por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Março de 2015
Crónica 12/2015
Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?
Há pequenos gestos que são reveladores. Pequenos gestos que nos fazem ver as coisas de maneira diferente, que nos fazem mudar de opinião sobre uma pessoa ou sobre uma ideia, que nos alertam, que nos confirmam uma suspeita.
Um desses momentos reveladores aconteceu na semana passada com António Costa, quando lhe perguntaram o que tinha a dizer sobre a candidatura presidencial de Henrique Neto, militante e antigo deputado do PS, e quando, depois de algumas hesitações, acabou por dizer que a candidatura lhe era ”indiferente”.
A reacção de Costa, com a sua mal disfarçada irritação, percebe-se bem. Nesta fase, em que a questão da eleição presidencial é simultaneamente tão fundamental e tão prematura, em que o panorama político e o leque de candidatos é tão confuso tanto à esquerda como à direita, em que as presidenciais ameaçam transformar-se numa arena de primeiro plano da luta política não só entre o PS e o PSD, mas também entre as diversas forças de esquerda, em que o PS não encontra nas suas hostes (e deus sabe como procura) um candidato de jeito, em que receia perder ou ter um resultado pouco convincente com um candidato seu e em que receia tanto ou mais ganhar com um candidato que acabe por apoiar a contragosto, é natural que Costa gostasse de controlar um pouco mais os candidatos da sua área politica que entram no tabuleiro.
No entanto, a atitude de Costa, se se percebe bem, não pode deixar de cair muito mal mesmo a alguém que, como eu, nem se sente politicamente próximo de Neto, nem tenciona votar nele nas presidenciais.
Não é razoável que o secretário-geral do PS faça este tipo de comentários em relação seja a que candidato presidencial for, já que não pode ser indiferente para um líder politico saber quem está na corrida presidencial, e dizê-lo não pode deixar de ser considerado um gesto de despeito e uma manifestação de hipocrisia, para além de um sinal de desrespeito para com o processo eleitoral. Mas, se não é razoável que o comentário seja feito, não é sequer admissível que ele seja feito em relação a um militante do PS que, por acaso, até possui um currículo de actividade cívica particularmente respeitável.
Há, infelizmente, muitas pessoas no circuito dos partidos que poderiam justificar o menosprezo de Costa. Mas Henrique Neto não está nesse grupo e a arrogância de Costa fica-lhe mal. Ainda que Henrique Neto fosse um ilustre desconhecido, mandaria o mais leve verniz democrático que Costa saudasse a sua candidatura, lembrasse que as candidaturas presidenciais não passam pelos partidos e que um amplo confronto de pontos de vista só pode dignificar a eleição. (Fico com uma dúvida: se tivesse sido Miguel Relvas a apresentar a sua candidatura, Costa diria que tal candidatura não dignificava a democracia ou faria um salamaleque protocolar, em nome das relações interpartidárias?)
Há razões para Costa ter ficado irritado com a candidatura de Henrique Neto: antes de mais, o facto de ter percebido que será difícil encontrar melhor; depois, a saudável independência em relação ao aparelho do partido que o empresário sempre manifestou, o seu espírito crítico sobre o PS e a prática partidária em geral e o facto de Neto não ter procurado a sua bênção prévia. Mas Costa esquece-se de que a independência e espírito crítico que Neto exibe é algo que muitos portugueses gostariam de ver em Belém.
Depois de Costa, figuras do PS com o currículo e a autoridade moral de Augusto Santos Silva e José Lello vieram também tentar morder nas canelas de Henrique Neto: o primeiro para o classificar como um “bobo” que procura os seus 15 minutos de fama e o segundo para o considerar o “Beppe Grillo português”... Será mesmo este o caminho que o PS quer seguir? Para o fundo, rapidamente e em força, com a orquestra de bêbados a tocar no convés?
Ou haverá algum rumo político que um dia vá emergir daquela amálgama? Algum pensamento que se consiga afirmar sem esperar pelo que o PSD tem a dizer e sem esperar pelo que a União Europeia queira autorizar?
A atitude de António Costa em relação a Henrique Neto alimenta as razões de descrença de muitos portugueses na política e nos políticos, reforçando a ideia de que os actuais partidos vêem a política como um couto que lhes está reservado e reagem com hostilidade a qualquer discurso crítico da sua actuação. O que é mais preocupante na reacção de Costa não é a sua indiferença, mas a sua falta de diferença.
É curioso verificar, nos comentários às notícias sobre Neto, como a honestidade e a frontalidade manifestadas pelo candidato ao longo da vida constituem as suas qualidades mais apreciadas — independentemente das propostas reais que venha agora a fazer. E como se receia, em relação a este e a outros candidatos que se perfilam, que eventuais acordos com os partidos possam ferir essa honestidade. Quando os partidos que controlam o sistema político são percebidos pelos cidadãos como os principais agentes corruptores da política, algo está podre. E quando esses partidos nem percebem isso, é urgente encontrar-lhes alternativas.
jvmalheiros@gmail.com
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