terça-feira, maio 31, 2005

Água morna

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Maio de 2005
Crónica 18/2005

A que lógica obedecem as auditorias ministeriais de três em três meses senão à de uma campanha de marketing?

A comunicação do primeiro-ministro sobre a situação orçamental do país constituiu a primeira grande oportunidade de José Sócrates mostrar um estofo de estadista. A oportunidade consistia na existência de um problema grave (a crise orçamental) e na possibilidade real de pôr em prática uma solução (devido à confortável maioria parlamentar, à conjuntura partidária favorável e à existência de um largo consenso entre os técnicos quanto às medidas necessárias).

Sócrates teve a oportunidade mas falhou. Não falhou por ter apontado um caminho errado, mas pela tibieza com que esboçou os passos a dar. No discurso de Sócrates (que vale a pena ler no papel, pois a retórica é também a arte de dar a entender que se disse algo que não se disse) nem tudo é fogo de artifício, mas há demasiado fogo de artifício. Muitas das medidas anunciadas, parecendo corajosas, são de facto tímidas, quando não medrosas; outras, parecendo concretas, são vagas; outras, parecendo socialmente justas, são apenas populistas.

O discurso de Sócrates mostrou um político mais preocupado com a retórica do que com as medidas, mais preocupado com a imagem do que em governar o país. Se a sua coragem (que o primeiro-ministro, com uma frequência embaraçante, tanto gosta de declarar) não ficou demonstrada, a sua veia política também não: é que este era o momento, de todos os momentos, onde era possível lançar a semente de reformas ambiciosas.

O Estado deve exigir que os cidadãos contribuam para a sociedade de acordo com os seus rendimentos e património. Não se entende por isso que um sistema fiscal que se pretende socialmente justo não inclua um imposto sobre as grandes fortunas. O Estado perde a moral para atacar os prevaricadores que não pagam o que devem quando ele próprio institui que alguém que tem de facto mais deve pagar legalmente menos.

Quanto ao IVA, para além de se tratar do imposto que mais penaliza os pobres, como o PS não se cansou de dizer quando o PSD o aumentou, é duvidoso que o aumento da taxa se traduza num aumento da receita. A sua duvidosa justiça e a sua duvidosa eficácia deveriam ter sido suficientes para não adoptar a medida.

As medidas contra a evasão fiscal vão em geral no bom sentido, ainda que seria de exigir que Sócrates anunciasse um verdadeiro pacote de medidas concretas (só agora é que começou a pensar no assunto?) e não apenas generalidades. E algo que não se percebe de todo é a razão por que o Governo quer acabar com o sigilo fiscal de todos (no que é uma interferência intolerável na esfera privada) mas apenas propõe o levantamento do sigilo bancário nos casos “de particular risco” numa estranha transparência selectiva. Parece evidente que o cruzamento de dados por parte da Administração Pública faz sentido para evitar a fuga ao fisco, mas é indispensável tornar público o rendimento de cada cidadão? E não sendo indispensável será isso lícito? Afinal quem precisa de conhecer os meus rendimentos? O fisco ou o meu vizinho? Por outro lado, não deveria o fisco ter acesso directo às contas bancárias, se tem acesso a todos os outros dados relevantes para avaliar a situação patrimonial de um dado cidadão?

A aproximação dos regimes de segurança social do sector público e privado é sem dúvida necessária, em nome da equidade. Mas se a medida é justa e necessária porquê arrastá-la ao longo de três legislaturas (promessa impossível de garantir) e torná-la dessa forma talvez inaplicável? Porque não aplicá-la já, no espaço de tempo mais curto possível, e arrostar com a contestação sindical da medida? Parece ser um daqueles casos em que, por medo de saltar, se pretende transpor o fosso com três pequeninos passos.

As promoções automáticas são outro caso: porquê suspendê-las “temporariamente e a título excepcional” em vez de acabar com elas de vez, mantendo as promoções por mérito e concurso? Não serão elas uma injustiça e uma fonte de despesa? E que disparate é este das auditorias ministeriais de três em três meses? A que lógica obedecem senão à de uma campanha de marketing, onde se pretende ter sempre uma novidade para nos ir mostrando?

Estes sinais não nos dão motivo para confiar nem na justiça nem na determinação destas medidas.

E muito menos permitem confiar naqueles princípios de acção enunciados de forma geral sobre o fim dos privilégios, dos regimes de excepção, a reforma administrativa, etc.

terça-feira, maio 24, 2005

Circuitos paralelos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Maio de 2005
Crónica 17/2005

A quantos anos de encarceramento condenam os nossos tribunais uma criança que seja culpada do crime de ter sido maltratada pelos pais?

A Misericórdia de Lisboa lançou um novo programa, intitulado Famílias Solidárias, que visa proporcionar um ambiente familiar a crianças que poderiam ser legalmente adoptadas mas que possuem necessidades especiais ou outro tipo de problemas que fazem com que a sua adopção seja pouco provável.

Para evitar que essas crianças vivam toda a vida em instituições, à espera de uma adopção que pode não chegar nunca, sem beneficiar da segurança e do calor de um ambiente familiar, a Misericórdia vai tentar encontrar famílias dispostas a acolher estas crianças, vai dar-lhes formação específica para poderem lidar com as situações que vão ter de gerir e vai dar-lhes apoio financeiro se isso for necessário para satisfazer necessidades especiais da criança.

Todas as iniciativas neste âmbito que passem o teste da razoabilidade são de louvar e esta parece ser o caso.

O que já parece menos razoável é que uma das responsáveis do programa, em declarações ao PÚBLICO de ontem, tenha sublinhado o facto de que estas “famílias solidárias” não poderão adoptar as crianças que acolhem, ainda que possam viver com elas até estas se autonomizarem.

“Não podemos criar um serviço de adopções paralelo”, justifica a responsável da Direcção de Educação, Formação e Acção Social da Misericórdia, Marília Fragoeiro.

Ouvido sem reflectir, o argumento parece aceitável. A expressão “paralelo” sugere um estatuto obscuro, tráfico de influências se não mesmo de sobreiros, privilégios e benesses injustas, redundâncias administrativas e gastos supérfluos. Mas basta reflectir um pouco para se ver que aquilo que parece uma evidência não passa de um cliché sem sentido.

Não permitir que uma família que acolhe uma criança, que tem condições para a cuidar e que acaba por amá-la (porque isso não é automático, como pensam muitos) a possa adoptar é não levar em conta o interesse da criança.

É evidente que há casos em que a existência de circuitos paralelos é perniciosa e injusta, mas isso não quer dizer que o seja por definição. Muitas vezes a existência de canais paralelos permite soluções mais rápidas e melhores. O que é necessário é que o “paralelismo” seja claro, que as regras sejam equitativas e transparentes, que as “famílias solidárias”, os candidatos a adopção e as famílias de acolhimento saibam todos com o que podem contar. Pode perfeitamente haver vários canais de adopção, desde que exista comunicação e coordenação entre eles e desde que os critérios sejam os mesmos em todos eles para evitar situações de injustiça relativa. Impedir que uma família que recebe uma criança deficiente e vive com ela e a cuida e a ama a possa adoptar um dia – mas permitir que ela saia dessa família onde se sente bem para a deixar ser adoptada por outra família apenas porque esta outra entrou logo de início pelo “canal de adopção” é algo que não tem sentido. É um disparate e uma crueldade. E é profundamente injusto: haverá algum sentido em impedir que uma família que pretende adoptar uma criança seja preterida devido ao facto de... já cuidar dessa criança há dois ou três anos?

Pelo contrário, parece que precisaríamos de muitos mais “circuitos paralelos”, de muitos mais programas através dos quais fosse possível acolher e adoptar crianças abandonadas e maltratadas.

A preocupação de equidade é fundamental, mas em nome desse princípio seria mais importante tornar público (e efectivamente publicado) quantas crianças vivem em instituições do Estado e em instituições privadas de solidariedade social, que estatuto e que idades têm e durante quantos anos esperaram (e esperam) que os tribunais decretassem que podiam ser adoptadas.

Em nome da justiça, em nome do seu direito a serem tratadas como as outras crianças, seria muitíssimo mais interessante saber a quantos anos de encarceramento em instituições condenam os nossos tribunais uma criança que seja culpada do crime de ter sido maltratada pelos pais. Isso seria infinitamente mais importante.

terça-feira, maio 17, 2005

Anjos e demónios

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Maio de 2005
Crónica 16/2005

O padre de Lordelo do Ouro usou sem pudor o sangue de uma criança para levar avante a sua propaganda

1. Na semana passada, a propósito do assassinato de uma menina de cinco anos, um padre católico decidiu defender, desde o púlpito da missa de sétimo dia da criança, a tese de que este crime seria menos violento e menos grave do que um aborto. Segundo o padre, neste último a vítima do crime seria um ente incapaz de se defender, enquanto uma criança de cinco anos “pode reagir, pode chorar, queixar-se”.

Não se sabe se, no entender do padre, esta redução da gravidade evolui de forma linear com a idade da vítima, tornando-se o crime progressivamente menos grave à medida que passam os anos, para chegar a ser admissível numa certa idade, desejável a partir dela e acabando mesmo por ser louvável nos anos mais maduros da vítima. Ou se a gravidade do crime, dependendo não da idade em si mas da capacidade da vítima se defender, vai descendo à medida que aumenta o seu vigor físico para, a partir de uma certa idade (dos 25 anos, digamos) se lançar numa curva crescente de pecaminosidade.

É admissível que um sacerdote ou a Igreja adopte uma posição fundamentalista (a expressão é aqui usada com absoluto rigor) sobre a defesa da vida humana e decida considerar que tudo aquilo que classifique como “vida humana” (mesmo que se trate de uma bolinha de células indiferenciadas) deve ser defendido a todo o transe. O que já não é admissível, nem para a Igreja nem para um sacerdote, é decidir que algo que considera como vida humana vale menos do que outra vida humana. Vale a pena lembrar aqui que os defensores da liberalização ou descriminalização do aborto até um dado momento de gestação o fazem porque não consideram o embrião até esse momento como “vida humana” – debatendo-se esse limite da admissibilidade com base em critérios como a viabilidade do feto ou a emergência da consciência.

Quando se diz que A é mais grave do que B, está-se forçosamente a dizer que B é menos grave que A. E compreende-se mal como relativamente a um crime de tal brutalidade como o assassinato de uma criança de cinco anos alguém se possa atrever a algum tipo de branqueamento. A observação é desumana e, se serve algum fim, é para nos mostrar como nestas questões doutrinais a Igreja e os seus sacerdotes se preocupam mais com a retórica do que com as pessoas e o seu sofrimento. Inserindo-se zelosamente numa campanha de demonização do aborto a que a Igreja entendeu dar prioridade devido à iminência de uma decisão política, o padre de Lordelo do Ouro decidiu usar sem pudor o sangue de uma criança para levar avante a sua propaganda. Se ainda lhes sobrassem lágrimas, os anjos teriam chorado.

2.
No registo “todos somos iguais mas uns são mais iguais que outros”, houve quem se escandalizasse com o acórdão do Tribunal Constitucional que considerou inconstitucional o articulado do Código Penal que considera que os actos heterossexuais praticados com menores dos 14 aos 16 anos são ilegais se não forem consensuais, mas são sempre ilegais quando se trata de actos homossexuais, quer sejam ou não consensuais.

É de uma liminar clareza que o artigo 175 é inconstitucional, por definir um quadro penal diferente para um acto sexual (praticado exactamente nas mesmas circunstâncias) conforme ele seja praticado por heterossexuais ou homossexuais. Pode-se não concordar com a Constituição, não se pode é achar que ninguém deva ser discriminado em função da sua orientação sexual e aceitar o artigo 175 do Código Penal.

Que determinados actos choquem determinadas pessoas é admissível, o que não se pode admitir é que o quadro legal seja definido em função desses preconceitos. Da mesma forma que a liberdade de expressão não é a liberdade de os outros dizerem aquilo com que eu concordo, a liberdade de orientação sexual não pode ser a liberdade de os outros praticarem a sexualidade com que eu concordo.

terça-feira, maio 10, 2005

Vanessa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Maio de 2005
Crónica 15/2005

As instituições, os técnicos e, acima de todos, os tribunais falham miseravelmente.


No momento em que a pequena Vanessa, de cinco anos, estava a ser objecto dos maus-tratos que passados três dias iriam provocar a sua morte, o Instituto de Reinserção Social do Ministério da Justiça produzia um relatório onde se propunha a entrega da criança aos cuidados da sua avó paterna.

Contada assim, a história parece um caso de um atraso trágico, de uma intervenção que podia ter salvo uma criança em perigo mas que chegou tarde de mais. O puro terror emerge quando se sabe que a avó a quem as autoridades se preparavam para entregar a Vanessa terá sido, juntamente com o pai da criança, a autora dos maus-tratos que a vitimaram.

Perante este horror indizível é impossível evitar uma reacção visceral de raiva e tristeza e revolta. Mas quando se constata que este caso é apenas mais um, depois do da Joana, do da Catarina, do de tantas outras crianças, maltratadas e mortas pelo pai, pela mãe, pela madrasta ou pelo padrasto, é evidente que temos de perguntar o que se passa. O que se passa com as famílias mas também com as instituições que têm por dever proteger estas crianças e que falham de forma tão flagrante.

Os responsáveis das Comissões de Protecção das Crianças e Jovens em Risco dizem que compreendem a consternação do público mas que as instituições não podem servir de bode expiatório, que fazem tudo o que devem, se não mesmo tudo o que podem. Mas não é assim.
As instituições que deviam proteger as crianças falham miseravelmente. Os técnicos falham miseravelmente e, acima de todos, os tribunais falham miseravelmente. Como é possível que estejam a fazer o que devem se isso não é suficiente?

Não se trata de encontrar bodes expiatórios, trata-se de identificar erros, de evitar que estes crimes se repitam. E a verdade é que esses erros (muitos, pelo menos) são evidentes a posteriori.

O que não é tolerável é que a história se repita e mais uma criança, hoje, amanhã, passe pelo horror e pela morte, quando uma intervenção a pode salvar. Porque estas não são histórias onde pessoas agridem crianças sem que nada o pudesse prever, na sequência de um ataque de loucura. São casos de agressões permanentes, em ambientes onde se manifestam todos os sinais de alarme possíveis.

O caso da Vanessa esteve três anos nos tribunais. Mas a decisão final sobre o seu destino ia ser tomada sem que o mesmo tribunal soubesse sequer com quem a criança tinha vivido durante cinco anos. Como é isto possível? Como é que é tomada uma decisão sobre uma criança de quase seis anos sem saber de quem ela gosta, sem lhe perguntar com quem quereria viver, sem saber que a criança estava pronta a morrer só para dizer que gostava mais da “mãe Rosa”? Como é possível que o tribunal tenha andado três anos à procura dos pais da Vanessa e tenha achado isso mais importante do que a própria Vanessa? Não era o seu próprio desaparecimento sinal de abandono da criança?

Há uma resposta que é evidente, neste caso e em muitos outros: os tribunais, que deveriam preocupar-se com a protecção das crianças, privilegiam de forma irracional e imoral a família biológica.

A verdade é que a lei determina o primado do direito da criança mas os nossos juízes continuam a procurar pais fugitivos durante anos e, quando os encontram, a tentar convencê-los por todas as formas possíveis a receber as crianças que abandonaram, que espancaram, que violaram, para poder dizer no altar de alguma ambígua divindade que reuniram uma família. E isto tantas vezes contra a opinião dos assistentes sociais, dos psicólogos, dos médicos e professores que conhecem as crianças e o seu meio.

Quanto sangue tem de correr antes que os juízes compreendam que o sangue não dá garantias? Não lêem as estatísticas? Não sabem que os abusos, os maus-tratos de crianças, as violações, os assassinatos acontecem mais na família que fora dela? Durante quanto tempo vamos continuar a sacrificar o interesse e a vida de crianças a estas caricaturas de famílias?

Durante quanto tempo vamos continuar a proteger os pais biológicos das crianças, mesmo depois de estes terem provado a sua falta de condições humanas para se ocuparem de uma criança, mesmo depois de estes terem provado o seu desinteresse quando não a sua crueldade?

Durante quanto tempo vão os tribunais manter crianças a viver em instituições (há mais de dez mil crianças a viver assim em Portugal) em vez de as entregar às famílias que as querem adoptar e as esperam do lado de fora? Durante quanto tempo vamos andar a consumir a felicidade das crianças em cartas registadas a endereços que já não existem, à procura de familiares que não querem saber para tentar localizar um pai ou uma mãe que quer saber ainda menos?

Enquanto o fizermos, os olhos da Vanessa, da Catarina, da Joana, vão continuar a encarar-nos com esse misto de surpresa e alegria triste com que nos olham das fotografias, mas nós sabemos que o seu olhar é de acusação.

terça-feira, maio 03, 2005

Privilégios

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 3 de Maio de 2005
Crónica 14/2005

Existe um trabalho de reabilitação e de educação cívica a fazer no seio da polícia

1- O carro segue pela A1 a uns 160 quilómetros por hora. O carro é potente, seguro e confortável, o condutor experiente e hábil e o tráfego reduzido.

De repente, ouve-se uma sirene, aparece um carro de polícia, há uma ordem para encostar, o carro imobiliza-se na beira da estrada, um polícia aparece na janela do condutor e inicia-se o diálogo: “O sôr ia um bocadinho depressa!” “Pois é sô guarda, se calhar ia... Estou com um bocadinho de pressa...” “Pode mostrar-me os seus documentos?” “Com certeza... Sabe, eu sou advogado e vou com um bocadinho de pressa para um julgamento...” O guarda fica a olhar para a identificação que o outro lhe estende. “Bom, sô tôr...” diz muito lentamente, “Veja lá se para a próxima não vai com o prego a fundo”.

2 - Outra auto-estrada, nos arredores de Chicago. O carro segue a 75 milhas por hora (120 km/h). Uma sirene, uma ordem para encostar, um polícia que se aproxima: “Good morning, sir. Seventy five on the meter and the limit is 65”. O condutor entrega a sua carta de condução. O polícia devolve-lha acompanhada de um papel onde está escrito que tem 48 horas para pagar a multa e onde se explica que, caso a queira contestar, se deve apresentar no Tribunal na semana seguinte. O papel já traz o dia e a hora da audiência e até o nome do juiz.

3 - Os dois episódios acima não são ficção. Assisti a ambos na qualidade de passageiro dos dois carros. Da primeira vez fiquei estarrecido com a desfaçatez do condutor, mas mais ainda com a eficácia da sua táctica; na segunda, impressionado com a eficiência do processo e com o facto de nem ter passado pela cabeça do condutor discutir com o polícia.

Não pretendo que cada uma destas histórias seja exemplar da fiscalização nas estradas de cada um dos países. São episódios isolados que valem o que valem. Mas todos sabemos que o episódio português ilustra uma situação de impunidade que se vive nas estradas em Portugal.

Seria interessante conhecer a distribuição de certas multas por classes sociais ou por profissionais. Descobriríamos perdões sistemáticos a muitos profissionais de condução descuidada devido à pressa em “chegar ao tribunal”. Os jornalistas fazem aliás parte destes grupos para quem a polícia manifesta em geral uma particular compreensão, mas também lá estão os médicos, os funcionários da justiça, militares e forças militarizadas, profissionais do espectáculo, todos os carros com motorista particular (nunca se sabe de quem poderá ser o carro) e muitos outros. A aplicação da lei é, quando existe, iníqua (mesmo sem falarmos da eventual corrupção). E um sistema destes não possui qualquer capacidade pedagógica. Não se trata de defender a tontice da “tolerância zero”, mas de defender a equidade.

O Presidente da República encontra-se em plena campanha contra a sinistralidade e tem colocado a sua tónica, correctamente, na educação dos condutores. Mas é bom não esquecer que há uma batalha a travar pela educação dos agentes de regulação do trânsito. Há algumas décadas, essa batalha era pela simples alfabetização; hoje é pela sua formação democrática e pelo seu empenho profissional (o que implica perceberem o que estão cá a fazer). Numa situação onde a infracção se tornou regra, onde os condutores acham que têm o direito de galgar um traço contínuo porque o carro da frente abrandou, que têm o direito de estacionar no passeio porque não encontraram outro lugar vazio, que têm o direito de desrespeitar o limite de velocidade porque “conduzem bem” e onde, paralelamente, os polícias se habituaram a viver numa situação de inferioridade social e a ser premiados por aplicar a lógica do privilégio de classe em detrimento do direito igualitário da democracia, é evidente que existe um trabalho de reabilitação (no sentido etimológico do termo) e de educação cívica a fazer no seio da polícia.