Mostrar mensagens com a etiqueta Nazismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Nazismo. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, outubro 11, 2011

Sobre a inevitabilidade de uma política de austeridade

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Outubro de 2011
Crónica 41/2011

O preconceito tecnocrático não admite qualquer avaliação moral. A austeridade é uma solução tecnicamente perfeita. Final.

A cena passa-se em 1942. Messe de oficiais nazis no campo de extermínio de Auschwitz. Entra de rompante na sala um oficial de uniforme desalinhado, cabelo em desordem, olhar tresloucado.
“É terrível, é terrível. Espreitei pela janela do Edifício H e sabem o que eles estão a fazer? A gasear os judeus. A gaseá-los todos. E depois estão a queimar os corpos naqueles fornos... É horrível!”
Os oficias olham-no com um ar indiferente, alguns com um leve ar de troça.
“Temos de parar aquilo!... Imediatamente!”.
“Sim?”, diz finalmente um dos oficiais mais velhos, olhando-o sem se levantar, com um ar de autoridade. “Então como é que achas que os devíamos matar?” (Olha em volta para preparar os camaradas para um momento de diversão. Os presentes voltam-se para gozar a cena. Sorrisos irónicos.)
O olhar do oficial que acabou de entrar salta de cara em cara, com desespero, à procura de um gesto de simpatia.
“Não sei, mas isto é horrível, temos de parar com isto...”
“Com uma bala na cabeça? Matamo-los com uma bala na cabeça?..”
“Não sei, não sei, mas assim não...”
“Pois é... É que é muito fácil chegar aqui e começar a criticar, mas depois quando se pergunta qual é a alternativa não se avançam soluções...”
“Não sei qual é a alternativa, mas isto não... É horrível...  É imoral… Não podemos...”
“Se os matássemos com uma bala demorávamos imenso tempo e era caríssimo. O gás é mais rápido e mais barato.”
“Mas temos mesmo de os matar?...”
(Um murmúrio percorre a sala. Alguns oficias deixam de sorrir.)
“Não sei... se calhar podíamos não os matar... todos...”
“E quê, libertávamo-los? E depois tínhamos de lhes devolver as casas, não? Já pensaste nisso? E temos de pensar na nossa segurança. É muito fácil dizer isso...”
“Se calhar podíamos prendê-los... Prisão perpétua!...”
“Isso é mesmo teu. Isso é de uma ingenuidade! É muito fácil dizer isso, mas e a alimentação? Pensaste na alimentação? E alojamento? E roupas? Pois é, não pensaste... ”
“Mas é horrível... não podemos fazer isto...”
“Então arranja lá uma alternativa, tu que achas que és mais esperto que os outros todos! Tu achas que nós não andámos a matar a cabeça para ver se encontrávamos outra maneira de fazer isto? Mas não há alternativa... Agora é muito fácil vir para aqui dizer que isto é horrível, que há maneiras melhores de fazer e mais não sei quê, mas depois quando te pergunto que maneiras melhores é que são essas, não sabes, pois não? E se achas que há outras soluções, tens uma oportunidade agora para dizer qual é. Arranja-me uma alternativa e eu vou já lá fechar o gás...”
“Então fecha... vai fechar o gás...”
“E depois o quê? É que não é só fechar o gás. É preciso arranjar uma alternativa. Arranja-me uma maneira barata e rápida de matar aqueles gajos todos e eu adopto-a logo...”
“Mas se calhar podíamos falar com eles...”
“É pá, há ali gajos a falar mais línguas que eu sei lá... Não dá para falar. Isto é a única solução. Tu achas que eu não acho isto horrível? Tu achas que se houvesse uma alternativa eu estava a fazer isto? A questão é que não há...”
“Mas é horrível... o cheiro do gás, aqueles gritos...”
“Ah, isso é diferente! Aí já te dou razão!... O cheiro realmente é horrível. Já disse que era preciso queimar uns ramos de pinheiro...”
“O ranger daqueles portões, nunca me vou esquecer do ranger daqueles portões! E os gritos...”
“Bom, também não se pode insonorizar aquilo tudo. Mas o ranger dos portões fizeste bem em chamar a atenção. Tás a ver? Isso já é uma crítica construtiva. Amanhã vou mandar pôr óleo nos portões. É assim, de boas ideias é que nós precisamos... não é de discursos bota-abaixo que depois não dão alternativas...”
“Mas não podemos fazer isto... não podemos...”
“Não há alternativa, pá... Para mais já temos isto tudo a andar. Vir para aqui criticar sem ter alternativas é muito fácil.” (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, agosto 29, 2006

A memória de Grass

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 29 de Agosto de 2006
Crónica 30/2006

É indesmentível que a omissão deste episódio nos relatos da vida de Grass deve ser criticada.

A propósito da recente divulgação pelo escritor Günter Grass da sua participação nas Waffen-SS quando jovem, não faltou quem considerasse o silêncio que o escritor manteve durante sessenta anos sobre este episódio da sua vida como uma falta particularmente grave devido ao facto de Grass sempre ter insistido no dever de memória do povo alemão em relação ao nazismo.

Para estes críticos, a diferença manifestada entre prédica e prática por Grass seria o sinal de uma descarada hipocrisia que demonstraria a absoluta falta de autoridade moral do homem e do escritor.

No entanto, como este tipo de reacção veio principalmente de quem não demonstra grande simpatia pelas posições políticas do escritor, é difícil acreditar na total boa-fé desses comentários.

Por outras palavras: é difícil acreditar que, se Grass sempre tivesse defendido o esquecimento e o perdão em relação ao nazismo, os actuais moralizadores não vissem no episódio Waffen-SS a raiz secreta dessa atitude e não condenassem o escritor com uma particular veemência por defender uma posição pretensamente moral apenas para benefício próprio e lavagem da sua própria história. Numa terceira hipótese, se o escritor sempre tivesse contornado o tema do nazismo na sua obra e na sua acção cívica (o que teria sido difícil para um escritor alemão nascido em 1927), é igualmente difícil acreditar que os actuais críticos não o condenassem também de uma forma particularmente viva precisamente por isso, vendo nessa omissão uma forma interesseira de camuflar a mancha vergonhosa da sua folha militar.

Posto isto, é indesmentível que a atitude de Grass é criticável. A omissão deste episódio nos relatos da sua vida é uma mentira e deve ser como tal criticada. A questão aqui é o grau que deve merecer essa crítica - e não saber se o apreço que nos merece o escritor deve ser ou não posto em causa, nem outras bizarrices como discutir se ele deveria devolver o Nobel ou outras distinções literárias.

Essa avaliação não deve esquecer, porém, que é prática comum omitir dos relatos de vida ou dos currículos profissionais os episódios menos brilhantes e que isso apenas é criticável neste caso por se tratar de uma figura com uma actividade pública directamente relacionada com o assunto do episódio escamoteado.

A razão apresentada por Grass para o segredo é clara: a vergonha. Quando se tornou evidente para si o significado das Waffen SS e do próprio regime nazi (que era público e notório que apenas tinha surgido no espírito de Grass depois do fim da guerra), o sentimento que lhe ficou da sua adesão e da sua passagem por aquele corpo foi de vergonha – e escondeu-o até o conseguir admitir publicamente.

Repito que o acto é criticável, porque a mentira é moralmente criticável – Kant já deu os argumentos – mas a razão é compreensível e humana. E é de notar que tenha sido o próprio Grass a confessar a sua falta - que é, esclareça-se, a sua omissão do episódio e não o episódio em si, que dificilmente se pode considerar que tenha tido lugar em situação de consentimento informado.

O que me parece importante realçar nesta história, porém, não é a oposição que existe entre o segredo de Grass e a sua defesa da necessidade de encarar o passado, mas a forte relação que também existe entre ambos os factos. Essa necessidade, que Grass coloca na primeira linha do dever cívico e moral, foi claramente sentida pelo escritor de uma forma particularmente dolorosa e pessoal, como hoje percebemos. E não se pode deixar de ver na confissão agora feita e na sua militância pelo dever de memória como uma atitude de onde não está ausente um acto pessoal de contrição.

terça-feira, fevereiro 13, 2001

Precisamos de saber

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 13 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001


Há uma pergunta que pode ser declinada de inúmeras maneiras, mas que condiciona todas as outras. Como é que devemos viver? Que princípios nos devem conduzir nos nossos actos? O que é que está certo e o que é que está errado?
A pergunta é particularmente difícil porque não tem uma resposta, mas milhões. Intuímos que deve haver uma forma simples de responder, uma fórmula universal, mas a nossa experiência ensina-nos que essa resposta é diferente para cada caso, cada época, cada país. É uma pergunta a que não se responde apenas com uma receita, com um preceito, mas com os actos que praticamos todos os dias, a cada momento — é uma pergunta à qual não se consegue fugir com a batota das declarações de princípio.
No tempo em que as regras de comportamento e a definição do bem e do mal eram ditadas pelos deuses, as coisas eram mais simples. Havia uma doutrina e sacerdotes capazes de a interpretar, recompensas e castigos que marcavam claramente a escolha certa e o caminho da danação. Nas sociedades democráticas e laicas, a lei é o que mais se aproxima desse corpo normativo, mas preocupa-se apenas em definir interditos ou em impor regras convencionais — que são práticas, mas não se podem confundir com a ética.
As escolhas raramente são evidentes (ou pelo menos nunca o são quando já nos surgem como questões éticas) porque nos obrigam quase sempre a equilibrar valores que são todos importantes mas que não deixam por esse facto de ser contraditórios. Seria demasiado fácil.
Como devemos viver? Não há manuais que nos possam responder. Os códigos deontológicos que existem nalgumas profissões são isso mesmo, deontológicos, definem deveres profissionais.
A ética não tem códigos, vive da jurisprudência. Vive de analogias, de comparações, de exemplos, da análise das consequências. As suas referências são os exemplos vivos, ao nosso lado, os exemplos mortos da História.
Para saber como devemos viver, não é possível ignorar como viveram os que viveram antes.
Vem tudo isto a propósito da polémica sobre a colaboração da IBM com o regime nazi. Que a IBM colaborou com os nazis, está para além da dúvida. Os documentos citados no livro de Edwin Black provam-no (mesmo que nos atenhamos apenas às citações desses documentos). Mas é importante saber até que ponto colaborou, saber o que sabiam os administradores em Nova Iorque sobre o fim dos recenseamentos, sobre o uso dado às máquinas que se encontravam nos campos da morte, o que sabiam os responsáveis das várias filiais da empresa, saber por quanta eficiência (por quantas mortes) a tecnologia IBM foi responsável, conhecer a verdadeira dimensão desse envolvimento.
A IBM tem o dever de abrir os seus arquivos, de permitir o escrutínio de cada guia de remessa, de cada nota de encomenda, de cada carta e de cada factura, porque as pessoas tem o direito de saber. Têm direito a saber todos os que foram vítimas do nazismo, todos os familiares dos exterminados e todos os outros. Temos o direito de saber porque precisamos de saber. Precisamos de saber porque precisamos de poder julgar, de poder avaliar, perdoar e condenar. Precisamos de poder julgar porque a equidade do tratamento é uma das bases da nossa ética, que impõe a reciprocidade e a equidade como uma norma. Porque não podemos condenar uns e perdoar outros que tenham cometidos os mesmos actos.
Precisamos de saber o que fizeram essas pessoas da IBM, há 60 anos, porque as instituições (e as marcas) transportam valores (e bens) para além do período de vida das pessoas e têm de ser julgadas não apenas pelos actos das pessoas que as compõem mas também pelos actos que praticaram como instituições. Ou não são as empresas as primeiras a invocar a sua tradição e os seus actos passados quando se trata de afirmar as qualidades de uma marca?
Neste novo século, não queremos ter de tornar de novo a descrever o indescritível, não queremos ter de encarar o insuportável, de sofrer o inexplicável. Para isso, é preciso que possamos aprender com os nossos erros. E, para isso, é preciso que os conheçamos.
Mais ainda neste novo mundo onde nos dizem que a concorrência global é o único caminho para o bem-estar, onde só pode haver vencedores, onde a ideologia da vitória parece querer tornar-se o único critério de decisão.