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por José Vítor Malheiros
e-Crónica 1/2012
Quando falamos no Facebook dizemos mais do que gostaríamos, porque dizemos tudo a todos.
Não é preciso ser Fernando Pessoa nem sofrer de personalidade múltipla para ser várias pessoas. Todos somos várias pessoas. Todos temos várias versões do nosso eu, várias personae, que activamos e desactivamos ao longo do dia conforme as circunstâncias e os interlocutores, que modulamos automática mas precisamente no espaço de uns segundos, de forma a obter o máximo benefício possível das nossas interacções com os outros. Não mostramos a mesma personalidade quando falamos com a nossa namorada ou com o pai da namorada. Não falamos com os nossos filhos como falamos com o nosso chefe no trabalho. Não contamos as mesmas anedotas à nossa mãe e aos colegas do trabalho. Nem sequer somos os mesmos com os amigos do futebol e os amigos da universidade. O nosso tom de voz muda, a atitude corporal muda, o olhar, as interjeições, o léxico, a maneira de rir.
Vivemos bem com esta multiplicidade de eus. Satisfaz-nos as várias facetas da personalidade. Podemos ser reflectidos e atrevidos, tímidos e espalhafatosos, sérios e brincalhões, prudentes e aventureiros, serenos e frenéticos, todas essas coisas que todos somos.
Na vida real podemos ser uma coisa para cada pessoa, uma pessoa para cada circunstância. Sem que cada um saiba como somos para os outros. Mas nas redes sociais tudo muda.
E muda porque na web usamos apenas uma personalidade. Sim, é verdade que podemos criar vários avatares, heterónimos com vidas próprias, cada um com os seus gostos e idiossincrasias, mas só quem tenha realmente tentado fazê-lo sabe como isso é difícil de gerir. Tão difícil que rapidamente se abandonam os heterónimos. Quando comecei a usar o Facebook também o tentei fazer, criando um perfil profissional e outro pessoal - há muita gente que ainda o faz - mas a dificuldade começa na definição das fronteiras. Os dois mundos têm demasiadas intersecções, há demasiadas coisas que queremos partilhar com ambos. E há muitas coisas que só queremos partilhar com um subconjunto de um desses mundos, ou com um subconjunto dos dois - os que são do nosso clube, os amantes de poesia.... É demasiado complicado, ingerível. Enganamo-nos, publicamos isto sob a personalidade do outro, trocamos amigos. Exige a paciência de um obsessivo e mais tempo livre do que temos. Começamos a meter as mesmas pessoas nas duas redes e os dois grupos acabam por ficar iguais um ao outro, acabamos a assumir que somos só um, com tudo ao molho, com amigos que não se falam uns aos outros, cheios de contradições e gostos heterogéneos.
Na vida real podemos dizer tudo mas apenas uma parte a cada um. Nas redes dizemos tudo a todos, ao mesmo tempo. Há um achatamento de todos os planos da nossa vida num único, como quando fazemos flatten num programa de desenho. Sim, é possível seleccionar, criar grupos, definir privilégios, escolher com quem se partilha o quê - mas, mais uma vez, já o tentaram fazer? É possível mas trabalhoso. Acabamos sempre por concluir que não vale a pena. Para quê? Não temos nada a esconder!
Esta é, para mim, uma das principais características do Facebook: a perda (relativa, não absoluta) da multidimensionalidade das nossas relações. Quando falamos no Facebook dizemos mais do que gostaríamos, porque dizemos tudo a todos. Claro que satisfaz o nosso voyeurismo (“Olha, a Maria faz culturismo!”) e claro que há demasiada informação para que toda a gente repare em tudo o que nos diz respeito. Estamos relativamente protegidos pela densa nuvem de dados. Mas com um mínimo de atenção uma pessoa conhecida mas com quem habitualmente não partilharíamos informação conhece todos os membros da nossa família, onde trabalham e quando fazem anos, conhece as nossas ideias políticas, paixões clubísticas, preferências políticas e literárias, o que fazemos nas férias, que livros lemos, que filmes vemos e, claro, quem são os nossos amigos, colegas e conhecidos. E isto quando se trata de um amador. Porque um bom programa de data mining, daqueles que são usados pelos serviços de informações, consegue escavar mais fundo e concluir, pela análise textual do que escrevemos e pelo nosso ciclo de actividade online quase tudo o que nos passa pela cabeça (estado de saúde, estado de espírito). Se tivesse Facebook George Smiley nunca teria precisado de sair de Oxford.
Qual é o problema? Para começar há (terríveis) problemas de privacidade. Há quem anteveja nos próximos anos uma epidemia de abusos em relação aos adolescentes de hoje que, impensadamente, se habituaram a viver na rede, em estado de e-comunitarismo total e permanente, partilhando pormenores íntimos e fornecendo, sem o saber, dados que podem prejudicar seriamente a sua possibilidade de obter uma bolsa, de conseguir um emprego ou uma promoção, de ter um empréstimo do banco, de fazer um seguro de saúde, etc. Pode não se tratar de algo muito violento. Numa sociedade relativamente aberta e com algumas protecções democráticas, como aquela em que ainda vivemos, isso pode não significar risco de prisão por crime de opinião ou condenação ao ostracismo devido às preferências sexuais. Mas significa que certas pessoas, com algumas fragilidades (uma tendência para a depressão, uma vida amorosa infeliz, uma família disfuncional, uma linguagem pouco cuidada, amigos pouco recomendáveis, atitudes demasiado assertivas, preferências heterodoxas de qualquer tipo, sejam elas vestimentárias ou alimentares), podem ter uma vida um tudo-nada mais difícil que as outras. Pode ser uma coisa estatística, um desvio ligeiro. Mas isso, ao longo dos anos, pode ir empurrando pessoas com determinadas características para novos ghettos - bolsas de desemprego, de menor protecção social, menos acesso a todo o tipo de bens.
Mas isso não é tudo. Este achatamento dos vários planos da nossa vida numa comunicação cândida do que fazemos, pensamos, gostamos e desejamos, numa esfera aparentemente global, padece de dois defeitos: ela nem é suficientemente privada, nem totalmente pública, situando-se num limbo vago de meias-tintas relacionais e sociais.
O que estaremos a perder com esta insuficiência de intimidade, com esta escassez de silêncio, de recolhimento, de reflexão íntima, de modéstia, de introspecção, com estes novos hábitos de pensar-dizer e de sentir-dizer que se instalaram na juventude? Não sei. Mas receio que algo se perca de importante.
Por outro lado, se comunicar no Facebook é comunicar num novo “espaço público”, de infinitas e interessantes possibilidades, esse espaço é, de facto, fragmentado. Um conjunto de bolhas, que se interesectam e onde existem inúmeros vasos comunicantes, é certo, mas mundos independentes. Se é certo que se pode lançar uma informação no Facebook que dá a volta ao mundo num dia, é igualmente verdade que muito do que se passa aqui é absolutamente opaco para o mundo. É por isso que, apesar do Facebook, a imprensa e o jornalismo continuam a desempenhar um papel fundamental, na criação de um verdadeiro espaço público, verdadeiramente aberto a todos e partilhável por todos. (jvmalheiros@gmail.com)
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Novembro de 2012
Crónica 46/2012
Não é aceitável em caso algum que um agente infiltrado se permita actos de violência ou incitamento à violência
Que razões podem existir para, no decurso de uma manifestação contra o Governo, atirar uma saraivada de pedras da calçada aos polícias que guardam o Parlamento?
O gesto poderia ser compreensível como uma manifestação incontível de raiva, numa situação de enorme tensão, eventualmente como retaliação por uma agressão previamente praticada pela própria polícia sobre os manifestantes. No entanto, mesmo numa situação deste tipo, onde esta acção teria uma justificação moral, ela apenas se voltaria contra os seus autores, justificando maior repressão.
O gesto poderia ser compreensível se se tratasse de um gesto simbólico de repúdio e denúncia, perante uma polícia que assumisse de forma violenta o papel de defensor de um Governo desrespeitador dos direitos dos cidadãos e dos seus compromissos perante os eleitores (como este é). No entanto, não há nada de simbólico numa pedra de calçada arremessada contra uma pessoa. Enquanto um ovo lançado contra um polícia pode transportar uma forte carga simbólica, o objectivo de uma pedrada é sempre provocar violência. A pedrada até pode ser uma consequência de estar mal disposto, como a metafísica, mas, tal como o Esteves, não tem metafísica nenhuma.
Por que se atiram pedras? Para desencadear a revolução? Não parece verosímil. A revolução exige muita gente e, se fosse esse o objectivo, os atiradores de pedras estariam envolvidos num enorme trabalho de fundo junto do povo para os incentivar à prática.
Por que se atiram pedras então? Vejo duas razões: “porque é giro”, uma opção seleccionada pela esmagadora maioria dos respondentes abaixo de 50 de QI, ou porque se pretende fornecer argumentos para uma dura repressão policial de futuras manifestações e porque se pretende amedrontar futuros manifestantes e evitar grandes manifestações como a de 15 de Setembro.
Ou seja e de facto: aqueles que, na manifestação de dia 14 de Novembro, se entretiveram a lançar pedras e outros projécteis à polícia são agitadores que apenas beneficiam as forças mais reaccionárias no poder e que limitam de forma inaceitável a liberdade de manifestação de todos os cidadãos. Se estes agitadores são jovens mentecaptos ou se são pagos por serviços de informação capturados por interesses privados interessados em proteger o Governo não sei. Mas o resultado não é muito diferente.
Posto isto quanto aos manifestantes apedrejadores, é preciso dizer outras coisas:
1. A polícia podia e devia ter detido os apedrejadores muito antes de a situação ter atingido a gravidade que atingiu e é incompreensível que não o tenha feito. A única explicação razoável para a polícia não o ter feito é que os seus superiores (quem?) tenham desejado um crescendo de violência para poder reagir com mais brutalidade. Esta posição é inaceitável. Inaceitável porque expôs polícias e civis a um risco evitável. Inaceitável porque só se compreeende ao serviço de uma estratégia política que visa justificar o endurecimento da acção policial e o cerceamento de liberdades.
2. A polícia tem todo o direito de infiltrar agentes no meio da manifestação e é natural que estes se comportem como manifestantes comuns. Mas não é aceitável em caso algum que estes agentes se permitam actos de violência ou incitamento à violência. Porque isso são crimes. Seria bom que tivéssemos a certeza de que isso não aconteceu. Não temos.
3. É evidente que o zelo persecutório da polícia, uma vez dada a ordem de “limpeza”, foi excessivo, com perseguições e agressões injustificadas. As imagens mostram isso. Os testemunhos referem isso. Esse zelo foi, provavelmente, uma consequência do apedrejamento continuado e, provavelmente, era o objectivo de quem deu ordens à polícia para não deterem os apedrejadores, mas seria bom que a formação da polícia permitisse evitar estes abusos, que podem acontecer uma vez numa situação de tensão, mas acontecem com demasiada frequência.
4. As condições em que foram feitas as detenções, com revista humilhante dos detidos, sem contacto com advogados, sem informação sobre as acusações que lhes eram feitas e pressões para assinar documentos incompletamente preenchidos lembram de forma inquietante a ditadura. É fundamental lembrar o ministro da Administração Interna que o Estado de direito não é um pormenor de que se pode prescindir quando há um bocadinho de pressa.
5. Finalmente, é inquietante que o ministro Miguel Macedo tenha sido tão mal informado pela sua polícia e/ou nos tenha mentido descaradamente quanto ao facto de não haver polícias infiltrados na manifestação. O que dizer quando o ministro se mostra ofendido com a pergunta sobre os infiltrados, garantindo que isso não aconteceu, para ser desmentido pela própria PSP no dia seguinte?
O que dizer quando chegámos a um momento da nossa vida política em que um comentário sobre a seriedade de um ministro não se pode referir senão à sua expressão facial? (jvmalheiros@gmail.com)
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Novembro de 2012Crónica 45/2012
A maior vitória do neoliberalismo é esta, os ataques que os pobres desferem uns contra os outros
Agora é raro o dia sem uma petição. É rara a semana sem uma manifestação. Causas urgentes e necessárias, causas justas, às vezes questões de vida ou de morte, questões de direitos, de liberdade, de dignidade, de futuro. As petições não custam nada, é só assinar no computador. As manifestações são mais complicadas, é preciso ir, organizar o dia à volta da manifestação, saber onde é, por onde passa, quem convoca, que transportes apanhar, vencer a resistência a participar - não por comodismo, mas porque quase nunca estamos de acordo com tudo o que representa uma manifestação. É preciso negociar connosco próprios, ceder, defender o essencial e esquecer o acessório, pensar nos fins sem nunca esquecer os meios, medir vantagens e benefícios, participar na contestação mas não banalizar a contestação, mobilizar as pessoas mas não cansar as pessoas.
Agora todos os dias são dias de luta, mas esta luta atomizada em manifestações e petições, em debates e reuniões de trabalho, em artigos para os jornais e fotografias e posts e comentários nas redes sociais não tem um sentido definido. Muitos dos que contestam a austeridade quando ela lhes chega ao bolso concordam que gastámos acima das nossas possibilidades e que é preciso pagar e, se continuarmos a conversa, ainda defendem que o Estado corte nos gastos sociais dos outros. Muitos dos discursos de rua que começam a criticar este Governo e o anterior e os anteriores estendem rapidamente o seu ódio a todos os políticos, a todos os partidos e à própria política e acabam a criticar a democracia que entregou o poder aos arrivistas corruptos. Muitos dos que começam a criticar a falta de democracia na União Europeia acabam a demonizar os estrangeiros que só nos querem roubar o pouco que temos e a defender o isolacionismo.
A maior vitória do neoliberalismo é esta, os ataques que os pobres desferem uns contra os outros. O maior ataque ao Estado Social é este, o que se ouve nas conversas dos cidadãos comuns, que criticam os que beneficiam de apoios do Estado porque obrigam o Governo a aumentar os impostos. Que criticam as famílias que recebem o RSI e levam as crianças ao café para comer bolos, como se comer bolos fosse um direito dos nossos filhos mas não dos filhos dos outros. Que criticam os grevistas dos transportes, porque prejudicam quem quer ir trabalhar e não pode. Que criticam a classe média que vai aos hospitais públicos e gasta recursos do Estado mas tem dinheiro para ir aos hospitais privados. Que até são capazes de concordar com o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, que explica que acabar com os descontos no passe social é justo porque evita que Belmiro de Azevedo ande de autocarro a beneficiar dos nossos impostos.
Uma das coisas mais tristes desta crise é ser bombardeado com as mensagens-correntes de mail onde se denunciam os pretensos privilégios e os grandes salários de alguns. Nalguns casos, raros, a indignação é legítima. Há gastos excessivos, sumptuários, onde devia haver contenção e frugalidade no uso de dinheiros públicos. Mas em muitos casos a indignação é não só disparatada mas cirurgicamente orientada para desviar as atenções das benesses de que goza o capital. Enquanto umas centenas de ingénuos se indignam com os salários de certas estrelas da televisão (“Envia esta mensagem a vinte dos teus amigos!”), não dizem uma palavra contra os juros cobrados a Portugal pela “ajuda externa”, contra o escândalo do BPN e das PPP, contra os benefícios escandalosos concedidos aos bancos, as isenções fiscais das grandes empresas, a fuga legal aos impostos dos grupos económicos com sede na Holanda, o desvio de dinheiros para paraísos fiscais, os impostos inexistentes sobre os rendimentos do capital. Tudo isso é escamoteado pelo cachet de José Carlos Malato ou de Catarina Furtado.
A maior vitória do neoliberalismo é esta, é este discurso, uma vitória conseguida a golpes de propaganda repetida sem descanso, com a cumplicidade (frequentemente involuntária e acéfala) dos media.
É por isso que continuamos a ouvir Vítor Gaspar nos telejornais, repetindo as suas fantasias que nenhum raciocínio sustenta. Um dia, ele ou outra marioneta do Governo virá dizer-nos que a Terra é plana e os media, dando provas de equilíbrio e isenção, dirão, “Essa não é porém a posição do geógrafo Fulano de Tal, que sustenta, por seu lado, que...”
A responsabilidade dos media na alimentação deste discurso é central. É por isso que vemos, em movimentos cívicos como o Manifesto contra a Privatização da RTP ou a Iniciativa de Auditoria Cidadã à Dívida Pública ou a Rede Economia com Futuro, a necessidade de produzir e disponibilizar informação que os media deveriam produzir, filtrar, validar e difundir mas que não produzem, não filtram, não validam e não difundem. Os movimentos sociais estão a tentar fazer o trabalho que devia ser dos media mas eles ainda não perceberam, preocupados como estão em colocar o microfone bem próximo dos lábios de Vítor Gaspar. (jvmalheiros@gmail.com)
Lisboa, 7 de Novembro de 2012
Exma. Sra. Chanceler Merkel
Escrevemos-lhe em antecipação à sua visita oficial a Portugal no próximo dia 12 de Novembro. No programa dessa visita há uma oportunidade perdida: a Srª Chanceler vai falar com quem já concorda com as suas políticas. E mais ninguém. Julgamos poder afirmar que a maioria dos portugueses discorda das suas políticas e poderia ter consigo uma conversa honesta e para si instrutiva acerca do que se está a passar no nosso País e na Europa. Uma das primeiras coisas que lhe poderíamos explicar é como Portugal perdeu, só no último ano, 22 mil milhões de euros em depósitos bancários — mais do que aquilo que agora é obrigado a cortar em despesas sociais. Mas há mais: em transferências de capitais, Portugal perdeu pelo menos 70 mil milhões de euros desde o início da crise. Se este número faz lembrar alguma coisa é porque ele é praticamente igual ao montante do resgate ao nosso país. O que isto significa é que a insolvência de Portugal é, em primeiro lugar, o resultado das insuficiências das lideranças europeias e de gravíssimos defeitos na construção da moeda única. Portugal tinha à partida problemas e insuficiências. Os cidadãos portugueses sabem disso melhor do que ninguém. É por isso que lhe podemos dizer: as políticas atuais agravam os nossos problemas e impedem-nos de os resolver. Quanto mais prolongadas estas medidas de austeridade forem, mais irreversíveis serão os seus efeitos negativos. É por saberem isso, por verem isso no seu quotidiano, que os portugueses estão angustiados e indignados. Talvez no seu breve percurso por Portugal possa ver que muitos de nós pusemos panos negros nas nossas janelas. A razão é muito simples: estamos de luto. Estamos de luto pelo nosso País. A Srª Chanceler virá entregar a cem jovens portugueses bolsas de estudo na Alemanha. Deveria saber a Srª Chanceler que os portugueses vêem como uma tragédia que a nossa juventude, a geração mais formada da nossa história, em que tanto investimos e de que tanto orgulho temos, esteja a abandonar em massa o nosso país por causa das políticas que a Srª Chanceler foi impondo. Esta sua ação é vista como mais um incentivo para a fuga de cérebros, de que tanto precisamos para a reconstrução do nosso país. A maioria dos portugueses não entende como é possível que não se procure criar condições para que os milhares de jovens licenciados que fogem de Portugal todos os anos queiram voltar para ficar. Tal como também se vive aqui como uma provocação a Srª Chanceler vir acompanhada de empresários alemães, com o propósito de fazerem negócios proveitosos para o seu país, mas desastrosos para o nosso que vê todos os dias nas notícias o seu património a ser privatizado para lucro de todos menos do povo português. E estamos de luto também pela Europa. O grau de distanciamento e recriminação entre os povos e os países da União é estarrecedor, tendo em conta a trágica história do nosso continente. Desafiamo-la a reconhecer, Srª Chanceler, que cometeu um grave erro ao ter recorrido a generalizações enganadoras sobre os povos do Sul da Europa — ao mesmo tempo que condenamos as expressões de sentimento anti-alemão que mancham o discurso público, onde quer que apareçam. As nossas nações europeias, todas elas históricas, são diversas entre si mas iguais em dignidade. Todas devem ser respeitadas e todas têm um papel a desempenhar na União. Cara Srª Chanceler, esta loucura deve parar. A Europa volta a estar dividida ao meio, não por uma cortina de ferro, mas por uma cortina de incompreensão, de inflexibilidade e de irrazoabilidade. Estamos disponíveis, enquanto seus concidadãos europeus, a abrir um verdadeiro debate transparente e participado sobre a saída desta crise e o nosso futuro comum, para que possamos fazer na nossa Europa uma União mais democrática, mais responsável, mais fraterna — e com mais futuro. Mude o programa da sua visita a Portugal. Fale com quem não concorda consigo. Use esta visita como um momento de aprendizagem. Use a aprendizagem para mudar de rumo. Com os nossos cordiais cumprimentos,
(Redactores/primeiros signatários)
Rui Tavares
Viriato Soromenho Marques
André Barata
Elísio Estanque
José Vítor Malheiros
Nuno Artur Silva
Ana Benavente
Marta Loja Neves
José Reis
Ana Matos Pires
André Teodósio
Ricardo Alves
Patrícia Cunha e França
Geiziely Glícia Fernandes
Vera Tavares
António Loja Neves
Paula Gil
João MacDonald
Evalina Dias
Miguel Real
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Outubro de 2012
Crónica 43/2012
Relvas é um ícone, um farol, um outdoor, um arauto. Relvas serve para nos lembrar a todos que o nosso Governo tem um Relvas
1. Caiu o Carmo e a Trindade por causa de Miguel Relvas ter feito umas cadeiras inexistentes, graças às equivalências da sua actividade partidária e folclórica, quando “frequentou o seu curso” de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Lusófona. Por mim, acho que esse é não só o menor mal de toda a vida pública de Miguel Relvas como é mesmo o único acto onde ele demonstra alguma imaginação. Ou seria, se o próprio o admitisse. Só que, segundo o ministro, o mérito desta inovação é todo da universidade. As cadeiras inexistentes de que a imprensa lhe deu conta não lhe conseguiram arrancar um “Como? Deve ter havido algum engano!” nem um “Ah, também descobriram isso?” nem um leve rubor. Segundo Relvas, ele fez tudo o que tinha a fazer, fez tudo da maneira que a lei mandava, tem a consciência limpa e, se a universidade lhe deu aprovação em cadeiras que não existiam, lá terá as suas razões.
Recordam-se de que o Expresso já tinha noticiado há meses - identificando e citando declarações de todos eles - que três dos quatro professores que supostamente o tinham avaliado nunca o tinham visto e nem sequer sabiam que ele era seu aluno? Estas cadeiras inexistentes vêm na linha dos professores imaginários. Só que as cadeiras não batem certo: as cadeiras inexistentes não são as que teriam sido ministradas pelos professores imaginários, como faria sentido. A imprensa tem tentado encontrar os três docentes das cadeiras que antes de ser já o eram, até agora sem êxito, mas existe a suspeita de que se poderá tratar do visconde cortado ao meio, do barão trepador e do cavaleiro inexistente.
Por mim, a coisa que me incomoda mais nem é que a Universidade Lusófona lhe tenha dado equivalência a cadeiras que não existiam. Um curso virtual pode ter cadeiras virtuais. O que eu acho chocante é que duas dessas cadeiras sejam Língua Portuguesa III e Língua Portuguesa IV. Como é que isto é possível quando Relvas tem a dificuldade que todos lhe conhecemos para dominar Língua Portuguesa I?
Diga-se porém que, ao contrário dos que acham que Relvas devia sair do Governo, eu penso que ele está a fazer um bom trabalho. Relvas não deve cair e não vai cair da sua cadeira inexistente.
Relvas é um ícone, um farol, um outdoor, um arauto, uma espécie de bandeira portuguesa na lapela dos ministros. Enquanto os pins dos ministros lhes servem para lhes lembrar que são portugueses (nas reuniões internacionais, quando alguém pergunta “O que é esta coisinha que tem aqui na lapela?”), Relvas serve para nos lembrar a todos que o nosso Governo tem um Relvas e que este Relvas é o homem de confiança do primeiro-ministro. Para que não esqueçamos. Pim.
2. Confesso que outra das razões por que as cadeiras inexistentes de Relvas não me suscitam maior aversão é porque, devido a um princípio de equidade (os membros do Governo poderão encontrar a definição da palavra em qualquer dicionário de bolso), se Relvas teve direito a esta benesse, todos os outros cidadãos também têm. E há uma resma de cadeiras inexistentes que eu gostava que me creditassem no meu currículo, de Linguagem Gestual Braille a Arquitectura de Sonhos Avançados, de Poliglotismo I e II a Tecnologias Ódio-Visuais, de Materialismo Histérico e Dialítico a Imagionologia Prodigiosa, da Fenomenologia do Ser Sartre à Panóptica da Ética Lírica, de Perfumenêutica I a Linearidade 3D. E porque não Design de Cadeiras Inexistentes? Há um sem-fim de experiências inimagináveis e até agora inimaginadas à espera de ser degustadas. E por que não, agora que se aproxima o Natal, lançar embalagens com cadeiras inexistentes para oferecer, como aquelas empresas que vendem uma caixas de plástico e lá dentro está um voucher com experiências para experienciar? A ideia é tão exportável como pastéis de nata. Álvaro Santos Pereira, fénix renascida (este nome também dava uma bela cadeira!), podia levar isto para o Canada Dry.
3. Michael Seufert, deputado do CDS, expandindo uma ideia esboçada por Luís Montenegro, diz que “se a Constituição permitiu os níveis de défice e dívida que trouxeram Portugal à situação actual e se bloqueia o caminho para os equilíbrios necessários então já não serve o país”. Leia-se: se as medidas constantes do Orçamento 2013 são inconstitucionais, mude-se a Constituição. Eu tenho uma proposta que segue este mesmo princípio de Filosofia do Direito: como estou um bocadinho em baixo de finanças e me dava jeito palmar umas carteiras, agradeço ao Parlamento que retire o furto do Código Penal, se faz favor. Ah... e se por acaso for proibido atirar fruta fresca a membros do Governo retirem também essa proibição. Obrigado.
4. Na sequência de um texto que publiquei aqui há semanas e onde relatava o que se passava na cabeça de Pedro Passos Coelho, alguns leitores sugeriram que fizesse o mesmo exercício em relação a António José Seguro. Quis fazer isso, mas a direcção do PÚBLICO considerou que seria um desperdício, nestes tempos de crise, publicar aqui uma página vazia. (jvmalheiros@gmail.com)
por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Novembro de 2012
Crónica 44/2012
Seria natural que o PR fizesse, pelo menos, de rainha de Inglaterra e dissesse que está tudo sob controlo
O silêncio do Presidente da República nas últimas semanas - e a extrema parcimónia das suas intervenções nos últimos meses - tem motivado as mais variadas interpretações, que vão do simples desejo de não estorvar a acção do Governo num momento difícil a uma singular manifestação de sageza. Marcelo Rebelo de Sousa considerou mesmo que o silêncio de Cavaco prestigiava a função presidencial, já que discutir as vacuidades que têm preenchido o discurso do Governo e o debate político, como a “refundação” do memorando da troika, seria “discutir o nada” e isso o PR não o deve fazer. A explicação é generosa, mas é excessivamente benevolente.
Penso pelo contrário que, numa situação de extrema gravidade como a actual, apenas comparável a uma situação de guerra, onde à crise financeira e ao brutal empobrecimento de toda a população se somam uma crise política e uma crise de confiança sem paralelo nas instituições democráticas, seria natural e conveniente que o Presidente aparecesse e falasse. No entanto, Cavaco nem fala nem aparece. Seria normal que o Presidente nos viesse garantir que, apesar das dificuldades de entendimento que são conhecidas no interior da coligação, o Governo possui a estabilidade e a coesão necessárias para levar avante o seu trabalho e que ele se empenhará em que assim continue a ser. Seria natural que viesse garantir-nos que o regime democrático possui todas as ferramentas necessárias para garantir que esta crise será ultrapassada (com este Governo ou com outro), que o interesse do país e do povo será defendido, que a democracia não está em risco e que o futuro nos irá sorrir de novo. Seria natural que o PR mantivesse uma ronda sorridente de contactos partidários e tentasse facilitar entendimentos e que o fizesse também no ambito da concertação social. Seria natural que se dirigisse a jovens, a empresários e a desempregados incitando-os a não desesperar e a apostar nas suas capacidades. Seria natural que se multiplicasse em contactos na União Europeia, avançando as suas dúvidas em relação à austeridade, que nos últimos tempos até têm vindo a ganhar adeptos. Seria natural que o PR nos dissesse também alguma coisa em relação ao orçamento de 2013, que os economistas consideram uma pilhagem sem precedentes nos seus instrumentos, um exercício de mistificação nos seus pressupostos e uma fraude nas suas conclusões. Seria natural que o PR fizesse, pelo menos, de rainha de Inglaterra e aparecesse e acenasse e sorrisse e dissesse que está tudo sob controlo, keep calm and carry on. Mas não. Cavaco não aparece, não fala, não reúne e não carry on.
O que se passa com Cavaco então? Não sei, mas sei que Cavaco não está a fazer o que deve nem parece estar sequer a fazer aquilo que as suas ideias lhe ditariam. O que é preocupante.
Estamos actualmente a viver um PREC da direita, não legitimado pelo voto, apostado em destruir o Estado Social que levámos quatro décadas a construir e em privatizar o máximo de património do Estado. Um PREC apostado em conseguir um empobrecimento dos trabalhadores, para aumentar a margem de lucro das empresas e reduzir a capacidade reivindicativa da população. Um PREC disposto a reduzir a democracia a uma mera formalidade, de forma a garantir que esta gigantesca transferência de recursos para uma minoria não terá oposição.
Neste pano de fundo, seria bom poder contar com alguém que assumisse como sua responsabilidade garantir a democracia. Será possível que Cavaco não o queira fazer e que, apesar de alguns tímidos protestos, se sinta totalmente sintonizado com o delfim Passos Coelho e a sua destruição do Estado e da democracia? Talvez. Mas é também possível que não o possa fazer por razões de saúde - o que explicaria algumas intervenções incoerentes (lembram-se das pensões?) e a razão por que a insólita forma de comunicação preferida do Presidente da República passou a ser o Facebook.
A questão é que, numa situação de crise como a actual, os cidadãos têm o direito de saber se o PR é, ou não, capaz de assumir responsabilidades pesadas como poderão ser a demissão do Governo e as negociações para a formação de um novo executivo. E quem possa responder a esta inquietação tem o dever de a satisfazer. É a democracia, a dignidade do cargo e a dignidade da pessoa que o ocupa a exigi-lo.
Segundo a Constituição, “compete ao Tribunal Constitucional (...) declarar a impossibilidade física permanente do Presidente da República, bem como verificar os impedimentos temporários do exercício das suas funções”. Se é esse o caso, é imprescindível que as instituições democráticas assumam as suas responsabilidades, sem o que estaríamos perante um cenário de golpe de Estado. Se não é o caso, é urgente que o Presidente da República faça prova de vida. (jvmalheiros@gmail.com)
Legenda usada na exibição de um banco que doei para a exposição-venda "Aberto ao Público", cuja receita se destinou aos 48 trabalhadores despedidos pelo Público.
Para fazer jornalismo é preciso falar. Falar muito. Não apenas com as fontes mas com as pessoas em geral. E falar com os outros jornalistas, na redacção e fora dela. Para fazer bom jornalismo é preciso discutir muito. Discutir o que se vai fazer, por que se vai fazer e por que se fez, o que se vai dizer e como se vai dizer, por que se escreveu isto assim e não aquilo assado, por que não se devia ter feito aquele título ou por que se devia ter posto aquela chamada na primeira página, como se deve fazer para não voltar a cometer o mesmo erro, como contornar esta dificuldade técnica, como resolver este dilema ético. E as respostas a estas perguntas não estão todas escritas, por muitos Livros de Estilo e Códigos Deontológicos que haja. É preciso encontrar a resposta de cada vez, discutindo, falando, trocando impressões, comparando experiências, analisando alternativas, trocando histórias e lembrando lendas. Tudo é conversa no jornalismo. A prática do jornalismo é um exercício de racionalidade e de racionalização, de argumentação e de alimentação do diálogo social. O jornalismo é uma conversa com os leitores e tem como objectivo alimentar a conversa dos cidadãos entre si. E este banco é uma ferramenta de conversa. Durante os meus anos de editor tive sempre um banco deste tipo e este foi o último que tive. Porquê? Porque uma cadeira é pesada e difícil de arrastar e às vezes não há espaço para a pôr ao lado da nossa e para um banco há sempre lugar. Aqui sentaram-se muitas visitas para conversas sem cerimónia. Mas o banco era principalmente o banco dos jornalistas com quem trabalhei e que vinham discutir os seus textos comigo, com os olhos de ambos no monitor e as minhas mãos no teclado. O banco era usado por toda a gente na redacção - já disse que os jornalistas precisam de conversar uns com os outros - mas era conhecido como o "banco dos estagiários", entre os quais também chegou a ser conhecido (injustamente) como o"banco do castigo". Lembro-me de muitas conversas estimulantes com muitos jovens camaradas de profissão, sentados neste banco, e sei que muitas das minhas ideias sobre jornalismo foram ganhando forma nestas conversas. E é até possível que alguma coisa daquilo que esses estagiários aprenderam sobre jornalismo tenha surgido na sequência de um dos meus "Olha, vai lá buscar o banquinho e senta-te aqui ao meu lado."
A exposição "Aberto ao PÚBLICO" - Mostra e venda de objectos em defesa do jornal PÚBLICO teve lugar na Casa da Imprensa no dia 1 de Novembro de 2012 (http://www.facebook.com/events/287808527996636/?fref=ts98). A organização foi dos jornalistas Ana Rita Faria, Ana Silva, Nicolau Ferreira, Pedro Crisóstomo e Raquel Almeida Correia.