terça-feira, março 31, 2015

A indiferença de Costa e a falta de diferença do PS

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Março de 2015
Crónica 12/2015


Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?

Há pequenos gestos que são reveladores. Pequenos gestos que nos fazem ver as coisas de maneira diferente, que nos fazem mudar de opinião sobre uma pessoa ou sobre uma ideia, que nos alertam, que nos confirmam uma suspeita.

Um desses momentos reveladores aconteceu na semana passada com António Costa, quando lhe perguntaram o que tinha a dizer sobre a candidatura presidencial de Henrique Neto, militante e antigo deputado do PS, e quando, depois de algumas hesitações, acabou por dizer que a candidatura lhe era ”indiferente”.

A reacção de Costa, com a sua mal disfarçada irritação, percebe-se bem. Nesta fase, em que a questão da eleição presidencial é simultaneamente tão fundamental e tão prematura, em que o panorama político e o leque de candidatos é tão confuso tanto à esquerda como à direita, em que as presidenciais ameaçam transformar-se numa arena de primeiro plano da luta política não só entre o PS e o PSD, mas também entre as diversas forças de esquerda, em que o PS não encontra nas suas hostes (e deus sabe como procura) um candidato de jeito, em que receia perder ou ter um resultado pouco convincente com um candidato seu e em que receia tanto ou mais ganhar com um candidato que acabe por apoiar a contragosto, é natural que Costa gostasse de controlar um pouco mais os candidatos da sua área politica que entram no tabuleiro.

No entanto, a atitude de Costa, se se percebe bem, não pode deixar de cair muito mal mesmo a alguém que, como eu, nem se sente politicamente próximo de Neto, nem tenciona votar nele nas presidenciais.

Não é razoável que o secretário-geral do PS faça este tipo de comentários em relação seja a que candidato presidencial for, já que não pode ser indiferente para um líder politico saber quem está na corrida presidencial, e dizê-lo não pode deixar de ser considerado um gesto de despeito e uma manifestação de hipocrisia, para além de um sinal de desrespeito para com o processo eleitoral. Mas, se não é razoável que o comentário seja feito, não é sequer admissível que ele seja feito em relação a um militante do PS que, por acaso, até possui um currículo de actividade cívica particularmente respeitável.

Há, infelizmente, muitas pessoas no circuito dos partidos que poderiam justificar o menosprezo de Costa. Mas Henrique Neto não está nesse grupo e a arrogância de Costa fica-lhe mal. Ainda que Henrique Neto fosse um ilustre desconhecido, mandaria o mais leve verniz democrático que Costa saudasse a sua candidatura, lembrasse que as candidaturas presidenciais não passam pelos partidos e que um amplo confronto de pontos de vista só pode dignificar a eleição. (Fico com uma dúvida: se tivesse sido Miguel Relvas a apresentar a sua candidatura, Costa diria que tal candidatura não dignificava a democracia ou faria um salamaleque protocolar, em nome das relações interpartidárias?)

Há razões para Costa ter ficado irritado com a candidatura de Henrique Neto: antes de mais, o facto de ter percebido que será difícil encontrar melhor; depois, a saudável independência em relação ao aparelho do partido que o empresário sempre manifestou, o seu espírito crítico sobre o PS e a prática partidária em geral e o facto de Neto não ter procurado a sua bênção prévia. Mas Costa esquece-se de que a independência e espírito crítico que Neto exibe é algo que muitos portugueses gostariam de ver em Belém.

Depois de Costa, figuras do PS com o currículo e a autoridade moral de Augusto Santos Silva e José Lello vieram também tentar morder nas canelas de Henrique Neto: o primeiro para o classificar como um “bobo” que procura os seus 15 minutos de fama e o segundo para o considerar o “Beppe Grillo português”... Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?

Ou haverá algum rumo político que um dia vá emergir daquela amálgama? Algum pensamento que se consiga afirmar sem esperar pelo que o PSD tem a dizer e sem esperar pelo que a União Europeia queira autorizar?

A atitude de António Costa em relação a Henrique Neto alimenta as razões de descrença de muitos portugueses na política e nos políticos, reforçando a ideia de que os actuais partidos vêem a política como um couto que lhes está reservado e reagem com hostilidade a qualquer discurso crítico da sua actuação. O que é mais preocupante na reacção de Costa não é a sua indiferença, mas a sua falta de diferença.

É curioso verificar, nos comentários às notícias sobre Neto, como a honestidade e a frontalidade manifestadas pelo candidato ao longo da vida constituem as suas qualidades mais apreciadas — independentemente das propostas reais que venha agora a fazer. E como se receia, em relação a este e a outros candidatos que se perfilam, que eventuais acordos com os partidos possam ferir essa honestidade. Quando os partidos que controlam o sistema político são percebidos pelos cidadãos como os principais agentes corruptores da política, algo está podre. E quando esses partidos nem percebem isso, é urgente encontrar-lhes alternativas.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, março 24, 2015

Lei antiterrorismo vai instituir o crime mental?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Março de 2015
Crónica 11/2015


O pacote antiterrorismo é uma extensão à Europa do infame USA Patriot Act de George W. Bush.
A verdade é que somos crédulos. Não é uma questão de opinião, é um facto constatado pela investigação. Somos crédulos. Não só nós, os portugueses, mas a espécie humana em geral.

Pelo menos a variante que vive nas sociedades industriais da actualidade e que passa as suas cinco horas por dia em frente da televisão. Acreditamos na propaganda que vem nos rótulos dos produtos que compramos no supermercado (“Seleccionámos as melhores laranjas para si”) e acreditamos no que nos dizem os políticos mesmo quando se trata de figurões que vemos mentir regularmente na TV, noticiário após noticiário (“Portugal tem agora um Estado social mais forte”). A verdade é que gostamos de acreditar. É mais simples, dá menos trabalho, permite-nos manter um grau de confiança na espécie humana que torna a nossa vida menos amarga e mais esperançosa e permite-nos manter uma boa imagem de nós próprios. Afinal, se a gente que manda é tudo boa gente, não é preciso fazermos nada de especial, pois não? Basta fazer o que eles dizem, mais coisa menos coisa. Não é como se estivéssemos a negligenciar o futuro dos nossos filhos ou a ser cúmplices da destruição do planeta, não é?

É isso que explica que o PSD tenha os votos que tem nas sondagens em vez dos 5% que seriam compreensíveis. Acreditamos que eles não podem ser tão desonestos como parecem e que não podem ser tão indiferentes como são. E fazemos a mesma coisa com as leis que a maioria aprova no Parlamento. Mesmo quando as leis são tão vagas que tudo pode acontecer, mesmo quando abrem caminho à arbitrariedade e à discricionariedade, preferimos acreditar que vai haver sensatez e equilíbrio na sua interpretação e na sua aplicação.

As chamadas leis antiterrorismo que estão a ser discutidas na especialidade na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, depois de terem sido aprovadas na generalidade pelos partidos do Governo e pelo PS, são um desses casos.

Tornar um crime a consulta de sites que defendem o terrorismo? Parece um bocado excessivo, principalmente quando todos nós já fizemos precisamente isso e, se não fizemos mais, foi porque o Google Translator ainda é um bocado canhestro a traduzir o árabe, mas, se a lei for aprovada, queremos acreditar que será aplicada com sensatez, conta, peso e medida.

Proibir o acesso a esses sites? Forçar os fornecedores de acesso à Internet a impedir o acesso dos utilizadores e a identificar e denunciar os que lá acedam? Enfim, pode ser um atentado à liberdade de expressão, mas certamente que não se vão fechar todos os sites mas só os que forem mesmo muito, muito terroristas.

Prender e acusar de terrorismo todos os que façam a sua apologia? Bom, vai ser difícil definir exactamente o que é a “apologia do terrorismo”, mas certamente que também aqui se vai usar da sensatez, da inteligência, da finura de análise e do cuidado em não ferir os direitos fundamentais dos cidadãos, além de que todas estas leis surgem na sequência de decisões das Nações Unidas e do Conselho da Europa, que são, como se sabe, instituições preocupadas com os direitos humanos.

Acusar e condenar as pessoas que viajem para os territórios ocupados pelo Daesh com a intenção de praticar actos terroristas? Bom, é um bocadinho mais difícil adivinhar intenções, mas com um bocadinho de imaginação...

Sejamos claros: aprovar um pacote legislativo tão vago na definição dos termos como o que este se arrisca a ser é abrir a porta a todos os excessos e a uma redução brutal das liberdades usando como pretexto o justificado horror dos cidadãos perante os excessos do Daesh e a injustificada propaganda segundo a qual esta organização terrorista consegue transformar jovens cordatos em assassinos sanguinários com uma varinha de condão agitada através da Internet.

O pacote legislativo que tem estado a ser adoptado em diferentes países da União Europeia, na sequência da resolução 2178 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, não é mais do que uma extensão à Europa do infame USA Patriot Act promulgado por George W. Bush e tem como ambição transformar-se num cenário Minority Report: criar uma divisão de pré-crime capaz de identificar no comportamento dos cidadãos sinais precursores da adesão a uma organização terrorista.

O que é particularmente preocupante na “Estratégia Nacional Antiterrorismo” em discussão é a ligeireza com que se impõe uma filosofia de inversão do ónus da prova – que o PS via com tanta preocupação (e nenhuma razão) quando se tratava de combater o enriquecimento ilícito, mas que não consegue discernir aqui. Se o diploma em discussão for aprovado, um cidadão poderá ser condenado por terrorismo se visitar sites que façam a apologia do terrorismo e se viajar para um território sob o controlo de uma organização terrorista com a intenção de aderir a ela. Não é necessário que cause o menor mal nem que haja provas disso, basta a convicção das autoridades de que, na sua mente, poderá ter havido o desejo de praticar um acto terrorista – seja o que for que o legislador entenda por tal coisa. E caber-lhe-á a ele provar a sua inocência. Sonhará o PSD prender-nos a todos um dia, pelos pensamentos que entretemos sobre os seus dirigentes?

jvmalheiros@gmail.com


terça-feira, março 17, 2015

Um apelo à justiça popular para caçar o voto

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Março de 2015
Crónica 10/2015


A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” constitui um convite ao linchamento popular.

Não existe nenhuma razão para que as autoridades judiciais portuguesas não colijam uma base de dados de pessoas condenadas por crimes sexuais contra menores. Bases de dados desse tipo podem ser muito úteis, nomeadamente em estudos de criminologia.

Foi, aliás, com surpresa que li as primeiras notícias sobre a criação desta base de dados, pois supunha que elas existissem em entidades como o Ministério Público, com dados sobre todos os indivíduos alguma vez condenados pelos tribunais portugueses e, caso existissem, fazer uma “lista de pedófilos” resumir-se-ia a fazer uma simples pesquisa.

Mas uma coisa é as autoridades judiciais possuírem um registo deste tipo e outra, radicalmente diferente, é disponibilizarem esses dados a qualquer cidadão. É verdade que o “registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores”, cuja criação foi aprovada na semana passada em Conselho de Ministros, não permite a consulta indiscriminada por qualquer um, mas a definição das entidades e pessoas que podem solicitar a sua consulta (não apenas as autoridades policiais e judiciárias, os serviços de reinserção social e as comissões de protecção de crianças e jovens mas também “pais com suspeitas”) traduz-se, na prática, num acesso quase universal.

Isto é tanto mais assim quanto a justiça portuguesa continua a demonstrar diariamente nas páginas dos jornais a sua incapacidade para manter em segredo informação sensível relativa a investigações em curso. São por isso de aceitar apostas para o tempo que irá mediar entre a criação da lista e a sua publicação na Internet – ou a publicação de excertos seleccionados, reais ou fabricados.

A criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais com suspeitas” ou de potenciais empregadores constitui, na prática, um convite ao linchamento popular. Esse linchamento pode não tomar a forma extrema de um atentado contra a vida do pedófilo condenado, mas será, no mínimo, uma condenação ao ostracismo. É duvidoso que uma pessoa identificada como fazendo parte desta lista, mesmo depois de ter cumprido a pena e mesmo que não haja qualquer suspeita sobre o seu comportamento, possa encontrar e manter um emprego ou, simplesmente, manter relações sociais de algum tipo com alguém. Do que se trata – no melhor dos casos – é de uma pena de degredo, não decretada por nenhum tribunal, que se vem somar à condenação anterior. No pior dos casos, trata-se da incitação à prática de crimes de agressão por parte de pais legitimamente preocupados mas irracionalmente exaltados.

A questão é que, sendo possível a consulta desta lista – ou a certificação, por parte das autoridades, de que alguém dela faz parte ou dela não consta –, muitos pais se sentirão impelidos a fazer a consulta em relação aos funcionários e professores da escola dos filhos, ao instrutor de natação, à fisioterapeuta, ao merceeiro simpático, ao enfermeiro solícito, apenas para não pensarem que poderão estar a negligenciar a protecção dos seus filhos.

O que se segue a estas consultas, quando se encontre de facto um ex-condenado nalgum lugar, é a criação de um clima de medo e de ódio, de acusações e de recriminações, que não pode deixar de causar profundos danos ao tecido social.

Isto para não falar dos casos de falsas identificações que sempre surgem nestes casos e, inversamente, da falsa sensação de segurança que pode ser criada ao constatar que alguém, afinal, não consta da lista.

Uma pergunta que se deve fazer é “porquê uma lista de pedófilos e não de outros criminosos?”. Será a pedofilia o crime mais frequente em Portugal? Será o mais preocupante? Por que não uma lista de infanticidas? De homicidas? De abusadores não sexuais de crianças? De pessoas que matam os cônjuges? De violadores? A resposta só pode ser uma: a lista de pedófilos surgiu porque o abuso sexual de crianças é um dos crimes mais horrendos que se pode imaginar e é por isso difícil contestar uma medida apresentada como preventiva desse crime. Trata-se de um gesto de aparente “transparência” e “empowerment dos cidadãos”, mas ele apenas visa espalhar o medo e dar livre curso aos mais baixos instintos dos cidadãos, como forma desesperada de conquistar os seus votos. E trata-se, também, de ir impondo a gradual transferência para a esfera privada, para a “comunidade”, de uma responsabilidade nuclear do Estado como é a segurança. A verdade é que a medida não previne o abuso sexual de crianças porque a esmagadora maioria destes abusos são praticados por familiares ou pessoas próximas das crianças – não pelo estranho que deambula pelas ruas.

Se a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, estivesse realmente interessada em reduzir os crimes contra as crianças, seria infinitamente mais produtivo que começasse por ouvir os especialistas que, esmagadoramente, estão contra este registo e o consideram inútil ou nocivo e que dotasse as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens de reais meios financeiros e humanos.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, março 10, 2015

Da tolerância zero ao direito à tolerância infinita

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Março de 2015
Crónica 9/2015


Ao recusar para os outros qualquer magnanimidade, o PM perdeu o direito a beneficiar de qualquer atenuante.

Sempre senti aversão pelo conceito de “tolerância zero”. Esta aversão tem excepções. Quando a Igreja Católica ou qualquer outra organização anuncia “tolerância zero” em relação a casos de abuso de menores, por exemplo, não podia estar mais de acordo com a atitude. Há domínios onde a mais leve suspeita de impropriedade deve ser tratada com o máximo rigor. Mas quando se trata de “tolerância zero” em relação a infracções, como as que a Brigada de Trânsito anuncia por vezes nas suas campanhas, por exemplo, a política parece-me ineficaz e injusta. Que se multe alguém por conduzir a 85 quilómetros por hora numa estrada onde o limite é de 80 é ridículo.

A lei tem uma racionalidade subjacente que pressupõe sempre uma margem para a sua aplicação e não deve ser vista como um tabu, e a sua aplicação não pode ser vista como persecutória pelo cidadão. A lei pode e deve ser aplicada de forma pedagógica e parece-me legítimo e eficaz que o condutor que se desloca a 85 quilómetros por hora seja parado pela polícia e alertado da infracção, mas mais do que isso parece-me contraproducente.

Pode argumentar-se que a justiça deve ser cega e que dura lex sed lex, mas a verdade é que a justiça deve servir os cidadãos e isso exige uma leitura das leis, uma interpretação da sua letra e do seu espírito, e uma leitura das circunstâncias. A lei não deve ser aplicada por robôs, mas por pessoas.

É, por exemplo, moralmente intolerável que uma família seja despejada da casa onde vive e obrigada a dormir na rua devido a uma penhora por dívidas, sejam elas privadas ou fiscais e seja qual for a sua legitimidade — e, no entanto, foram feitas durante a vigência deste Governo dezenas de milhares destas penhoras de casas. Há imensas razões que justificam esta interdição moral. A penhora da casa de habitação é uma condenação de toda a família à miséria, ao desemprego (se já não existiam antes), à vergonha, ao vexame público, ao abandono escolar, frequentemente à fome e à doença. Não há razão que justifique condenar filhos pelos crimes dos pais e menos ainda pela pouca sorte, pela ignorância ou pelos descuidos dos pais.

E no entanto... a tolerância zero foi o critério que o Governo PSD-PP anunciou como cerne da sua política. Só que se tratou de tolerância zero apenas para com os cidadãos comuns, contribuintes habituados a viver acima das suas possibilidades e cujos luxos tinham condenado o país a uma dívida gigantesca. Tolerância zero para com os desempregados e pensionistas, habituados a subsídios e pensões de luxo que era preciso cortar. Tolerância zero para com os pobres, que viviam à tripa-forra de RSI e de abonos de família que foram reduzidos ou cortados. Tolerância zero para com os recibos verdes que ganhavam fortunas que por vezes chegavam mesmo a exceder o salário mínimo. Tolerância zero para com os utentes do SNS que tiveram de passar a pagar mais por uma urgência hospitalar do que por uma consulta privada. E tolerância zero para com os cidadãos gregos, culpados dos mesmos pecados e do pecado de terem votado à esquerda. Mas esta tolerância zero viveu e vive paredes-meias com a tolerância infinita, com a libertinagem permitida a banqueiros e gestores que levaram as suas empresas à falência fazendo desaparecer não se sabe bem em que bolsos milhares de milhões de euros, aos autores de fugas ao fisco gigantescas, às PPP e swaps que garantiram enormes lucros sem risco à custa dos contribuintes, às Tecnoformas que ganharam dinheiro sem se saber porquê e que pagaram a consultores sem se saber em troca de quê. O primeiro problema da tolerância zero é esse: o da falta de equidade. É que nunca a tolerância zero se estende a todos.

O que mais choca nas dívidas de Pedro Passos Coelho à Segurança Social é esta desigualdade: a tolerância e a compreensão que pede para si, um político experiente e bem pago, e a tolerância e a compreensão que não teve para centenas de milhares de famílias pobres. A humildade que exibe agora e a arrogância com que tratou os “piegas” e os “preguiçosos” que não eram capazes de “meter mãos à obra” em vez de se queixarem da “demasiada austeridade” a que submetia o país. Considerar uma desculpa aceitável para si o facto de não ter tido dinheiro para pagar (?) a dívida à Segurança Social e a indiferença com que tratou as dificuldades de outros, com rendimentos muito inferiores.

Hoje sabemos que o primeiro-ministro recebeu durante anos uma remuneração que não é claro se se devia a trabalho realizado ou se se destinava apenas a “abrir portas”. Que não pagou ao Estado durante cinco anos uma contribuição que devia ter pago. Que diz que não pagou porque não sabia que devia pagar. Ou porque não tinha dinheiro. Que quando soube que devia, adiou o pagamento. Que só pagou parte da dívida quando soube que um jornal ia publicar a história. Que o devemos desculpar porque não é perfeito.

A tolerância é apenas outro nome do bom senso e da humanidade. Não queremos ser condenados pelo primeiro deslize, pela mínima falta. Mas ao recusar para os outros qualquer magnanimidade, o primeiro-ministro perdeu o direito a beneficiar de qualquer atenuante.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, março 03, 2015

Quando a política tem vergonha de sonhar

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Março de 2015
Crónica 8/2015


Há muitas lições que o PS e outros partidos poderiam aprender desde já com o Syriza.
A ausência de promessas por parte de António Costa nas intervenções e entrevistas que tem feito e dado ao longo desta pré-campanha é saudada por alguns portugueses, políticos e comentadores como uma prova de sageza política e um reflexo da sua honestidade. Num contexto político conturbado como o actual (veja-se a Grécia e a Espanha, o UKIP e o Front National, a Ucrânia e a Rússia), seria irrealista fazer promessas que não há nenhuma garantia de poder cumprir. E Costa apenas quer fazer promessas que tenha a certeza absoluta de poder cumprir. Assim, para se distinguir da táctica com que Passos Coelho nos brindou nas últimas eleições, Costa prefere a prudência, o silêncio ou as generalidades descomprometidas.

Outros vêem na mesma ausência de compromissos mera esperteza saloia. Costa tem a sua ementa de promessas eleitorais na manga, porque sabe que sem promessas não se ganham eleições, mas irá escondê-las durante o máximo de tempo possível porque vai prometer mundos e fundos irrealizáveis e inconciliáveis e prefere reduzir ao mínimo (a duração da campanha eleitoral) o tempo a que terá de responder às críticas que vão chover.

Outros, com alarme ou regozijo, conforme as simpatias partidárias, dizem que Costa não promete, simplesmente, porque não sabe o que prometer e nem sequer sabe ainda se recusa aliar-se a “este” PSD ou se recusa também aliar-se ao “outro”.

O debate “Costa tem de fazer promessas” versus “Costa não deve fazer promessas”, no entanto, não tem sentido. E não tem sentido porque o que Costa tem de anunciar desde já não são promessas de medidas concretas de governo mas apenas as prioridades da sua eventual governação. Ou seja: o que os portugueses precisam de saber e têm o direito de saber desde já (e não apenas em Junho) é o que pensa António Costa sobre as questões fundamentais da governação, ao nível europeu e ao nível nacional. O que pensa sobre o Tratado Orçamental, sobre a dívida, sobre a gestão do euro, sobre a política de Segurança Social, sobre a saúde, a educação e a ciência, sobre o emprego, sobre as nacionalizações e sobre a pobreza. O que gostaríamos de saber é por que causas Costa se compromete a bater-se. Não que medidas promete, mas que batalhas promete travar. Não é preciso dizer já como, nem quanto vai gastar. Mas era bom saber se aquilo que o move é apenas o desejo de não pisar nenhum calo, nacional ou estrangeiro. Precisamos de saber por que quer ser primeiro-ministro, o que lhe parece urgente e o que lhe parece inaceitável, que sociedade propõe — ou se apenas se dispõe a escolher entre as propostas que a Comissão Europeia e Berlim lhe mostrarem. E não, não é utópico perguntar-lhe que sociedade propõe porque essa é a pergunta que os cidadãos recomeçaram a fazer aos políticos e este é o momento de fazer essa pergunta, por muito que os partidos socialistas não o entendam.

A ideia de que é cedo para apresentar propostas porque as eleições legislativas ainda vêm longe (lembrando o “qual é a pressa?” de Seguro) é, entre todas as justificações, a mais preocupante. Não só porque as eleições legislativas não se ganham nas vésperas da campanha mas, principalmente, porque a política não são apenas eleições e o PS está a perder todos os dias oportunidades de fazer avançar uma agenda solidária a nível europeu. A paralisia europeia do PS no momento mais quente da negociação UE-Grécia faz recear o pior. Faz recear um PS congelado pela sua ambiguidade e sem a coragem de defender além-fronteiras um ponto de vista europeu contra a hegemonia alemã. Um PS que procura sempre alguém a quem seguir e que não se atreverá nunca a propor ou a liderar um programa reformista para a União Europeia.

Há muitas lições que o PS e outros poderiam aprender desde já com o Syriza. Uma delas é que é preciso correr o risco de ser diferente e de ser o primeiro, mesmo quando não se sabe se os outros nos seguem e quando se enfrentam adversários poderosos. Outra é que a política se faz de convicções e não apenas de jogos de poder, de paixão e não apenas de cálculo. Outra é que a justiça deve ser o principal critério da governação. Estes são os factores que explicam o apoio popular ao Syriza.

A política não é apenas a arte do possível, como dizia Bismark. A política tem de ser o exercício da vontade porque a soberania é a expressão da vontade, porque o sonho nos leva mais longe que as convenções e os preconceitos, porque a história não é outra coisa senão a conquista do impossível. A política tem de ser a transformação do desejável em realidade.

Há algo deprimente quando Costa diz que apenas quer fazer as promessas que tenha a certeza absoluta de poder cumprir. Está, evidentemente, a falar de medidas e não de combates e menos ainda de objectivos. Mas os portugueses não merecem apenas o que têm a certeza absoluta de que está ao seu alcance. Merecem mais e melhor do que aquilo que têm a certeza de que é possível. Merecem desejar melhor e merecem políticos que se comprometam a combater por causas. Que prometam não publicar esta ou aquela lei, mas combater por um ideal.