por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Agosto de 2013
Crónica 31/2013
O Governo, através do Ministério da Educação e Ciência, decidiu aproveitar a situação de estado de choque em que vive a sociedade portuguesa para lançar mais uma investida contra a escola pública, ressuscitando a velha questão do chamado "cheque-ensino", bandeira original do neoliberalismo.
A direita reaccionária sempre odiou a escola pública que, sendo o instrumento de eleição para o combate às desigualdades sociais, constitui o principal obstáculo ao seu programa de reforço do poder e da riqueza de uma casta de privilegiados à custa do empobrecimento e do embrutecimento da restante população. O programa é velho, mas é sempre novo porque a direita reaccionária nunca desistiu dele e a ele regressa sempre que a ocasião se proporciona, adaptando o argumentário ao ar do tempo.
O Governo apresenta a questão do "cheque-ensino" como uma medida que visa garantir "o direito de opção educativa das famílias", o que significa, em português corrente, que o Governo considera que os pais têm o direito de escolher as escolas que os seus filhos devem frequentar e que essa escolha deve poder ser feita não apenas de entre o universo das escolas públicas, mas no universo de todas as escolas, públicas, privadas ou cooperativas. Às vezes o Governo fala mesmo no "dever" do Estado "apoiar o acesso das famílias às escolas particulares e cooperativas."
A propaganda do Governo, e a do neoliberalismo em geral, usa neste debate como palavra-chave a "liberdade de escolha" dos cidadãos. E a liberdade de escolha é uma coisa boa por definição. Quem não é a favor da liberdade de escolha? Só que esta liberdade de escolha é uma falácia, porque não existe nenhum direito à escola privada que o Estado deva garantir a todos os cidadãos. O que existe, sim, é o dever do Estado fornecer educação de qualidade a todos os cidadãos, independentemente das suas condições particulares. A pobres e ricos, brancos e pretos, ateus e budistas. Frequentar uma escola privada não faz parte dos direitos humanos ou dos direitos cívicos de que um cidadão goza e não faz certamente parte dos deveres do Estado garantir esse "direito". Numa sociedade capitalista, como a nossa, os cidadãos têm acesso aos serviços privados que possam comprar e nada mais. E não compete ao Estado (a todos nós) financiar serviços privados a não ser em condições excepcionais, quando seja evidente que essa entidade particular oferece um serviço insubstituível de interesse público, de acesso universal e em condições vantajosas para a comunidade. Não é o caso da escola privada.
O "cheque-ensino" visa vários objectivos: financiar empresas privadas, no âmbito do programa ideológico da direita, de transferência de recursos financeiros para o sector privado e de pauperização do Estado, à la PPP; desviar recursos da escola pública de forma a reduzir o âmbito e a qualidade da oferta (o que está a suceder); impor a ideia de uma escola privada "boa", que o Governo quer proporcionar a todos, e de uma escola publica "má", que deve ser marginalizada; e, como corolário dos anteriores, dar origem a um sistema dual de ensino, de qualidade diferenciada, para ricos e pobres.
Há no discurso do Governo uma outra falácia, não menos grave do que a anterior: a ideia de que as escolas públicas e privadas são estabelecimentos de ensino absolutamente equivalentes, com culturas e práticas em tudo semelhantes e cuja única diferença é a forma de propriedade. De facto, não é assim. A escola pública tem, antes de mais, uma dimensão inclusiva e universal, que a escola privada não tem (nem tem de ter). A escola pública é igualitária no acesso e no funcionamento, por vontade, por definição e por missão e a escola privada não o é nem tem de ser. Dizer que a escola privada é igual à escola pública releva da mesma miopia e da mesma falta de sentido social que leva a dizer que a escola serve apenas para fornecer conhecimentos técnicos de forma a satisfazer as necessidades do mercado de trabalho, como pretende o actual Ministério da Educação e Ciência.
É por isso que comparar o custo de um aluno na escola pública e o de um aluno na escola privada não tem sentido. A comparação serve actualmente a escola pública, mais barata, mas mesmo que ela custasse o dobro da privada ela deveria continuar a ser suportada pela comunidade. Porque a escola pública trabalha para transformar todos os indivíduos do pais em cidadãos e não apenas para produzir alguns técnicos bem pagos. A grande diferença é que a escola pública quer que todos sejamos melhores e assume esse objectivo em relação a todos, mesmo aos mais problemáticos. A escola privada é selectiva por natureza - faz com frequência a mais injusta das selecções, a selecção de classe - e convive com naturalidade com um sistema de castas que a escola pública tem como missão destruir. Fazer outsourcing da educação pública a um sistema produtor de exclusão como a escola privada não faz sentido.
Há uma outra razão para um Estado democrático privilegiar a escola pública: a sua qualidade. A escola pública, em Portugal e no mundo, é talvez o mais bem sucedido de todos os empreendimentos humanos, tendo sido central no combate à ignorância, à pobreza e à injustiça e na construção da democracia, da cultura e da ciência modernas. Algo que deveria fazer pensar os nossos governantes, se o seu objectivo não se resumisse a servir os poderosos à custa dos mais fracos. (jvmalheiros@gmail.com)
Mostrar mensagens com a etiqueta Escola. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Escola. Mostrar todas as mensagens
terça-feira, agosto 13, 2013
terça-feira, junho 27, 2006
Discutir na escola
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Junho de 2006
Crónica 24/2006
Criar na escola um espaço de livre expressão, de confronto intelectual, de exercício de cidadania.
"Quem fala mal, pensa mal e vive mal". A citação é de Nanni Moretti e pertence aos solilóquios agridoces do comunista amnésico Michele Apicella no filme "Palombella rossa" (1989), mas seria possível encontrar declarações equivalentes noutros autores.
A questão é que as palavras são de facto importantes e que existe entre a organização do discurso e a faculdade de pensar uma relação estreita que não permite estruturar uma sem desenvolver a outra.
De entre as inúmeras falhas que se podem apontar ao sistema formal de ensino português, uma delas é sem dúvida a de não apostar suficientemente no desenvolvimento de competências da ordem do discurso.
É evidente que os estudantes têm de escrever e que devem falar – mas tudo ou quase tudo aponta para a produção de um discurso escrito estereotipado ("Esta pergunta aqui é para dizer o quê, stora?") e para um empobrecimento da oralidade. As razões são muitas – turmas grandes, programas carregados, iliteracia familiar, a influência criminosa da televisão, falta de hábitos de leitura, falta de preparação dos professores, problemas disciplinares, etc – mas a verdade é que os estudantes em geral (do básico, do secundário e do superior) evidenciam deficiências comunicacionais gritantes ao nível oral e escrito que se encontram na origem de inúmeros males maiores.
A verdade é que muitos dos estudantes (e mesmo dos licenciados) portugueses tem dificuldade em expor as suas ideias de forma articulada, em sustentar as suas opiniões ou expor os seus argumentos e mais ainda em submeter as suas convicções a uma discussão ou em desmontar uma argumentação alheia – oralmente ou por escrito.
É evidente que muito se poderá fazer neste domínio no âmbito das aulas de Português ou de Filosofia, por exemplo, – mas é possível e desejável que a escola consiga agir sobre este problema noutros momentos e noutros espaços, menos marcados pela necessidade de "avançar na matéria" e onde a comunicação com e entre alunos se pode estabelecer, em princípio, de forma mais fluida e participada.
Isso é possível e pode ser feito de forma agradável e eficaz em actividades extracurriculares (como podem ser o jornal da escola ou o grupo de teatro), mas há momentos curriculares que se prestam particularmente ao desenvolvimento das competências de exposição, comunicação e debate de ideias: os chamados (em eduquês) "períodos de ausência lectiva" ou (em português) as faltas dos professores, que devem ser ocupadas por aulas de substituição.
O documento "Organização do ano lectivo de 2006/07" (disponível no site do Ministério da Educação num irritante PDF em "bitmap" que não permite copiar o texto) sugere que as aulas de substituição sejam dadas por outro professor do mesmo grupo com base no plano de aulas do professor titular. Mas o mesmo documento admite que, na impossibilidade de fazer isso, o período de aulas seja ocupado por "actividades de enriquecimento e complemento curricular".
Ora é possível e proveitoso transformar essas aulas (em vez de aulas curriculares de segunda) em aulas de debate de primeira. A prática é comum na escola anglo-saxónica, mas é boa e pode ser explorada.
É evidente que, para fazer isto de forma séria, é indispensável que todos os professores recebam alguma formação – mas essa formação seria útil na sua actividade lectiva quotidiana. Isto permitiria proporcionar aos alunos um espaço simultaneamente de livre expressão e de lúdico confronto intelectual, de prática de exposição e discussão públicas e de exercício de cidadania.
Essas aulas poderiam partir da discussão organizada de um tema da actualidade e poderiam criar um espaço pedagógico enriquecedor para professores e alunos.
Texto publicado no jornal Público a 27 de Junho de 2006
Crónica 24/2006
Criar na escola um espaço de livre expressão, de confronto intelectual, de exercício de cidadania.
"Quem fala mal, pensa mal e vive mal". A citação é de Nanni Moretti e pertence aos solilóquios agridoces do comunista amnésico Michele Apicella no filme "Palombella rossa" (1989), mas seria possível encontrar declarações equivalentes noutros autores.
A questão é que as palavras são de facto importantes e que existe entre a organização do discurso e a faculdade de pensar uma relação estreita que não permite estruturar uma sem desenvolver a outra.
De entre as inúmeras falhas que se podem apontar ao sistema formal de ensino português, uma delas é sem dúvida a de não apostar suficientemente no desenvolvimento de competências da ordem do discurso.
É evidente que os estudantes têm de escrever e que devem falar – mas tudo ou quase tudo aponta para a produção de um discurso escrito estereotipado ("Esta pergunta aqui é para dizer o quê, stora?") e para um empobrecimento da oralidade. As razões são muitas – turmas grandes, programas carregados, iliteracia familiar, a influência criminosa da televisão, falta de hábitos de leitura, falta de preparação dos professores, problemas disciplinares, etc – mas a verdade é que os estudantes em geral (do básico, do secundário e do superior) evidenciam deficiências comunicacionais gritantes ao nível oral e escrito que se encontram na origem de inúmeros males maiores.
A verdade é que muitos dos estudantes (e mesmo dos licenciados) portugueses tem dificuldade em expor as suas ideias de forma articulada, em sustentar as suas opiniões ou expor os seus argumentos e mais ainda em submeter as suas convicções a uma discussão ou em desmontar uma argumentação alheia – oralmente ou por escrito.
É evidente que muito se poderá fazer neste domínio no âmbito das aulas de Português ou de Filosofia, por exemplo, – mas é possível e desejável que a escola consiga agir sobre este problema noutros momentos e noutros espaços, menos marcados pela necessidade de "avançar na matéria" e onde a comunicação com e entre alunos se pode estabelecer, em princípio, de forma mais fluida e participada.
Isso é possível e pode ser feito de forma agradável e eficaz em actividades extracurriculares (como podem ser o jornal da escola ou o grupo de teatro), mas há momentos curriculares que se prestam particularmente ao desenvolvimento das competências de exposição, comunicação e debate de ideias: os chamados (em eduquês) "períodos de ausência lectiva" ou (em português) as faltas dos professores, que devem ser ocupadas por aulas de substituição.
O documento "Organização do ano lectivo de 2006/07" (disponível no site do Ministério da Educação num irritante PDF em "bitmap" que não permite copiar o texto) sugere que as aulas de substituição sejam dadas por outro professor do mesmo grupo com base no plano de aulas do professor titular. Mas o mesmo documento admite que, na impossibilidade de fazer isso, o período de aulas seja ocupado por "actividades de enriquecimento e complemento curricular".
Ora é possível e proveitoso transformar essas aulas (em vez de aulas curriculares de segunda) em aulas de debate de primeira. A prática é comum na escola anglo-saxónica, mas é boa e pode ser explorada.
É evidente que, para fazer isto de forma séria, é indispensável que todos os professores recebam alguma formação – mas essa formação seria útil na sua actividade lectiva quotidiana. Isto permitiria proporcionar aos alunos um espaço simultaneamente de livre expressão e de lúdico confronto intelectual, de prática de exposição e discussão públicas e de exercício de cidadania.
Essas aulas poderiam partir da discussão organizada de um tema da actualidade e poderiam criar um espaço pedagógico enriquecedor para professores e alunos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)