terça-feira, janeiro 27, 2015

A grande novidade é que a Grécia vai ter um Governo grego

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Janeiro de 2015
Crónica 4/2015

A resposta à situação actual exige instabilidade, porque exige mudanças drásticas.

1. A grande novidade das eleições legislativas gregas é que a Grécia vai ter finalmente um Governo grego, composto por gregos que se preocupam com a vida dos cidadãos gregos e não um Governo de capatazes, preocupados acima de tudo em não indispor os poderes financeiros do mundo e em obedecer às directivas das forças ocupantes.

O líder do partido espanhol Podemos, Pablo Iglesias, usou esta imagem, e ela é correcta. Até agora, na Grécia, como em Portugal, temos tido Governos que ascenderam ao poder para manter os seus países acorrentados à dívida. Governos que juraram vassalagem aos mais ricos para poderem beneficiar um dia dos seus favores, sacrificando para isso a liberdade, a dignidade, o bem-estar, a vida e o futuro de milhões de cidadãos.

Governos que tentaram destruir por dentro o Estado que construímos com o nosso trabalho e que não hesitam em delapidar o património que não lhes pertence na esperança de que, um dia, possam voltar a ajudar o inimigo a atacar de novo as muralhas da cidade e as possam encontrar mais enfraquecidas.

Governos que venderam a soberania nacional, que ofendem a memória de todos os que se sacrificaram em defesa da democracia, que escarnecem daqueles que acreditam que todos os indivíduos nascem livres e iguais em direitos. Fazem-no em troca de uns lugares em futuros conselhos de administração, ébrios de alegria por poderem ombrear com os ricos e com a consciência imperturbada dos que consideram que a conta bancária é a medida de todas as coisas e a vida dos pobres algo negligenciável.

Não há nada mais vil do que esta traição que, não por acaso, durante milénios, em todas as latitudes e em todos os povos, conheceu a mais radical das punições.

E, por isso, é com alegria que saudamos a queda do Governo de Antonis Samaras, como saudaremos com alegria o dia da queda de Passos Coelho, o primeiro-ministro cuja ambição mais exaltante é ser o cãozinho de regaço da chanceler alemã.

2. O Governo grego de coligação Nova Democracia-Pasok-Dimar, agora derrotado nas urnas, foi constituído e empossado em nome da necessidade de “estabilidade” do país, como já o anterior Governo de Papademos tinha sido e outros antes destes. Sabemos aonde levou esta “estabilidade”: desemprego de 25 por cento, desemprego jovem de 60 por cento, dívida de 317 mil milhões de euros ou 177% do PIB, a uma sociedade à beira do caos, com apoios sociais praticamente inexistentes para uma população com uma pobreza crescente, ao êxodo de profissionais, a uma economia destruída e sem motor de arranque à vista, a uma sociedade desesperada e descrente.

A vitória de anteontem do Syriza, segundo inúmeros analistas financeiros, politólogos e muitos solícitos comentadores anónimos de vários Governos europeus, corre, porém, o risco de aumentar a “instabilidade” da situação grega.

Apetece brincar e dizer que, se Samaras era a “estabilidade”, é urgente experimentar a “instabilidade”, mas é evidente que uma situação, por má que seja, pode sempre piorar e não faltará por certo na extrema-direita económica que governa a Europa quem queira aproveitar a vitória do Syriza para dar uma lição à esquerda e às veleidades de autodeterminação dos povos e para mostrar que não se devem eleger políticos de quem os bancos não gostam, cortando radicalmente o financiamento a Atenas e recusando todas as negociações.

É, no entanto, de esperar que algum bom senso prevaleça e que a Grécia não seja transformada no barril de pólvora que pode incendiar a União Europeia. Mas falemos desta “estabilidade” que a direita tanto aprecia e da “instabilidade” que ela tanto receia.

É evidente que, numa situação de paz, de progresso e justiça social, a estabilidade é um valor. Mas quando a situação é a desagregação social e a injustiça da Grécia, quando a situação é a desigualdade e a pobreza crescente que vemos no nosso país, quando a situação são os probemas estruturais da economia e a carência de financiamento dos dois países, é evidente que não é ética e politicamente admissível defender a “estabilidade”, porque essa “estabilidade” é apenas a paz podre onde os pobres morrem de fome sem reclamar.

Nos países em crise, a situação actual exige instabilidade porque exige mudanças drásticas. Não a destruição mascarada de estabilidade que vemos em Portugal, onde a calma apenas esconde uma operação de pilhagem do património público em nome da necessidade de “revitalizar a economia” com as privatizações, a par de uma campanha de ataque aos direitos laborais denominada “reformas estruturais”, mas uma instabilidade criativa, onde se admite a necessidade de inventar verdadeiras soluções que sirvam as populações. Uma instabilidade inventiva e honesta, onde será necessário correr riscos, mas onde os riscos que se correm terão uma razão de que nos poderemos orgulhar.

Este é o desafio que nos lança a Grécia de hoje. Um desafio a que respondemos com alegria porque, hoje como ontem, somos todos gregos.


terça-feira, janeiro 20, 2015

A liberdade é só uma

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Janeiro de 2015
Crónica 3/2015


"12 anos escravo" é um filme de 2013 que se baseia nas memórias de Solomon Northup, um negro americano nascido livre em Nova Iorque em 1808, que foi raptado aos 33 anos em Washington, vendido como escravo e obrigado a trabalhar em plantações da Louisiana. Ao fim de doze anos, Northup conseguiu finalmente enviar informações sobre o seu paradeiro à família, que conseguiu a sua libertação.

O happy ending do filme é a cena onde Northup é libertado por um xerife, perante a indignação do seu “proprietário” e o espanto dos outros escravos, e os espectadores sentem que no final foi feita justiça. Porém, a sensação é não apenas deprovida de razão mas profundamente perversa.

De facto, não há nada em Solomon Northup, a não ser a sua situação jurídica à luz de um ordenamento jurídico iníquo e desumano, que lhe confira mais direito à liberdade que aos outros escravos da plantação, nascidos escravos e legalmente vendidos e comprados. Foi aliás assim que o entendeu o próprio Northup, que se tornaria um activo abolicionista nos anos posteriores ao seu rapto.

Por que temos, apesar de tudo, uma tendência para empatizar mais com Northup que com os outros escravos? Porque a história o usa como figura central. Empatizamos mais com ele porque o conhecemos melhor que aos outros. É por esta razão que adoptamos sempre o ponto de vista dos protagonistas nos filmes, sejam polícias ou ladrões.

Esta empatia, que nasce do conhecimento e da familiaridade, é um sentimento universal. Na imprensa chama-se a isto “proximidade” e constitui um dos principais critérios de noticiabilidade usados pelos jornalistas. Segundo este critério, um acidente que mate um português terá a mesma cobertura que um acidente idêntico que mate dez italianos ou cem chineses. E é também pela mesma razão que, quando uma catástrofe mata mil pessoas do outro lado do mundo, a imprensa portuguesa se preocupa em saber se não haverá um português entre as vítimas.

Quando milhões de pessoas em todo o mundo declararam a sua solidariedade a "Charlie Hebdo", não faltou quem perguntasse por que não declaravam estes manifestantes, tão empenhados na luta pela liberdade e pelos direitos humanos, a sua solidariedade a tantas outras vitimas de terrorismo no mundo. A Amnesty International, por exemplo, para aproveitar a vaga "Charlie" mas não sem alguma mágoa, lançou a sua campanha "We are Raif", pela libertação do blogger saudita Raif Badawi, condenado a dez anos de cadeia, uma pesada multa e mil chicotadas por se ter atrevido a criticar os clérigos sunitas do seu país.

Também não faltou quem lembrasse os sanguinários ataques terroristas do Boko Haram, na Nigéria e nos países limítrofes, de uma violência raramente vista, para perguntar se estas crianças (uma grande parte dos muitos milhares de vítimas do Boko Haram são crianças) não mereceriam o mesmo cuidado, o mesmo carinho, a mesma memória, a mesma indignação, a mesma atenção mediática, as mesmas manifestações que as vítimas do ataque ao Charlie Hebdo.

Não tem grande sentido nem utilidade discriminar graus dentro do horror, ou fazer rankings de morticínios, mas não pode haver dúvidas de que não existe maior horror do que aquele a que são submetidas as crianças raptadas pelo Boko Haram, torturadas, violadas, obrigadas a matar e usadas como bombas humanas. Como se descreve o horror de uma menina de dez anos, raptada depois de ver a sua família chacinada à sua frente e a sua aldeia arrasada, que é embrulhada em explosivos e enviada para o meio de um mercado para ser despedaçada e despedaçar as pessoas à sua volta?

E como se descreve o sofrimento das crianças sem-abrigo, de que falou Glyzelle Palomar, a menina filipina que vivia na rua e que perguntou ao papa por que razão Deus permitia que as crianças fossem forçadas a usar drogas e à prostituição?

Não acredito que os manifestantes chocados pelo ataque ao Charlie se sintam menos indignados por estes outros crimes ou menos mobilizados para o seu combate. O que acontece é que todos nós combatemos as batalhas que podemos combater, as que nos aparecem pela frente.

Compreendo o abafado sentimento de injustiça dos que lutam pela libertação de Raif Badawi ou das meninas nigerianas ao ver tantos milhões mobilizados pelo ataque de Charlie. Compreendo que perguntem com desespero, como Glyzelle, “porque há tão pouca gente a lutar por nós, connosco?” mas a batalha é a mesma. Lutar pela liberdade de fazer caricaturas anti-religiosas é lutar pela liberdade de educação das raparigas que o Boko Haram ataca e é lutar pelo mundo civilizado onde um dia não haverá crianças sem-abrigo. Mas é preciso dizê-lo, sempre, de cada vez. Dizer que a batalha pela liberdade é por todos, os distantes e os próximos, os intelectuais e os analfabetos, os que estão na televisão e os que não têm voz. Só há uma liberdade. Só há uma humanidade. Quando se mata a liberdade na Nigéria é a nossa liberdade que é morta. Quando se chicoteia um homem por criticar o poder, são as nossas costas que são chicoteadas.


terça-feira, janeiro 13, 2015

Eles não perceberam a piada

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Janeiro de 2015
Crónica 2/2015



1. Se houver um céu dos cartoonistas e se os do Charlie Hebdo estiverem deitados na nuvem a olhar cá para baixo, não podem ter deixado de se interrogar, ao ver as manifestações de domingo, com tantos dos políticos com quem eles gozaram a reclamar-se Charlie: “O que teremos feito mal?”. E não podem ter deixado de se perguntar isso porque Charlie nunca procurou consensos, sempre desconfiou dos consensos e sempre desafiou os consensos. Sempre foi esse o papel de Charlie e é isso que devemos a Charlie: a sua iconoclastia, a sua capacidade para nos desafiar a nós e aos outros, cruzando inúmeras vezes as fronteiras do bom gosto e do bom senso, garantindo sempre que a liberdade não ficaria refém do preconceito ou das conveniências.

Falou-se muito de humor nos últimos dias e defendeu-se muito (e bem) o direito a fazer rir, como parte da liberdade de expressão, mas “Charlie” não pretendia fazer rir. Charlie queria criticar, satirizar, ridicularizar, mostrar a hipocrisia, a ignorância, a boçalidade, a roupa suja dos poderosos dos grandes e dos pequenos poderes, denunciar o moralismo e os bem-pensantes. Denunciar com humor, porque Charlie amava a vida e queria que nos deliciássemos com ela. Charlie era pelo prazer e isso (tanto como as suas posições políticas) foi algo que nunca lhe perdoaram. Charlie fazia humor porque punha tudo em causa incluindo a si próprio e essa era (e é) a sua razão de ser.

2. A minha primeira reacção ao ataque à revista Charlie Hebdo foi de incredulidade. Cabu? Wolinsky? Mortos por terroristas? Mas não foi por engano? Queriam mesmo matar Cabu e Wolinsky?

Conhecia Cabu desde os meus catorze anos, quando li as primeiras aventuras do Grand Duduche, que fui seguindo ao longo da vida, e Wolinsky foi sempre um preferido, com as suas raparigas saltitantes e desinibidas, desenhadas com poucos traços e menos roupa, e o atentado não fazia sentido. Claro que conhecia a provocação constante de Charlie, o seu desrespeito absoluto por tudo e todos, o seu radicalismo anticlerical, a sua iconoclastia, sabia os ódios que suscitavam, os processos judiciais, os ataques, mas… matar Cabu e Wolinsky? E todos os outros? Matar Charlie Hebdo?

Depois, tudo se tornou claro: os autores do atentado não tinham percebido nada. Não tinham percebido nada de Charlie, do humor, dos cartoons. Para estes jovens de cérebro ensaboado, as coisas eram simples: os desenhos de Charlie eram uma humilhação premeditada, uma campanha racista, uma agressão. Uma caricatura de religião matou os reis da caricatura.

Eles não tinham percebido que as caricaturas do Charlie não eram contra o islão mas contra os idiotas e os carrascos misóginos que se reclamam do islão, como outros não tinham percebido que o Charlie não era contra os judeus ou os católicos mas contra os idiotas judeus e católicos que defendem a ignorância e a violência. Eles não perceberam que não era Maomé que Charlie queria ridicularizar, mas eles mesmos, os fanáticos, os cretinos deKalachnikov sonhando com a erecção eterna e 72 virgens à espera. Nesse sentido, não se enganaram no alvo, mas provaram que o Charlie tinha razão e que eles eram, de facto, apenas cretinos com Kalachnikovs.

3. A grande palavra de ordem em França, após os ataques da semana passada em Paris, para além das profissões de fé na liberdade de expressão e das declarações de solidariedade com as vítimas, é o “não à amálgama”, para usar a expressão canónica do discurso político francês. Que “amálgama”? A identificação entre muçulmanos e islamistas terroristas, a identificação entre islão e violência, entre islão e anti-semitismo.

E toda a cobertura das impressionantes manifestações de domingo passado sublinhava a presença lado a lado de pessoas de diferentes religiões e sem religião, gritando as mesmas palavras de ordem e provando que não só é possível às várias confissões, nacionalidades e culturas viver lado a lado em paz, como esse é um dos desejos mais ardentes dessas pessoas e a herança que querem deixar aos seus filhos.

É evidente que a esmagadora maioria dos muçulmanos do mundo, vivam onde viverem, não apoia o terrorismo. Sabemos como os próprios muçulmanos chiitas são as principais vítimas de movimentos terroristas sunitas como a Al-Qaeda e o auto-denominado “Estado Islâmico”. Posto isto, não se pode ignorar que o terrorismo islamista é um fenómeno emergente numa franja de uma determinada comunidade religiosa que não fez o aggiornamento religioso que outras comunidades islâmicas fizeram (podem encontrar-se receitas de crueldade nos textos religiosos de todos os credos, mas a maior parte dos crentes não as aplicam), da mesma forma que não se pode esquecer que existe um problema particular de integração dos jovens muçulmanos em geral nas sociedades ocidentais. O islão não defende o terrorismo, mas o terrorismo islamista constitui um problema que possui uma evidente base religiosa e tem de ser discutido também nesse contexto. O terrorismo islamista não é a emanação natural de uma dada cultura, mas também não é um mero caso de polícia.


terça-feira, janeiro 06, 2015

O discurso sem qualidades

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Janeiro de 2015
Crónica 1/2015


Nunca como agora nos fez tanta falta uma democracia, um governo nacional e um Presidente.

A mensagem de Ano Novo do Presidente da República continha uma novidade, um apelo ao voto no PSD, uma tentativa de dissuasão no voto no PS e a negação das eleições legislativas como geradoras de alternativas de governação.

A novidade consistiu no elogio público aos partidos e aos políticos (“Rejeito em absoluto uma ideia demagógica e populista segundo a qual os partidos e os seus dirigentes se alheiam dos interesses do país e das aspirações dos cidadãos”), em oposição ao texto e subtexto da maioria das suas intervenções políticas, em que “os políticos” são sempre identificados como parte do problema. É estranho ver Cavaco atacar a “ideia demagógica e populista” de que foi um dos principais autores, cultores e fautores, mas é melhor tarde que nunca.

O apelo ao voto no PSD, discretamente camuflado, consistiu num rasgado elogio da acção do Governo actual, na proclamação das mesmas melhorias imaginárias que o Governo tem alardeado e na ênfase na necessidade de prosseguir a mesma trajectória (“A economia está a crescer, a competitividade melhorou, o investimento iniciou uma trajectória de recuperação e o desemprego diminuiu. É preciso criar condições políticas para que esta tendência se reforce no ano que agora começa”), em mais um exemplo da falta de isenção partidária em que Cavaco tem sido pródigo.

A dissuasão no voto no PS consistiu na afirmação de que o país corre o risco de regressar à situação vivida no final do último Governo Sócrates e de que o pedido de financiamento à troika se deveu apenas a razões internas (“Portugal não pode regredir para uma situação semelhante àquela a que chegou em princípios de 2011, em que foi obrigado a recorrer a auxílio externo de emergência”), em mais um exemplo de uma leitura simplificada da realidade e de um sectarismo incompatível com a função que ocupa. O alerta sobre as promessas eleitorais (“Há que evitar promessas demagógicas e sem realismo”) vem no mesmo sentido, não podendo deixar de ser lido senão como uma admoestação preventiva ao PS, já que o cúmulo de promessas eleitorais não cumpridas pertence à ultima campanha eleitoral do PSD, sem que ele tivesse sido objecto de reparo presidencial.

A menorização das eleições legislativas consistiu na mensagem sobre a necessidade de um compromisso pré-eleitoral entre partidos (“Seja qual for o resultado eleitoral, o tempo subsequente à realização de eleições será marcado por exigências de compromisso e de diálogo”, “Não é só no dia a seguir às eleições que se constroem soluções governativas estáveis, sólidas e consistentes”), que, aliada à afirmação da necessidade de prosseguimento das mesmas políticas, pretende sublinhar que não existe qualquer possibilidade de mudar o rumo da governação, sejam quais forem os resultados eleitorais. Se quisesse apelar à abstenção em massa, Cavaco não poderia ter feito melhor. Conhecendo as posições dos partidos à esquerda do PS, que, na opinião de Cavaco, não “asseguram o crescimento económico”, é clara a mensagem: no seu discurso de Ano Novo, o PR apela a um acordo PS-PSD prévio às eleições, que apoie um futuro governo que prossiga a mesma política do actual, e aconselha que entre os dois partidos não haja “crispações e conflitos artificiais”. Nada que espante. Cavaco nunca aprendeu que é o Presidente de todos os portugueses e não é agora que vai aprender.

Todo o discurso de Cavaco é uma arenga contra a ideia de alternativa. E este seria o aspecto mais relevante da alocução do supremo magistrado da nação não se desse o caso de o discurso ser também uma defesa da supremacia dos interesses estrangeiros sobre os interesses nacionais. Ao dizer que “Tal como os outros países da zona euro, Portugal está sujeito às exigências de disciplina orçamental e de sustentabilidade da dívida pública” e ao não referir o dever ou sequer a possibilidade de discutir, contestar, alterar ou recusar as exigências iníquas do directório da União Europeia, Cavaco, no mesmo discurso em que fala do “interesse nacional”, submete-o sem uma hesitação aos ditames dos interesses financeiros.

Não há, na mente de Cavaco, uma ideia de país que não seja servil perante os grandes. Não há, na imaginação de Cavaco, uma ideia de estratégia internacional que não seja a obediência. Não há, no sentimento de Cavaco, um lugar para o simples patriotismo.

Esta desgraça é tanto mais grave quanto sabemos que, em 2015, a União Europeia vai ser o palco de um combate sem tréguas e de enormes consequências onde a Grécia, pela mão do partido Syriza, deverá ter um papel central, e onde Portugal se terá de posicionar. A Alemanha já fez as primeiras jogadas, fazendo chantagem sobre os eleitores gregos e ameaçando-os com a miséria se ousarem eleger o Syriza. Este é o combate onde se irá decidir o futuro das dívidas soberanas dos países “periféricos”, a arquitectura do euro, o papel do BCE e onde se terá de recolocar em discussão o “Tratado Orçamental”, nunca referendado, que pretende condenar os países à austeridade eterna. É por isso que nunca nos fez tanta falta uma democracia, um governo nacional e um Presidente. Por agora, temos isto.

jvmalheiros@gmail.com