por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Novembro de 2012
Crónica 44/2012
Seria natural que o PR fizesse, pelo menos, de rainha de Inglaterra e dissesse que está tudo sob controlo
O silêncio do Presidente da República nas últimas semanas - e a extrema parcimónia das suas intervenções nos últimos meses - tem motivado as mais variadas interpretações, que vão do simples desejo de não estorvar a acção do Governo num momento difícil a uma singular manifestação de sageza. Marcelo Rebelo de Sousa considerou mesmo que o silêncio de Cavaco prestigiava a função presidencial, já que discutir as vacuidades que têm preenchido o discurso do Governo e o debate político, como a “refundação” do memorando da troika, seria “discutir o nada” e isso o PR não o deve fazer. A explicação é generosa, mas é excessivamente benevolente.
Penso pelo contrário que, numa situação de extrema gravidade como a actual, apenas comparável a uma situação de guerra, onde à crise financeira e ao brutal empobrecimento de toda a população se somam uma crise política e uma crise de confiança sem paralelo nas instituições democráticas, seria natural e conveniente que o Presidente aparecesse e falasse. No entanto, Cavaco nem fala nem aparece. Seria normal que o Presidente nos viesse garantir que, apesar das dificuldades de entendimento que são conhecidas no interior da coligação, o Governo possui a estabilidade e a coesão necessárias para levar avante o seu trabalho e que ele se empenhará em que assim continue a ser. Seria natural que viesse garantir-nos que o regime democrático possui todas as ferramentas necessárias para garantir que esta crise será ultrapassada (com este Governo ou com outro), que o interesse do país e do povo será defendido, que a democracia não está em risco e que o futuro nos irá sorrir de novo. Seria natural que o PR mantivesse uma ronda sorridente de contactos partidários e tentasse facilitar entendimentos e que o fizesse também no ambito da concertação social. Seria natural que se dirigisse a jovens, a empresários e a desempregados incitando-os a não desesperar e a apostar nas suas capacidades. Seria natural que se multiplicasse em contactos na União Europeia, avançando as suas dúvidas em relação à austeridade, que nos últimos tempos até têm vindo a ganhar adeptos. Seria natural que o PR nos dissesse também alguma coisa em relação ao orçamento de 2013, que os economistas consideram uma pilhagem sem precedentes nos seus instrumentos, um exercício de mistificação nos seus pressupostos e uma fraude nas suas conclusões. Seria natural que o PR fizesse, pelo menos, de rainha de Inglaterra e aparecesse e acenasse e sorrisse e dissesse que está tudo sob controlo, keep calm and carry on. Mas não. Cavaco não aparece, não fala, não reúne e não carry on.
O que se passa com Cavaco então? Não sei, mas sei que Cavaco não está a fazer o que deve nem parece estar sequer a fazer aquilo que as suas ideias lhe ditariam. O que é preocupante.
Estamos actualmente a viver um PREC da direita, não legitimado pelo voto, apostado em destruir o Estado Social que levámos quatro décadas a construir e em privatizar o máximo de património do Estado. Um PREC apostado em conseguir um empobrecimento dos trabalhadores, para aumentar a margem de lucro das empresas e reduzir a capacidade reivindicativa da população. Um PREC disposto a reduzir a democracia a uma mera formalidade, de forma a garantir que esta gigantesca transferência de recursos para uma minoria não terá oposição.
Neste pano de fundo, seria bom poder contar com alguém que assumisse como sua responsabilidade garantir a democracia. Será possível que Cavaco não o queira fazer e que, apesar de alguns tímidos protestos, se sinta totalmente sintonizado com o delfim Passos Coelho e a sua destruição do Estado e da democracia? Talvez. Mas é também possível que não o possa fazer por razões de saúde - o que explicaria algumas intervenções incoerentes (lembram-se das pensões?) e a razão por que a insólita forma de comunicação preferida do Presidente da República passou a ser o Facebook.
A questão é que, numa situação de crise como a actual, os cidadãos têm o direito de saber se o PR é, ou não, capaz de assumir responsabilidades pesadas como poderão ser a demissão do Governo e as negociações para a formação de um novo executivo. E quem possa responder a esta inquietação tem o dever de a satisfazer. É a democracia, a dignidade do cargo e a dignidade da pessoa que o ocupa a exigi-lo.
Segundo a Constituição, “compete ao Tribunal Constitucional (...) declarar a impossibilidade física permanente do Presidente da República, bem como verificar os impedimentos temporários do exercício das suas funções”. Se é esse o caso, é imprescindível que as instituições democráticas assumam as suas responsabilidades, sem o que estaríamos perante um cenário de golpe de Estado. Se não é o caso, é urgente que o Presidente da República faça prova de vida. (jvmalheiros@gmail.com)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário