse o silêncio que o escritor manteve durante sessenta anos sobre este episódio da sua vida como uma falta particularmente grave devido ao facto de Grass sempre ter insistido no dever de memória do povo alemão em relação ao nazismo.
Para estes críticos, a diferença manifestada entre prédica e prática por Grass seria o sinal de uma descarada hipocrisia que demonstraria a absoluta falta de autoridade moral do homem e do escritor.
No entanto, como este tipo de reacção veio principalmente de quem não demonstra grande simpatia pelas posições políticas do escritor, é difícil acreditar na total boa-fé desses comentários.
Por outras palavras: é difícil acreditar que, se Grass sempre tivesse defendido o esquecimento e o perdão em relação ao nazismo, os actuais moralizadores não vissem no episódio Waffen-SS a raiz secreta dessa atitude e não condenassem o escritor com uma particular veemência por defender uma posição pretensamente moral apenas para benefício próprio e lavagem da sua própria história. Numa terceira hipótese, se o escritor sempre tivesse contornado o tema do nazismo na sua obra e na sua acção cívica (o que teria sido difícil para um escritor alemão nascido em 1927), é igualmente difícil acreditar que os actuais críticos não o condenassem também de uma forma particularmente viva precisamente por isso, vendo nessa omissão uma forma interesseira de camuflar a mancha vergonhosa da sua folha militar.
Posto isto, é indesmentível que a atitude de Grass é criticável. A omissão deste episódio nos relatos da sua vida é uma mentira e deve ser como tal criticada. A questão aqui é o grau que deve merecer essa crítica - e não saber se o apreço que nos merece o escritor deve ser ou não posto em causa, nem outras bizarrices como discutir se ele deveria devolver o Nobel ou outras distinções literárias.
Essa avaliação não deve esquecer, porém, que é prática comum omitir dos relatos de vida ou dos currículos profissionais os episódios menos brilhantes e que isso apenas é criticável neste caso por se tratar de uma figura com uma actividade pública directamente relacionada com o assunto do episódio escamoteado.
A razão apresentada por Grass para o segredo é clara: a vergonha. Quando se tornou evidente para si o significado das Waffen SS e do próprio regime nazi (que era público e notório que apenas tinha surgido no espírito de Grass depois do fim da guerra), o sentimento que lhe ficou da sua adesão e da sua passagem por aquele corpo foi de vergonha – e escondeu-o até o conseguir admitir publicamente.
Repito que o acto é criticável, porque a mentira é moralmente criticável – Kant já deu os argumentos – mas a razão é compreensível e humana. E é de notar que tenha sido o próprio Grass a confessar a sua falta - que é, esclareça-se, a sua omissão do episódio e não o episódio em si, que dificilmente se pode considerar que tenha tido lugar em situação de consentimento informado.
O que me parece importante realçar nesta história, porém, não é a oposição que existe entre o segredo de Grass e a sua defesa da necessidade de encarar o passado, mas a forte relação que também existe entre ambos os factos. Essa necessidade, que Grass coloca na primeira linha do dever cívico e moral, foi claramente sentida pelo escritor de uma forma particularmente dolorosa e pessoal, como hoje percebemos. E não se pode deixar de ver na confissão agora feita e na sua militância pelo dever de memória como uma atitude de onde não está ausente um acto pessoal de contrição.
terça-feira, agosto 01, 2006
Kaddish
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Agosto de 2006
Crónica 29/2006
"Não gostamos de ver uma criança tornar-se numa vítima da guerra, mas..."
Uma criança morta. As duas palavras pertencem a dois universos que não se deviam tocar, o seu encontro é uma violação, o ponto indizível do horror e da tristeza. Algo que apenas devia acontecer por um erro do destino, um acidente da natureza.
É impossível aceitar que a criança que pende daqueles braços como que a dormir está morta. É impossível aceitar que amanhã outra estará pendurada de outros braços, com o mesmo abandono. É impossível admitir que alguém lhe roubou a sua vida, que alguém nos roubou a sua vida. Em nome de que ajuste de contas se rouba a vida a uma criança?
É importante olhar para esta criança que pende destes braços nesta fotografia. Olhar para as suas mãos, para os dedos dos pés descalços, para a cara suja de terra. Olhar para esta criança, precisamente para esta criança, e imaginar o que fazia antes de a bomba lhe cair em cima. É importante imaginar apenas esta criança, antes de ter os pés e as mãos pendurados e a cara suja de terra. Porquê apenas esta? Porque não conseguimos imaginar 30 crianças mortas. Porque 30 crianças mortas é demasiado para conseguirmos imaginar como seriam antes de a bomba cair e passamos a focar-nos no número. Passam a ser 30 mortos. Como nas outras, muitas outras notícias: ..."vítimas do atentado, entre as quais várias crianças"...
Porquê este luto? Significa que este ataque do exército israelita é mais vil, mais desumano, que os ataques a que a sua população civil e as suas crianças são sujeitos? Significa que as bombas e os ataques suicidas do Hezbollah ou do Hamas ou de outros grupos terroristas são mais aceitáveis? Significa que há ataques a civis justificados de um lado e ataques a civis injustificados do outro? Significa que uns são ataques e outros "respostas" ou "retaliações"? Significa que uns são "ataques" e outros "defesas"?
Não. Os ataques a civis são exactamente iguais. Todos têm a mesma vileza, a mesma desumanidade. Todos demonstram desrespeito pela vida, pela lei internacional e até pelas leis da guerra, todos matam crianças. Significa que todas as partes abdicam da sua humanidade.
O terrorismo responde ao terrorismo – porque ambas as partes querem espalhar o terror nas populações, porque ambas estão empenhadas em destruir o outro lado sem olhar a meios, porque ambas as partes acham que as crianças são vítimas úteis se os ajudarem a atingir os seus objectivos (mesmo quando não o confessam), porque ambas as partes usam civis nas suas chantagens (não se esconde o Hezbollah entre civis? Não diz o governo israelita ao governo libanês que podia evitar a morte de civis se controlasse o Hezbollah?).
Como se pode dizer, como Shimon Peres, "não gostamos de ver uma criança tornar-se numa vítima da guerra, mas...", seja o que for que vem depois do "mas"?
No diálogo com o Ocidente o governo israelita usa a carta do seu regime democrático mas recusa o compromisso moral que está na base da democracia: tentar, com todas as forças, resolver os seus conflitos por meios pacíficos. Aí escolhe a pena de talião – sem se aperceber de que esta traz com ela o anátema da identificação com o adversário. Se a pena de talião fosse aplicada apenas aos que a atacam, Israel poderia ter argumentos. Mas quando essa vingança se alastra aos pais, aos vizinhos e aos filhos dos vizinhos dos seus inimigos, quando a vingança substitui a moralidade e se transforma no quotidiano da acção de um regime, isso apenas significa que a banalidade do mal infectou quase todo um povo – quase todo, porque há ainda homens e mulheres de boa vontade que restam em Israel – e o Kaddish que dizemos pelas crianças libanesas, palestinianas e israelitas se transformou na oração de defuntos pelas almas dos seus pais.
Texto publicado no jornal Público a 1 de Agosto de 2006
Crónica 29/2006
"Não gostamos de ver uma criança tornar-se numa vítima da guerra, mas..."
Uma criança morta. As duas palavras pertencem a dois universos que não se deviam tocar, o seu encontro é uma violação, o ponto indizível do horror e da tristeza. Algo que apenas devia acontecer por um erro do destino, um acidente da natureza.
É impossível aceitar que a criança que pende daqueles braços como que a dormir está morta. É impossível aceitar que amanhã outra estará pendurada de outros braços, com o mesmo abandono. É impossível admitir que alguém lhe roubou a sua vida, que alguém nos roubou a sua vida. Em nome de que ajuste de contas se rouba a vida a uma criança?
É importante olhar para esta criança que pende destes braços nesta fotografia. Olhar para as suas mãos, para os dedos dos pés descalços, para a cara suja de terra. Olhar para esta criança, precisamente para esta criança, e imaginar o que fazia antes de a bomba lhe cair em cima. É importante imaginar apenas esta criança, antes de ter os pés e as mãos pendurados e a cara suja de terra. Porquê apenas esta? Porque não conseguimos imaginar 30 crianças mortas. Porque 30 crianças mortas é demasiado para conseguirmos imaginar como seriam antes de a bomba cair e passamos a focar-nos no número. Passam a ser 30 mortos. Como nas outras, muitas outras notícias: ..."vítimas do atentado, entre as quais várias crianças"...
Porquê este luto? Significa que este ataque do exército israelita é mais vil, mais desumano, que os ataques a que a sua população civil e as suas crianças são sujeitos? Significa que as bombas e os ataques suicidas do Hezbollah ou do Hamas ou de outros grupos terroristas são mais aceitáveis? Significa que há ataques a civis justificados de um lado e ataques a civis injustificados do outro? Significa que uns são ataques e outros "respostas" ou "retaliações"? Significa que uns são "ataques" e outros "defesas"?
Não. Os ataques a civis são exactamente iguais. Todos têm a mesma vileza, a mesma desumanidade. Todos demonstram desrespeito pela vida, pela lei internacional e até pelas leis da guerra, todos matam crianças. Significa que todas as partes abdicam da sua humanidade.
O terrorismo responde ao terrorismo – porque ambas as partes querem espalhar o terror nas populações, porque ambas estão empenhadas em destruir o outro lado sem olhar a meios, porque ambas as partes acham que as crianças são vítimas úteis se os ajudarem a atingir os seus objectivos (mesmo quando não o confessam), porque ambas as partes usam civis nas suas chantagens (não se esconde o Hezbollah entre civis? Não diz o governo israelita ao governo libanês que podia evitar a morte de civis se controlasse o Hezbollah?).
Como se pode dizer, como Shimon Peres, "não gostamos de ver uma criança tornar-se numa vítima da guerra, mas...", seja o que for que vem depois do "mas"?
No diálogo com o Ocidente o governo israelita usa a carta do seu regime democrático mas recusa o compromisso moral que está na base da democracia: tentar, com todas as forças, resolver os seus conflitos por meios pacíficos. Aí escolhe a pena de talião – sem se aperceber de que esta traz com ela o anátema da identificação com o adversário. Se a pena de talião fosse aplicada apenas aos que a atacam, Israel poderia ter argumentos. Mas quando essa vingança se alastra aos pais, aos vizinhos e aos filhos dos vizinhos dos seus inimigos, quando a vingança substitui a moralidade e se transforma no quotidiano da acção de um regime, isso apenas significa que a banalidade do mal infectou quase todo um povo – quase todo, porque há ainda homens e mulheres de boa vontade que restam em Israel – e o Kaddish que dizemos pelas crianças libanesas, palestinianas e israelitas se transformou na oração de defuntos pelas almas dos seus pais.
terça-feira, julho 25, 2006
Dress code
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 25 de Julho de 2006
Crónica 28/2006
A imposição de um código de indumentária visa criar um clima de repressão e de limitação da liberdade individual
O presidente da Assembleia Legislativa da Madeira, Miguel Mendonça, decretou na semana passada um "regulamento de acesso" às instalações parlamentares que impede os operadores de imagem e repórteres fotográficos de entrar no Parlamento regional com "vestuário considerado inadequado". Entre esse vestuário inadequado Miguel Mendonça inclui "por exemplo, t-shirts e sapatilhas desportivas". Quanto aos jornalistas que cobrem o Parlamento, o documento recomenda "indumentária consentânea com a dignidade" do Parlamento, sem proibir peças de vestuário em particular. Alberto João Jardim aplaudiu a medida.
Não é preciso puxar muito pela cabeça para constatar a vacuidade do documento – que se compreende que tenha encontrado eco na mente de Alberto João Jardim. É evidente que não é preciso grande imaginação para criar indumentárias não consentâneas com a dignidade do Parlamento que não incluam T-shirts nem sapatilhas, assim como é possível encontrar inúmeros exemplos de elegância e dignidade entre pessoas que ostentam estas peças de vestuário.
A imposição de um "dress code" – expressão nascida no final dos anos 60 mas que os "yuppies" introduziram no léxico empresarial – é comum a muitas organizações e tem razões claras: criar um clima de repressão e de limitação da liberdade individual ou ser usado como ferramenta de segregação e desigualdade social.
Os exemplos abundam agora e desde sempre: nas sociedades islamistas o código indumentário imposto às mulheres é um símbolo e um agente da sua inferioridade social e da sua submissão pessoal, como nos anos sessenta do século passado o foi o uso obrigatório da saia pelas mulheres em tantas instituições e empresas, como na IBM filo-nazi dos anos 30 o fato completo e as ligas dos vendedores sempre homens, sempre brancos e sempre louros representavam o molde autoritário da empresa.
Nos anos 60 e 70, na Europa e nos Estados Unidos, a luta pelos direitos cívicos confunde-se com a luta pelo direito a usar cabelo comprido e a usar a roupa da cor que se quisesse.
É evidente que todas as sociedades têm regras de indumentária (práticas ou de bom senso, de decência ou do bom gosto), mas pretender transformar em código escrito essa regras fluidas e sujeitas a permanente renegociação informal, é o que caracteriza as sociedades totalitárias.
Bill Gates gabava-se, alguns anos atrás, que o único "dress code" que a Microsoft possuiu, nos primórdios da empresa, foi uma vez em que escreveu uma mensagem aos trabalhadores pedindo-lhes que não viessem trabalhar descalços. Claro que isso já foi há muitos anos e muitos neurónios desapareceram da cabeça do fundador da Microsoft desde essa data, mas a história diz alguma coisa. Não é por acaso que a liberdade de indumentária aparece tantas vezes associada à criatividade – seja nos artistas, nos cientistas ou nos pensadores em geral. É que a liberdade é condição da criatividade – que, já agora (diga-se para benefício dos tecnocratas) é condição da inovação, que é condição da competitividade, etc.
As razões para essa liberdade, porém, estão a montante destas razões comerciais – são a dignidade humana, o direito a ser e a ser o que se é. Que a sede do poder republicano, como é um parlamento, seja submetida a esta violação mostra a que ponto chega a desfaçatez jardinesca, alimentada como se adivinha pelas veleidades ruifluviais do continente, militantemente anti-imprensa e anti-liberdade de expressão.
Que a Justiça faça alguma coisa já não se espera, mas terá o Presidente da República algo a dizer sobre as liberdades constitucionais? Ou vai esperar que o acesso ao Parlamento seja reservado por diploma aos homens brancos católicos, pais de família, proprietários de terras e portadores de gravata?
PS: O meu corrector ortográfico, atento observador da política nacional, propõe-me "rufiáveis" em vez de "ruifluviais". Hesito, mas prefiro ruifluviais.
Texto publicado no jornal Público a 25 de Julho de 2006
Crónica 28/2006
A imposição de um código de indumentária visa criar um clima de repressão e de limitação da liberdade individual
O presidente da Assembleia Legislativa da Madeira, Miguel Mendonça, decretou na semana passada um "regulamento de acesso" às instalações parlamentares que impede os operadores de imagem e repórteres fotográficos de entrar no Parlamento regional com "vestuário considerado inadequado". Entre esse vestuário inadequado Miguel Mendonça inclui "por exemplo, t-shirts e sapatilhas desportivas". Quanto aos jornalistas que cobrem o Parlamento, o documento recomenda "indumentária consentânea com a dignidade" do Parlamento, sem proibir peças de vestuário em particular. Alberto João Jardim aplaudiu a medida.
Não é preciso puxar muito pela cabeça para constatar a vacuidade do documento – que se compreende que tenha encontrado eco na mente de Alberto João Jardim. É evidente que não é preciso grande imaginação para criar indumentárias não consentâneas com a dignidade do Parlamento que não incluam T-shirts nem sapatilhas, assim como é possível encontrar inúmeros exemplos de elegância e dignidade entre pessoas que ostentam estas peças de vestuário.
A imposição de um "dress code" – expressão nascida no final dos anos 60 mas que os "yuppies" introduziram no léxico empresarial – é comum a muitas organizações e tem razões claras: criar um clima de repressão e de limitação da liberdade individual ou ser usado como ferramenta de segregação e desigualdade social.
Os exemplos abundam agora e desde sempre: nas sociedades islamistas o código indumentário imposto às mulheres é um símbolo e um agente da sua inferioridade social e da sua submissão pessoal, como nos anos sessenta do século passado o foi o uso obrigatório da saia pelas mulheres em tantas instituições e empresas, como na IBM filo-nazi dos anos 30 o fato completo e as ligas dos vendedores sempre homens, sempre brancos e sempre louros representavam o molde autoritário da empresa.
Nos anos 60 e 70, na Europa e nos Estados Unidos, a luta pelos direitos cívicos confunde-se com a luta pelo direito a usar cabelo comprido e a usar a roupa da cor que se quisesse.
É evidente que todas as sociedades têm regras de indumentária (práticas ou de bom senso, de decência ou do bom gosto), mas pretender transformar em código escrito essa regras fluidas e sujeitas a permanente renegociação informal, é o que caracteriza as sociedades totalitárias.
Bill Gates gabava-se, alguns anos atrás, que o único "dress code" que a Microsoft possuiu, nos primórdios da empresa, foi uma vez em que escreveu uma mensagem aos trabalhadores pedindo-lhes que não viessem trabalhar descalços. Claro que isso já foi há muitos anos e muitos neurónios desapareceram da cabeça do fundador da Microsoft desde essa data, mas a história diz alguma coisa. Não é por acaso que a liberdade de indumentária aparece tantas vezes associada à criatividade – seja nos artistas, nos cientistas ou nos pensadores em geral. É que a liberdade é condição da criatividade – que, já agora (diga-se para benefício dos tecnocratas) é condição da inovação, que é condição da competitividade, etc.
As razões para essa liberdade, porém, estão a montante destas razões comerciais – são a dignidade humana, o direito a ser e a ser o que se é. Que a sede do poder republicano, como é um parlamento, seja submetida a esta violação mostra a que ponto chega a desfaçatez jardinesca, alimentada como se adivinha pelas veleidades ruifluviais do continente, militantemente anti-imprensa e anti-liberdade de expressão.
Que a Justiça faça alguma coisa já não se espera, mas terá o Presidente da República algo a dizer sobre as liberdades constitucionais? Ou vai esperar que o acesso ao Parlamento seja reservado por diploma aos homens brancos católicos, pais de família, proprietários de terras e portadores de gravata?
PS: O meu corrector ortográfico, atento observador da política nacional, propõe-me "rufiáveis" em vez de "ruifluviais". Hesito, mas prefiro ruifluviais.
terça-feira, julho 18, 2006
À espera da criação
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Julho de 2006
Crónica 27/2006
Os insultos possíveis vão desde as comparações zoológicas à atribuição de uma conduta dissoluta aos membros da família
As reacções à cabeçada de Zidane na final do Campeonato Mundial de Futebol deram origem ao aparecimento de dois grupos de pessoas: os que consideraram o gesto indesculpável e a sanção justa e os que se recusaram a julgar de forma definitiva o jogador francês e consideraram que tinham de saber, antes disso, o que lhe tinha dito o defesa italiano Materazzi para levar um homem habitualmente calmo a uma tal agressão.
De acordo com o que se viu nos replays mais difundidos da história da Internet, era evidente que Materazzi tinha dito qualquer coisa a Zidane e que este o tinha agredido em resposta. Tinha respondido com uma cabeçada a um insulto. Mas isso não era suficiente para todos. "O que eu gostava de saber era o que é que o italiano lhe terá dito para o irritar daquela maneira", diziam os que hesitavam na condenação moral. E não era suficiente dizer-lhes que os insultos possíveis vão desde as comparações zoológicas do próprio à atribuição de uma conduta moral dissoluta aos vários membros da sua família, com mais ou menos pormenores pitorescos, passando pela atribuição de preferências sexuais heterodoxas a pessoas próximas e pouco mais.
Na cara dos renitentes afivelava-se a careta da dúvida: "Não me parece. Isso já ele deve ter ouvido muitas vezes e nunca reagiu assim. Foi alguma coisa especial." E não valia de nada sugerir os comentários de ordem racial, religiosa ou a acusação de simpatia por práticas terroristas ou ameaças físicas e psicológicas de vários tipos e garantir que nada mais poderia ter sido dito. A resposta destas pessoas (todas profundas ignorantes de futebol e mais ignorantes ainda dos hábitos dos jogadores envolvidos) era a mesma: "Isso deve ele ouvir todos os dias... Deve ter sido outra coisa". Mas o quê?
As primeiras sugestões lançadas pelos media, incluindo declarações de um perito em leitura labial que descrevia em pormenor as palavras de Materazzi (suavizadas para poderem ser reproduzidas em meios de comunicação de consumo familiar) não conseguiram apaziguar a inquietação destes curiosos que continuaram a recusar todas as possibilidades conhecidas do domínio lexical para imaginar uma ofensa verbal de um cariz nunca antes explorado, um ultraje de um tipo nunca antes experimentado, tocando talvez numa área da vida de Zidane que não teria a ver com sexo, nem com família, nem com raça, nem com honra, nem com religião mas que seria, apesar disso, essencial à sua pessoa, essencial à sua vida, que teria sido posta em causa por meia dúzia de palavras e que teria sido insuportável.
Tratar-se-ia talvez do núcleo duro da alma humana, de uma zona totalmente nova ou esquecida, que constituiria o cerne deste homem (ou de todos os homens) e que não poderia ser posta em causa sem provocar a desagregação de todo o seu ser. O que estas pessoas esperavam no fundo era que Materazzi tivesse gerado com as suas palavras um universo paralelo, um mundo onde outras coisas seriam possíveis, onde as mesmas causas do nosso mundo não causariam os mesmos efeitos, onde certas palavras não pudessem ter como resposta senão uma cabeçada. Esperavam, numa palavra, que ele tivesse criado. E viviam a espera do momento em que seria revelado esse segredo da criação como outros esperam o anúncio do Nobel, a tiragem do Euromilhões ou um sinal do céu. Quando se tornou evidente a banalidade do caso, voltaram para as suas vidas, sem perceber por que razão tinham imaginado que pudesse haver outra coisa.
Texto publicado no jornal Público a 18 de Julho de 2006
Crónica 27/2006
Os insultos possíveis vão desde as comparações zoológicas à atribuição de uma conduta dissoluta aos membros da família
As reacções à cabeçada de Zidane na final do Campeonato Mundial de Futebol deram origem ao aparecimento de dois grupos de pessoas: os que consideraram o gesto indesculpável e a sanção justa e os que se recusaram a julgar de forma definitiva o jogador francês e consideraram que tinham de saber, antes disso, o que lhe tinha dito o defesa italiano Materazzi para levar um homem habitualmente calmo a uma tal agressão.
De acordo com o que se viu nos replays mais difundidos da história da Internet, era evidente que Materazzi tinha dito qualquer coisa a Zidane e que este o tinha agredido em resposta. Tinha respondido com uma cabeçada a um insulto. Mas isso não era suficiente para todos. "O que eu gostava de saber era o que é que o italiano lhe terá dito para o irritar daquela maneira", diziam os que hesitavam na condenação moral. E não era suficiente dizer-lhes que os insultos possíveis vão desde as comparações zoológicas do próprio à atribuição de uma conduta moral dissoluta aos vários membros da sua família, com mais ou menos pormenores pitorescos, passando pela atribuição de preferências sexuais heterodoxas a pessoas próximas e pouco mais.
Na cara dos renitentes afivelava-se a careta da dúvida: "Não me parece. Isso já ele deve ter ouvido muitas vezes e nunca reagiu assim. Foi alguma coisa especial." E não valia de nada sugerir os comentários de ordem racial, religiosa ou a acusação de simpatia por práticas terroristas ou ameaças físicas e psicológicas de vários tipos e garantir que nada mais poderia ter sido dito. A resposta destas pessoas (todas profundas ignorantes de futebol e mais ignorantes ainda dos hábitos dos jogadores envolvidos) era a mesma: "Isso deve ele ouvir todos os dias... Deve ter sido outra coisa". Mas o quê?
As primeiras sugestões lançadas pelos media, incluindo declarações de um perito em leitura labial que descrevia em pormenor as palavras de Materazzi (suavizadas para poderem ser reproduzidas em meios de comunicação de consumo familiar) não conseguiram apaziguar a inquietação destes curiosos que continuaram a recusar todas as possibilidades conhecidas do domínio lexical para imaginar uma ofensa verbal de um cariz nunca antes explorado, um ultraje de um tipo nunca antes experimentado, tocando talvez numa área da vida de Zidane que não teria a ver com sexo, nem com família, nem com raça, nem com honra, nem com religião mas que seria, apesar disso, essencial à sua pessoa, essencial à sua vida, que teria sido posta em causa por meia dúzia de palavras e que teria sido insuportável.
Tratar-se-ia talvez do núcleo duro da alma humana, de uma zona totalmente nova ou esquecida, que constituiria o cerne deste homem (ou de todos os homens) e que não poderia ser posta em causa sem provocar a desagregação de todo o seu ser. O que estas pessoas esperavam no fundo era que Materazzi tivesse gerado com as suas palavras um universo paralelo, um mundo onde outras coisas seriam possíveis, onde as mesmas causas do nosso mundo não causariam os mesmos efeitos, onde certas palavras não pudessem ter como resposta senão uma cabeçada. Esperavam, numa palavra, que ele tivesse criado. E viviam a espera do momento em que seria revelado esse segredo da criação como outros esperam o anúncio do Nobel, a tiragem do Euromilhões ou um sinal do céu. Quando se tornou evidente a banalidade do caso, voltaram para as suas vidas, sem perceber por que razão tinham imaginado que pudesse haver outra coisa.
terça-feira, julho 11, 2006
Vitórias imorais
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Julho de 2006
Crónica 26/2006
O desporto não é apenas o mérito dos vencedores. É o mérito dos que conseguem fazer um pouco melhor, dos que nunca desistem.
O conceito de desporto transporta consigo valores centrais na sociedade e alguns que representam grande elevação moral: a ideia da mente sã em corpo são, a pulsão para dar o melhor de si, o dever de exigir de si antes de exigir dos outros, a definição de objectivos nunca antes alcançados, a disciplina do treino, o desenvolvimento da autonomia pessoal mas também a capacidade de jogar em equipa e de confiar nos companheiros, a capacidade de sacrifício, o gosto da competição e a paixão da vitória aliada ao respeito pelos adversários e pelas regras, etc.
Claro quer nem tudo isto se sente no futebol profissional e daí que este desporto não seja considerado a escola de virtudes que o ideal olímpico pretende que o desporto deve ser. Os próprios Jogos Olímpicos deixaram de poder ser considerados essa escola de virtudes.
Apesar disso, todos mantemos uma ideia do que deve ser o desporto e do que significa jogar com dignidade – ainda que entre o nosso desejo de lealdade e o nosso gosto pela vitória se instale uma fricção cujo vencedor é sempre duvidoso. Claro que aplaudimos o jogador que lança a bola fora para que um adversário seja assistido dentro do campo, mas estamos dispostos a jurar que aquela mão dentro da área foi uma malévola invenção do árbitro – pois, se bem que ela até se veja nos "replays", era impossível que o árbitro a tivesse visto do sítio onde estava.
A noção de que as regras se podem dobrar um bocadinho atinge um máximo em ocasiões onde as apostas afectivas (ou outras) são especialmente altas - como num campeonato mundial. Mas, apesar de todas estas violentas paixões e deste quadro de confronto que muitos consideram o substituto moderno da guerra, todos continuamos a saber o que é jogar com dignidade. É o jogo onde se vê competência técnica, esforço, disciplina, criatividade, lealdade para com adversários e a paixão da vitória – mesmo que esta não se atinja.
Vem isto a propósito dos desiludidos com o resultado da selecção que se recusam a considerá-la uma "vitória moral" – o eufemismo com que há uns anos se designavam as derrotas. De facto a participação da selecção portuguesa não tem nada de "vitória moral" – foi uma participação digna e com qualidade. E isso é honroso em si. E seria particularmente honroso se não tivesse havido aquela triste exibição com a Holanda, com o seu triste recorde de acções disciplinares e a triste cabeçada de Figo, mas as exibições seguintes fizeram o possível para apagar essa memória.
Que um quarto lugar não é tão galvanizador como uma vitória é evidente – mas o desporto não é apenas o jogo dos que ganham. O desporto não é apenas o mérito dos vencedores. É o mérito dos que treinam, dos que tentam, dos que se esforçam, dos que conseguem fazer um pouco melhor, dos que nunca desistem, dos que jogam e dos que correm até ao fim, mesmo quando não ganham o primeiro lugar. E isso é honroso. Não é a treta da vitória moral à antiga portuguesa, nem é a treta do "number one " à americana, onde não há memória para o número dois – é a vida vivida com dignidade. E há dignidade para além da vitória e da derrota.
A vitória é tão importante que não haveria dignidade em não a perseguir até ao limite das forças, mas não é a vitória que confere dignidade ao vencedor, é a dignidade que confere sabor à vitória.
A pequena cabeçada de Figo e a grande cabeçada de Zidane, sejam quais forem as suas causas e sejam quais forem os méritos dos jogadores, são (entre outras) acções que mancham o desporto. E as acções dos que não perdem a cabeça e continuam a tentar mesmo quando as coisas não correm pelo melhor marcam os verdadeiros campeões. São raros? São ainda mais raros do que pensávamos. São raríssimos. Mas gostamos de pensar que existem algures. É por isso que a eleição de Zidane como o melhor do Mundial depois do que fez só mancha o desporto, o futebol, o Mundial, a FIFA e os jornalistas enviados para cobrir o Mundial que o elegeram. É uma vitória imoral. Também as há.
Texto publicado no jornal Público a 11 de Julho de 2006
Crónica 26/2006
O desporto não é apenas o mérito dos vencedores. É o mérito dos que conseguem fazer um pouco melhor, dos que nunca desistem.
O conceito de desporto transporta consigo valores centrais na sociedade e alguns que representam grande elevação moral: a ideia da mente sã em corpo são, a pulsão para dar o melhor de si, o dever de exigir de si antes de exigir dos outros, a definição de objectivos nunca antes alcançados, a disciplina do treino, o desenvolvimento da autonomia pessoal mas também a capacidade de jogar em equipa e de confiar nos companheiros, a capacidade de sacrifício, o gosto da competição e a paixão da vitória aliada ao respeito pelos adversários e pelas regras, etc.
Claro quer nem tudo isto se sente no futebol profissional e daí que este desporto não seja considerado a escola de virtudes que o ideal olímpico pretende que o desporto deve ser. Os próprios Jogos Olímpicos deixaram de poder ser considerados essa escola de virtudes.
Apesar disso, todos mantemos uma ideia do que deve ser o desporto e do que significa jogar com dignidade – ainda que entre o nosso desejo de lealdade e o nosso gosto pela vitória se instale uma fricção cujo vencedor é sempre duvidoso. Claro que aplaudimos o jogador que lança a bola fora para que um adversário seja assistido dentro do campo, mas estamos dispostos a jurar que aquela mão dentro da área foi uma malévola invenção do árbitro – pois, se bem que ela até se veja nos "replays", era impossível que o árbitro a tivesse visto do sítio onde estava.
A noção de que as regras se podem dobrar um bocadinho atinge um máximo em ocasiões onde as apostas afectivas (ou outras) são especialmente altas - como num campeonato mundial. Mas, apesar de todas estas violentas paixões e deste quadro de confronto que muitos consideram o substituto moderno da guerra, todos continuamos a saber o que é jogar com dignidade. É o jogo onde se vê competência técnica, esforço, disciplina, criatividade, lealdade para com adversários e a paixão da vitória – mesmo que esta não se atinja.
Vem isto a propósito dos desiludidos com o resultado da selecção que se recusam a considerá-la uma "vitória moral" – o eufemismo com que há uns anos se designavam as derrotas. De facto a participação da selecção portuguesa não tem nada de "vitória moral" – foi uma participação digna e com qualidade. E isso é honroso em si. E seria particularmente honroso se não tivesse havido aquela triste exibição com a Holanda, com o seu triste recorde de acções disciplinares e a triste cabeçada de Figo, mas as exibições seguintes fizeram o possível para apagar essa memória.
Que um quarto lugar não é tão galvanizador como uma vitória é evidente – mas o desporto não é apenas o jogo dos que ganham. O desporto não é apenas o mérito dos vencedores. É o mérito dos que treinam, dos que tentam, dos que se esforçam, dos que conseguem fazer um pouco melhor, dos que nunca desistem, dos que jogam e dos que correm até ao fim, mesmo quando não ganham o primeiro lugar. E isso é honroso. Não é a treta da vitória moral à antiga portuguesa, nem é a treta do "number one " à americana, onde não há memória para o número dois – é a vida vivida com dignidade. E há dignidade para além da vitória e da derrota.
A vitória é tão importante que não haveria dignidade em não a perseguir até ao limite das forças, mas não é a vitória que confere dignidade ao vencedor, é a dignidade que confere sabor à vitória.
A pequena cabeçada de Figo e a grande cabeçada de Zidane, sejam quais forem as suas causas e sejam quais forem os méritos dos jogadores, são (entre outras) acções que mancham o desporto. E as acções dos que não perdem a cabeça e continuam a tentar mesmo quando as coisas não correm pelo melhor marcam os verdadeiros campeões. São raros? São ainda mais raros do que pensávamos. São raríssimos. Mas gostamos de pensar que existem algures. É por isso que a eleição de Zidane como o melhor do Mundial depois do que fez só mancha o desporto, o futebol, o Mundial, a FIFA e os jornalistas enviados para cobrir o Mundial que o elegeram. É uma vitória imoral. Também as há.
terça-feira, julho 04, 2006
As águas do Douro
por José Vítor Malheiros
O facto é duplamente chocante porque se trata não apenas de um atropelo dos mais elementares direitos cívicos mas de uma violação levada a cabo por uma instituição política, eleita democraticamente e de funcionamento colegial. O atropelo não se deve assim apenas a um deslize, mas a um entendimento distorcido do funcionamento das instituições políticas, que criou uma cultura de perversão e de abuso no seio de toda uma autarquia – como se viu na votação que aprovou o procedimento. Trata-se de uma perversão enraizada em todo um corpo político.
O facto é ainda mais chocante porque, quando foi exposto pelos media, o presidente do Câmara do Porto, Rui Rio, o defendeu com uma inesperada desfaçatez, invocando mesmo critérios de ordem jurídica e da ordem dos "princípios".
O facto é finalmente chocante porque, perante um tal ataque à liberdade de expressão, um entrave ao direito a criticar os dirigentes políticos e um abuso (declarado) na utilização de meios públicos em defesa própria, não se viu a vaga de condenações que esta situação mereceria.
Como é possível que alguém, com uma visão tão distorcida da democracia e das liberdades como Rui Rio, possa chegar onde ele chegou num partido democrático, na política nacional, numa autarquia com pergaminhos na democracia? A questão não é nova e é suscitada com maioria de razão no caso de Alberto João Jardim – com quem Rio se parece mais e mais a cada dia que passa – mas deve ser levantada no caso de Rui Rio, tanto mais que Jardim costuma ser desculpado pelos seus próprios correligionários por uma menoridade madeirense que justificaria uma particular benevolência e o Porto não parece querer reivindicar tal estatuto.
Rio garante que a sua abjecta cláusula é legal porque foi vista e revista pelos seus serviços jurídicos, mas não é preciso ser constitucionalista para saber que a cláusula é nula, pois não se podem alienar direitos fundamentais na assinatura de um protocolo. O que permite ver que a cláusula lá está apenas como uma forma de intimidação política, como uma manifestação de força que se ri da constituição e dos direitos.
Rui Rio – que ficará na pequena história de Portugal como o político a quem não se pode chamar "energúmeno" porque um Tribunal condenou a expressão – é um homem que quando houve falar de liberdade puxa da pistola e esta é mais uma prova. Isso já se tem visto através do seu relacionamento com a imprensa, com cuja liberdade Rio também não consegue conviver, mas se ainda faltassem provas, aqui estão elas. Que chame "cortesia" à proibição de lhe dirigirem críticas e que tente comprar essa "cortesia" através da concessão de subsídios com dinheiros públicos é apenas um sintoma de como está corrompida a sua noção de democracia e de como é autocrática a sua visão do exercício do poder. Os portuenses terão a certeza de que esta é a imagem que querem dar do Porto?
No mesmo dia ficámos também a saber que Gaia e o seu presidente da Câmara, Luís Filipe Menezes, usam outros métodos, mais subtis mas igualmente criticáveis, no seu relacionamento com a imprensa: os jornais que recebem publicidade institucional da câmara ficam obrigados por protocolo "a acompanhar adequadamente os actos públicos bem como toda a actividade da câmara e empresas municipais". Será uma maldição que tenha a ver com as águas do Douro? E não haverá por aí alguns democratas e homens e mulheres livres que se sintam ofendidos com a situação?
Texto publicado no jornal Público a 4 de Julho de 2006
Crónica 25/2006
Os portuenses terão a certeza de que esta é a imagem que querem dar do Porto?
A notícia de que a Câmara do Porto exige às entidades receptoras de subsídios municipais a assinatura de um protocolo onde estas se comprometem a não "criticar publicamente o município" é chocante num grau raramente atingível em democracia.
Os portuenses terão a certeza de que esta é a imagem que querem dar do Porto?
A notícia de que a Câmara do Porto exige às entidades receptoras de subsídios municipais a assinatura de um protocolo onde estas se comprometem a não "criticar publicamente o município" é chocante num grau raramente atingível em democracia.
O facto é duplamente chocante porque se trata não apenas de um atropelo dos mais elementares direitos cívicos mas de uma violação levada a cabo por uma instituição política, eleita democraticamente e de funcionamento colegial. O atropelo não se deve assim apenas a um deslize, mas a um entendimento distorcido do funcionamento das instituições políticas, que criou uma cultura de perversão e de abuso no seio de toda uma autarquia – como se viu na votação que aprovou o procedimento. Trata-se de uma perversão enraizada em todo um corpo político.
O facto é ainda mais chocante porque, quando foi exposto pelos media, o presidente do Câmara do Porto, Rui Rio, o defendeu com uma inesperada desfaçatez, invocando mesmo critérios de ordem jurídica e da ordem dos "princípios".
O facto é finalmente chocante porque, perante um tal ataque à liberdade de expressão, um entrave ao direito a criticar os dirigentes políticos e um abuso (declarado) na utilização de meios públicos em defesa própria, não se viu a vaga de condenações que esta situação mereceria.
Como é possível que alguém, com uma visão tão distorcida da democracia e das liberdades como Rui Rio, possa chegar onde ele chegou num partido democrático, na política nacional, numa autarquia com pergaminhos na democracia? A questão não é nova e é suscitada com maioria de razão no caso de Alberto João Jardim – com quem Rio se parece mais e mais a cada dia que passa – mas deve ser levantada no caso de Rui Rio, tanto mais que Jardim costuma ser desculpado pelos seus próprios correligionários por uma menoridade madeirense que justificaria uma particular benevolência e o Porto não parece querer reivindicar tal estatuto.
Rio garante que a sua abjecta cláusula é legal porque foi vista e revista pelos seus serviços jurídicos, mas não é preciso ser constitucionalista para saber que a cláusula é nula, pois não se podem alienar direitos fundamentais na assinatura de um protocolo. O que permite ver que a cláusula lá está apenas como uma forma de intimidação política, como uma manifestação de força que se ri da constituição e dos direitos.
Rui Rio – que ficará na pequena história de Portugal como o político a quem não se pode chamar "energúmeno" porque um Tribunal condenou a expressão – é um homem que quando houve falar de liberdade puxa da pistola e esta é mais uma prova. Isso já se tem visto através do seu relacionamento com a imprensa, com cuja liberdade Rio também não consegue conviver, mas se ainda faltassem provas, aqui estão elas. Que chame "cortesia" à proibição de lhe dirigirem críticas e que tente comprar essa "cortesia" através da concessão de subsídios com dinheiros públicos é apenas um sintoma de como está corrompida a sua noção de democracia e de como é autocrática a sua visão do exercício do poder. Os portuenses terão a certeza de que esta é a imagem que querem dar do Porto?
No mesmo dia ficámos também a saber que Gaia e o seu presidente da Câmara, Luís Filipe Menezes, usam outros métodos, mais subtis mas igualmente criticáveis, no seu relacionamento com a imprensa: os jornais que recebem publicidade institucional da câmara ficam obrigados por protocolo "a acompanhar adequadamente os actos públicos bem como toda a actividade da câmara e empresas municipais". Será uma maldição que tenha a ver com as águas do Douro? E não haverá por aí alguns democratas e homens e mulheres livres que se sintam ofendidos com a situação?
terça-feira, junho 27, 2006
Discutir na escola
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Junho de 2006
Crónica 24/2006
Criar na escola um espaço de livre expressão, de confronto intelectual, de exercício de cidadania.
"Quem fala mal, pensa mal e vive mal". A citação é de Nanni Moretti e pertence aos solilóquios agridoces do comunista amnésico Michele Apicella no filme "Palombella rossa" (1989), mas seria possível encontrar declarações equivalentes noutros autores.
A questão é que as palavras são de facto importantes e que existe entre a organização do discurso e a faculdade de pensar uma relação estreita que não permite estruturar uma sem desenvolver a outra.
De entre as inúmeras falhas que se podem apontar ao sistema formal de ensino português, uma delas é sem dúvida a de não apostar suficientemente no desenvolvimento de competências da ordem do discurso.
É evidente que os estudantes têm de escrever e que devem falar – mas tudo ou quase tudo aponta para a produção de um discurso escrito estereotipado ("Esta pergunta aqui é para dizer o quê, stora?") e para um empobrecimento da oralidade. As razões são muitas – turmas grandes, programas carregados, iliteracia familiar, a influência criminosa da televisão, falta de hábitos de leitura, falta de preparação dos professores, problemas disciplinares, etc – mas a verdade é que os estudantes em geral (do básico, do secundário e do superior) evidenciam deficiências comunicacionais gritantes ao nível oral e escrito que se encontram na origem de inúmeros males maiores.
A verdade é que muitos dos estudantes (e mesmo dos licenciados) portugueses tem dificuldade em expor as suas ideias de forma articulada, em sustentar as suas opiniões ou expor os seus argumentos e mais ainda em submeter as suas convicções a uma discussão ou em desmontar uma argumentação alheia – oralmente ou por escrito.
É evidente que muito se poderá fazer neste domínio no âmbito das aulas de Português ou de Filosofia, por exemplo, – mas é possível e desejável que a escola consiga agir sobre este problema noutros momentos e noutros espaços, menos marcados pela necessidade de "avançar na matéria" e onde a comunicação com e entre alunos se pode estabelecer, em princípio, de forma mais fluida e participada.
Isso é possível e pode ser feito de forma agradável e eficaz em actividades extracurriculares (como podem ser o jornal da escola ou o grupo de teatro), mas há momentos curriculares que se prestam particularmente ao desenvolvimento das competências de exposição, comunicação e debate de ideias: os chamados (em eduquês) "períodos de ausência lectiva" ou (em português) as faltas dos professores, que devem ser ocupadas por aulas de substituição.
O documento "Organização do ano lectivo de 2006/07" (disponível no site do Ministério da Educação num irritante PDF em "bitmap" que não permite copiar o texto) sugere que as aulas de substituição sejam dadas por outro professor do mesmo grupo com base no plano de aulas do professor titular. Mas o mesmo documento admite que, na impossibilidade de fazer isso, o período de aulas seja ocupado por "actividades de enriquecimento e complemento curricular".
Ora é possível e proveitoso transformar essas aulas (em vez de aulas curriculares de segunda) em aulas de debate de primeira. A prática é comum na escola anglo-saxónica, mas é boa e pode ser explorada.
É evidente que, para fazer isto de forma séria, é indispensável que todos os professores recebam alguma formação – mas essa formação seria útil na sua actividade lectiva quotidiana. Isto permitiria proporcionar aos alunos um espaço simultaneamente de livre expressão e de lúdico confronto intelectual, de prática de exposição e discussão públicas e de exercício de cidadania.
Essas aulas poderiam partir da discussão organizada de um tema da actualidade e poderiam criar um espaço pedagógico enriquecedor para professores e alunos.
Texto publicado no jornal Público a 27 de Junho de 2006
Crónica 24/2006
Criar na escola um espaço de livre expressão, de confronto intelectual, de exercício de cidadania.
"Quem fala mal, pensa mal e vive mal". A citação é de Nanni Moretti e pertence aos solilóquios agridoces do comunista amnésico Michele Apicella no filme "Palombella rossa" (1989), mas seria possível encontrar declarações equivalentes noutros autores.
A questão é que as palavras são de facto importantes e que existe entre a organização do discurso e a faculdade de pensar uma relação estreita que não permite estruturar uma sem desenvolver a outra.
De entre as inúmeras falhas que se podem apontar ao sistema formal de ensino português, uma delas é sem dúvida a de não apostar suficientemente no desenvolvimento de competências da ordem do discurso.
É evidente que os estudantes têm de escrever e que devem falar – mas tudo ou quase tudo aponta para a produção de um discurso escrito estereotipado ("Esta pergunta aqui é para dizer o quê, stora?") e para um empobrecimento da oralidade. As razões são muitas – turmas grandes, programas carregados, iliteracia familiar, a influência criminosa da televisão, falta de hábitos de leitura, falta de preparação dos professores, problemas disciplinares, etc – mas a verdade é que os estudantes em geral (do básico, do secundário e do superior) evidenciam deficiências comunicacionais gritantes ao nível oral e escrito que se encontram na origem de inúmeros males maiores.
A verdade é que muitos dos estudantes (e mesmo dos licenciados) portugueses tem dificuldade em expor as suas ideias de forma articulada, em sustentar as suas opiniões ou expor os seus argumentos e mais ainda em submeter as suas convicções a uma discussão ou em desmontar uma argumentação alheia – oralmente ou por escrito.
É evidente que muito se poderá fazer neste domínio no âmbito das aulas de Português ou de Filosofia, por exemplo, – mas é possível e desejável que a escola consiga agir sobre este problema noutros momentos e noutros espaços, menos marcados pela necessidade de "avançar na matéria" e onde a comunicação com e entre alunos se pode estabelecer, em princípio, de forma mais fluida e participada.
Isso é possível e pode ser feito de forma agradável e eficaz em actividades extracurriculares (como podem ser o jornal da escola ou o grupo de teatro), mas há momentos curriculares que se prestam particularmente ao desenvolvimento das competências de exposição, comunicação e debate de ideias: os chamados (em eduquês) "períodos de ausência lectiva" ou (em português) as faltas dos professores, que devem ser ocupadas por aulas de substituição.
O documento "Organização do ano lectivo de 2006/07" (disponível no site do Ministério da Educação num irritante PDF em "bitmap" que não permite copiar o texto) sugere que as aulas de substituição sejam dadas por outro professor do mesmo grupo com base no plano de aulas do professor titular. Mas o mesmo documento admite que, na impossibilidade de fazer isso, o período de aulas seja ocupado por "actividades de enriquecimento e complemento curricular".
Ora é possível e proveitoso transformar essas aulas (em vez de aulas curriculares de segunda) em aulas de debate de primeira. A prática é comum na escola anglo-saxónica, mas é boa e pode ser explorada.
É evidente que, para fazer isto de forma séria, é indispensável que todos os professores recebam alguma formação – mas essa formação seria útil na sua actividade lectiva quotidiana. Isto permitiria proporcionar aos alunos um espaço simultaneamente de livre expressão e de lúdico confronto intelectual, de prática de exposição e discussão públicas e de exercício de cidadania.
Essas aulas poderiam partir da discussão organizada de um tema da actualidade e poderiam criar um espaço pedagógico enriquecedor para professores e alunos.
terça-feira, junho 20, 2006
A senhora da "Review"
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Junho de 2006
Crónica 23/2006
"The New York Review of Books" é mais do que uma revista: é uma revista com alma.
O nome que vem no cabeçalho da primeira página é "The New York Review of Books", mas o nome comum é "New York Review". A menção "of Books" aparece por baixo, em corpo mais pequeno, e essa discrição traduz uma intenção. A "Review" fala de livros, mas não quer ser confundida com uma revista literária. Fala de literatura, de política, de ciência, de arte, de história, da actualidade, de todos os temas e ideias que merecem ser divulgados e discutidos, mas não quer ficar entalada entre uma capa e uma contracapa.
Um dos sinais desse interesse pelas ideias e pela vida pública é o facto de muitos dos artigos/críticas não terem como objecto um único livro mas serem uma leitura comparada de vários livros ao mesmo tempo, de exposições, filmes e análises da actualidade. A "Review" fala de temas, de questões, de "issues". A sua marca? Os menos apreciadores dizem que é a extensão dos textos, dissuasora de leituras diletantes, mas a verdadeira marca é a sua qualidade, a qualidade dos colaboradores – entre os quais se contam alguns dos nomes mais famosos do ensaio e da literatura anglo-saxónica –, as excelentes caricaturas de David Levine e, "last but not least", o seu empenhamento cívico, a sua atenção aos temas políticos e aquilo a que nos EUA se chama uma clara inclinação liberal.
Uma das pessoas responsáveis por esta marca genética, imprimida desde 1963, acaba de desaparecer. A mãe da "New York Review", Barbara Epstein, morreu na sexta-feira de cancro de pulmão, aos 77 anos de idade. Deixou dois filhos, três netos e uma revista que faz honras ao que de mais nobre existe nas artes da edição de livros e de periódicos.
A revista é pequena pelos padrões americanos, com a sua tiragem de 130.000 exemplares, quase só vende por assinatura, tem formato tablóide, a ingrata periodicidade quinzenal, usa papel de jornal grosso e quase só imprime a preto e branco. Mas é mais do que uma revista: é uma revista com alma. Não há no conteúdo ou promoção da revista a mínima concessão ao comercialismo – o que não impede a empresa de possuir uma sólida situação financeira. Há quem a considere um clube mas, se for um clube é um clube de debate político, à maneira do século XIX.
Devo confessar que é a minha droga de eleição e que recebo cada exemplar com a mesma expectativa com que, há algumas décadas, recebia o "Tintin".
Quase todas as apreciações da "New York Review" referem a qualidade dos textos, mas só quem não conhece o ofício pode imaginar que (apesar da qualidade dos autores) eles chegam à redacção naquele formato polido. Essa qualidade é fruto de um conjunto de editores de escol, que revê, critica, sugere, edita e corta até os textos atingirem a excelência. Tal como aliás acontece em qualquer boa editora a qualquer bom livro de qualquer bom autor. Essa era aliás a grande qualidade de Barbara Epstein, que aliava à gentileza pessoal uma determinação feroz em não permitir a passagem de nenhum texto antes de uma série de exigentes revisões e, por vezes, várias reescritas. Os textos da "Review" interpelam, iluminam e mobilizam.
Barbara Epstein estava ao leme da "Review" desde a sua fundação, em 1963, juntamente com Robert Silvers como co-editor – que prossegue agora a tarefa sozinho. A revista tinha sido lançada após um jantar de amigos em casa dos Epsteins, com o objectivo de suprir o desaparecimento temporário do suplemento literário do "New York Times", o "The New York Times Book Review", devido a uma greve de tipógrafos que se arrastaria por quase quatro meses. O projecto era temporário, mas o acolhimento foi tal que o projecto prosseguiu para além da greve. Imaginam a inquietação intelectual destas pessoas, para quem a ideia de ficar sem um suporte onde debater os seus pontos de vista era tão insuportável que decidiram lançar a sua própria revista, recrutando amigos e conhecidos?
Texto publicado no jornal Público a 20 de Junho de 2006
Crónica 23/2006
"The New York Review of Books" é mais do que uma revista: é uma revista com alma.
O nome que vem no cabeçalho da primeira página é "The New York Review of Books", mas o nome comum é "New York Review". A menção "of Books" aparece por baixo, em corpo mais pequeno, e essa discrição traduz uma intenção. A "Review" fala de livros, mas não quer ser confundida com uma revista literária. Fala de literatura, de política, de ciência, de arte, de história, da actualidade, de todos os temas e ideias que merecem ser divulgados e discutidos, mas não quer ficar entalada entre uma capa e uma contracapa.
Um dos sinais desse interesse pelas ideias e pela vida pública é o facto de muitos dos artigos/críticas não terem como objecto um único livro mas serem uma leitura comparada de vários livros ao mesmo tempo, de exposições, filmes e análises da actualidade. A "Review" fala de temas, de questões, de "issues". A sua marca? Os menos apreciadores dizem que é a extensão dos textos, dissuasora de leituras diletantes, mas a verdadeira marca é a sua qualidade, a qualidade dos colaboradores – entre os quais se contam alguns dos nomes mais famosos do ensaio e da literatura anglo-saxónica –, as excelentes caricaturas de David Levine e, "last but not least", o seu empenhamento cívico, a sua atenção aos temas políticos e aquilo a que nos EUA se chama uma clara inclinação liberal.
Uma das pessoas responsáveis por esta marca genética, imprimida desde 1963, acaba de desaparecer. A mãe da "New York Review", Barbara Epstein, morreu na sexta-feira de cancro de pulmão, aos 77 anos de idade. Deixou dois filhos, três netos e uma revista que faz honras ao que de mais nobre existe nas artes da edição de livros e de periódicos.
A revista é pequena pelos padrões americanos, com a sua tiragem de 130.000 exemplares, quase só vende por assinatura, tem formato tablóide, a ingrata periodicidade quinzenal, usa papel de jornal grosso e quase só imprime a preto e branco. Mas é mais do que uma revista: é uma revista com alma. Não há no conteúdo ou promoção da revista a mínima concessão ao comercialismo – o que não impede a empresa de possuir uma sólida situação financeira. Há quem a considere um clube mas, se for um clube é um clube de debate político, à maneira do século XIX.
Devo confessar que é a minha droga de eleição e que recebo cada exemplar com a mesma expectativa com que, há algumas décadas, recebia o "Tintin".
Quase todas as apreciações da "New York Review" referem a qualidade dos textos, mas só quem não conhece o ofício pode imaginar que (apesar da qualidade dos autores) eles chegam à redacção naquele formato polido. Essa qualidade é fruto de um conjunto de editores de escol, que revê, critica, sugere, edita e corta até os textos atingirem a excelência. Tal como aliás acontece em qualquer boa editora a qualquer bom livro de qualquer bom autor. Essa era aliás a grande qualidade de Barbara Epstein, que aliava à gentileza pessoal uma determinação feroz em não permitir a passagem de nenhum texto antes de uma série de exigentes revisões e, por vezes, várias reescritas. Os textos da "Review" interpelam, iluminam e mobilizam.
Barbara Epstein estava ao leme da "Review" desde a sua fundação, em 1963, juntamente com Robert Silvers como co-editor – que prossegue agora a tarefa sozinho. A revista tinha sido lançada após um jantar de amigos em casa dos Epsteins, com o objectivo de suprir o desaparecimento temporário do suplemento literário do "New York Times", o "The New York Times Book Review", devido a uma greve de tipógrafos que se arrastaria por quase quatro meses. O projecto era temporário, mas o acolhimento foi tal que o projecto prosseguiu para além da greve. Imaginam a inquietação intelectual destas pessoas, para quem a ideia de ficar sem um suporte onde debater os seus pontos de vista era tão insuportável que decidiram lançar a sua própria revista, recrutando amigos e conhecidos?
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