terça-feira, setembro 30, 2014

O PS na encruzilhada do seu labirinto

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Setembro de 2014
Crónica 44/2014


A esquerda à esquerda do PS receia a atracção do “voto útil” que Costa poderá representar para o seu eleitorado


A primeira consequência da vitória de António Costa nas primárias do PS é que vamos deixar de ver e ouvir António José Seguro na televisão. E isso, só por si, é uma benção. Sei muito bem que, na política, as reacções epidérmicas são de evitar, que a maior ou menor simpatia ou antipatia que possamos sentir por um dirigente político é algo que deve ser secundário, que apenas devemos considerar as suas posições e a sua acção política, mas em Seguro tudo se conjugava para me causar urticária — as suas declarações, as suas posições, o timing delas, a sua retórica, a sua pose - e, por isso, não posso deixar de sentir o resultado das primárias do PS como um ganho pessoal. (Declaração de desinteresse: não sendo simpatizante do PS, não participei nestas primárias).

A pose rígida de Seguro, o seu sorriso crispado, sempre em tensão, o seu discurso estereotipado, sempre em torno das mesmas cinquenta palavras, indicavam alguém que se mantém numa auto-vigilância constante, que não se sente bem na sua pele, que receia a todo o momento ser apanhado em falta, que representa um papel que aprendeu mas que não é o seu verdadeiro eu. Era impossível ouvir uma das suas excessivamente pomposas declarações com as sobrancelhas em acento circunflexo para nos perguntarmos o que pensaria realmente e se ele próprio se daria conta de que estava a representar. Ou se se daria conta de como a sua persona política ficava aquém dos seus sonhos de grandeza. O homem não se enxergava e, quando isso acontece, é prova não só de uma limitação pessoal mas também de que, à sua volta, existe uma corte de bajuladores que alimentam a cegueira.

Seguro era um líder fraco e sabia que era fraco. As suas constantes e penosas declarações de honradez, de perseverança e de coragem (nunca ninguém lhe disse que há qualidades que não se declaram?) eram a prova mais gritante disso mesmo.

Mas é evidente que o principal defeito de Seguro foi a sua tépida acção como líder do maior partido da oposição. A sua “abstenção violenta” ficará para a história como uma página de vergonha para o PS e a sua colaboração de facto com o governo mais reaccionário de sempre feriu profundamente a imagem do PS.

E Costa? Costa é em grande medida uma incógnita mas é certamente um líder mais consistente e mais seguro de si, mais culto e mais inteligente, e parece menos mesmerizado pelo neoliberalismo e menos fascinado pela elegânca dos banqueiros do que muitos dos seus colegas de partido, o que significa que poderá liderar um PS mais mobilizado e empenhá-lo numa trajectória politicamente mais ambiciosa e socialmente mais justa.

Será Costa um líder de esquerda, capaz de levar a cabo uma política de real combate às desigualdades e à pobreza, aos privilégios dos poderosos, à corrupção e aos interesses ilegítimos, de defesa do Estado Social e dos serviços públicos, de defesa do emprego? Talvez. E será capaz de fazer frente aos interesses financeiros que sequestraram o Estado, de defender Portugal na União Europeia, de construir na União as alianças necessárias para inverter as políticas que nos escravizam, de pôr em causa o Tratado Orçamental, de impor aos credores uma renegociação justa da dívida, de pôr sobre a mesa condições de permanência do euro que defendam o interesse nacional? Atendendo ao seu passado e às suas escassas e prudentes declarações políticas sobre estes temas, é muito pouco provável. E o drama é que, sem tomar estas últimas posições, não será possível levar a cabo aquelas primeiras políticas.

Costa irá tentar navegar entre duas águas, enquanto for possível, tal como navegou entre as conjecturas de alianças à esquerda ou à direita. Se for governo, irá provavelmente adoptar políticas fiscais menos penalizadoras dos trabalhadores e políticas sociais mais generosas que o actual governo PSD-CDS e isso será melhor do que o status quo actual, mas será dramaticamente insuficiente.

A esquerda à esquerda do PS olha para Costa com uma invulgar agressividade porque receia a atracção do “voto útil” que Costa poderá representar para o seu eleitorado. O efeito “eucalipto” que Costa pode representar para a esquerda, fazendo o deserto à sua volta, preocupa BE e PCP e não só. Pelo meu lado, penso que a política precisa de políticos inteligentes, honestos e comprometidos com a causa pública e que o país só tem a ganhar se houver partidos dirigidos por pessoas com ideias e a coragem de definir objectivos ambiciosos e construir consensos. Costa pode ser um desses líderes, se tiver a coragem de fazer a revolução social-democrata que o PS nunca fez e se tiver a coragem de fazer uma política que ponha a justiça à frente da finança. O PS nunca o fez antes, fascinado como sempre foi pela real politik, e é pouco provável que o faça agora, mas essa seria a única justificação para a sua existência. O que deve fazer a esquerda à esquerda do PS? O seu dever: continuar a defender uma política para as pessoas sem receio de afrontar os poderes ilegítimos da finança, dos mercados e de Bruxelas e demonstrar, em cada momento, a justeza e a justiça das suas propostas - como o fez com a ideia da renegociação da dívida. Se o acordo com o PS de Costa é possível e benéfico, só o futuro o dirá.

jvmalheiros@gmail.com


Crónica no Público: 
http://www.publico.pt/politica/noticia/o-ps-na-encruzilhada-do-seu-labirinto-1671292

terça-feira, setembro 23, 2014

A vitória da Tina

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Setembro de 2014
Crónica 43/2014

Porque é que ontem nos pudemos mobilizar colectivamente em torno de melhorias concretas e hoje isso nos parece um sonho irrepetível?
Há dias, numa reunião pública sobre saúde, alguém lembrava os extraordinários sucessos alcançados no domínio da saúde materno-infantil no Portugal pós-25 de Abril e recordava com entusiasmo o trabalho das equipas que tinham andado a percorrer o país após a revolução, a criar consultas de saúde materno-infantil nos centros de saúde, a formar o pessoal de saúde, a lançar campanhas de informação, e sublinhava os progressos conseguidos logo nos primeiros anos, que transformaram Portugal num exemplo mundial.

O tema em discussão era a literacia de saúde e a campanha pela saúde materno-infantil nos anos 70 era dada como exemplo do que é possível fazer, mesmo com meios escassos, quando existe uma estratégia e uma vontade. Muitos dos presentes tinham idade para se recordar ou para terem participado nestas acções e ninguém pareceu discordar da mensagem da intervenção, mas alguém que falou a seguir lembrou com realismo que “isso foi logo a seguir à Revolução, uma altura em que se podia fazer tudo porque toda a gente estava mobilizada e todos queríamos melhorar as coisas e acreditávamos que tudo era possível.” Hoje, isso seria impossível.

Porque é que houve uma altura onde pensámos que tudo era possível e porque é que hoje tudo nos parece tão inalcançável? Porque é que houve uma altura em que ousámos construir tantas coisas novas e hoje tudo o que não seja a continuação do passado nos parece demasiado arriscado? Porque é que ontem nos parecia evidente que era preciso correr o risco de nos enganarmos para inventar e construir um mundo melhor e hoje esse risco parece excessivo mesmo quando sentimos que a vida que vivemos é vergonhosa e inaceitável? Porque é que ontem nos pudemos mobilizar colectivamente em torno de melhorias concretas para todos e hoje isso nos parece um sonho irrepetível?

Durante os últimos anos repetiram-nos à exaustão que a austeridade era a única solução para um problema que tínhamos provocado por termos sido preguiçosos e perdulários. Todos sabemos hoje que o diagnóstico e a terapêutica eram falsos e que apenas serviram para empobrecer os pobres, enriquecer os ricos, dar mais poder aos poderosos, reduzir a nossa autonomia e a democracia. Mas, apesar disso, um número impressionante de pessoas continua a repetir o mesmo falso mantra da austeridade e irá votar nos mesmos partidos que a defenderam e aplicaram. Conheço algumas destas pessoas. Algumas aceitam que outro caminho podia ser melhor, mas têm medo de experimentar. Habituaram-se a ser servos nesta plutocracia do PSD e do CDS e receiam mudar para algo novo. Desaprenderam não só de sonhar mas de desejar. Receiam e recalcam os seus próprios desejos. Há um provérbio, abjecto como tantos provérbios, que diz que é melhor o mau conhecido que o bom por conhecer. Não há forma mais rastejante de ser conservador. É assim que os poderes ilegítmos que nos governam, os mercados financeiros, as mafias dos partidos, a finança da fuga ao fisco impõem o seu jugo. É melhor não mudar porque se pode mudar para pior. É a estratégia do medo. E funciona. O que espanta é como é possível que alguem queira dar este exemplo aos seus filhos, um exemplo de servidão, de obediência canina sem direito a levantar os olhos do chão.

Margaret Thatcher gostava de repetir que “there is no alternative”. Não havia alternativa à liberalização, à destruição dos serviços públicos, à redução dos direitos laborais, à privatização dos bens públicos, à desregulação dos mercados. O mantra neoliberal que hoje cobre todas as acções dos governos ocidentais, desde os da direita assumida até aos que ainda se intitulam socialistas. A frase ficou conhecida pelo acrónimo TINA. TINA representa o contrário de democracia, o contrário da escolha popular, o contrário da soberania do povo, o contrário de eleições onde se referendam programas políticos. Não há alternativa. As escolhas impõem-se por razões naturais e, para Thatcher e para os seus sicários, só se pode escolher entre ser escravo ou o caos. E muita gente prefere ser escravo. Se eles dizem que não há alternativa, para quê escolher?

O referendo escoces foi outra destas vitórias. Uma vitória do medo, uma derrota da autodeterminação. Os escoceses escolheram não ter de escolher, escolheram a opção que lhes permitia escolher o mínimo possível, continuar tanto quanto possível como até aqui. Naturalmente que havia muitas boas razões para votar Não, mas as mais fortes, as que determinaram o resultado, foram o receio da mudança. “It’s not worth the risk” dizia um slogan do “Não” à independência.

É a democracia que está em crise, não o sistema ou o regime mas a própria ideia da democracia. Escolher e assumir o risco da escolha tem neste momento má imprensa. A ideia da moda é que o melhor não fazer ondas, não mudar nada. Seguir o rebanho. Nem na UE, nem no euro, nem do Reino Unido nem em lado nenhum, porque qualquer coisa nova pode ser pior. A direita conseguiu impor o medo da rotura, da construção de algo novo, o medo de tentar, o medo de escolher. Mas sabemos que para sair deste pântano vamos ter de tentar.

jvmalheiros@gmail.com

Crónica no Público: http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-vitoria-da-tina-1670493?page=-1

terça-feira, setembro 09, 2014

Deve ser giro construir um celeiro

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Setembro de 2014
Crónica 42/2014


Conseguimos construir uma sociedade onde as ideias com mais capacidade de mobilização dos jovens são, de novo, como há cem anos, sonhos de guerra e destruição.


É um daqueles vídeos que se espalham pelas redes sociais online em meia dúzia de horas e que em geral vemos meio fascinados pela sua originalidade e meio arrependidos por estarmos a perder tempo com futilidades.

Este tem três minutos e meio e é formado por uma série de 1600 fotografias tiradas por uma câmara fixa com intervalos de vinte segundos, ao longo de um dia, das sete da manhã às cinco da tarde (tinyurl.com/pd22pdq).

O vídeo mostra a construção de um enorme celeiro de madeira, no estado americano do Ohio, por uma comunidade amish, no dia 13 de Maio deste ano. As imagens têm a magia de todas as filmagens aceleradas e não resistimos a passá-las uma e outra vez, para ver a enorme estrutura de madeira surgir do nada e elevar-se da terra. Mas o que nos fascina de facto é a forma como a complexa estrutura vai saindo das mãos e das ferramentas destas dezenas de pessoas, com uma organização e uma coordenação tão perfeitas como um ballet.

A construção comunitária de celeiros (ou de igrejas) tem mais de dois séculos de tradição na América do Norte, mas hoje em dia é mantida quase exclusivamente pelas comunidades religiosas menonitas e amish.

Não tenho nenhuma simpatia particular por estas comunidades religiosas, cujas crenças respeito, mas não é possível ver este celeiro a subir no céu sem sentir uma enorme vontade de estar lá, de ajudar a levantar aquelas vigas, de cravar aquelas traves, de pregar aquelas tábuas, de assentar aquele telhado e de, no fim, levantar os olhos para admirar a construção que nos saiu das mãos. Ou sem pensar se não haverá por aqui, ao pé de casa, num sítio qualquer, um celeiro que possamos ajudar a construir com as nossas mãos, ou uma escola, ou um jardim, ou outra coisa qualquer que possamos ver erguer-se diante dos nossos olhos, com a ajuda de outras pessoas como nós, que saibamos para quê e para quem vai servir e que saibamos que vai ser útil.

O trabalho moderno foi-nos afastando da matéria física de tal maneira, foi-nos alienando de tal forma da finalidade última do próprio trabalho, foi-nos especializando em detalhes de tal forma microscópicos que perdemos de vista o seu verdadeiro fim e não podemos deixar de olhar imagens como estas com nostalgia. Quantas pessoas sentem que o seu trabalho tem tanto sentido como a construção deste celeiro?

O que é estranho é que isto, a construção deste celeiro, seja uma raridade, uma excepção, algo exótico, uma bizarrice de uma comunidade religiosa que vive como se estivesse no século XVIII. Num mundo onde a comunicação é tão fácil e onde as necessidades são tão evidentes e tão gritantes, deveria haver grupos a construir celeiros em todos os bairros, em todas as ruas, em todos os países. Mas não há. Pelo contrário. Todos os sistemas que vemos à nossa volta parecem desenhados para produzir mais exclusão que comunidade, mais conflito que cooperação. A finalidade última no mundo do trabalho parece ser reduzir o número de trabalhadores, aumentar o desemprego, apesar de tudo à nossa volta nos mostrar de forma evidente que é preciso mais trabalho. E o trabalho, quando existe, é crescentemente transformado numa competição insensata ou numa série de tarefas sem sentido e sem dignidade onde a ideia de serviço à comunidade foi substituída pela redução de custos para servir o lucro.

Onde é que há celeiros para construir? A política poderia fornecer um objectivo e um desafio, e certamente que proporciona suficientes problemas, mas basta olhar o triste espectáculo da Universidade de Verão do PSD, com os seus jovens despreocupados à espera de um tacho bem remunerado, ou os militantes do PS que se erguem da tumba para votar nas federações para perceber que por aqui não há nenhum celeiro a construir, apenas uma procura do poder com escassos escrúpulos.

Conseguimos construir uma sociedade onde a desigualdade é crescente, onde a destruição do planeta é crescente, onde as guerras alastram, onde as crianças ainda morrem de fome e de bombas e onde as ideias com mais capacidade de mobilização dos jovens são, de novo, como há cem anos, sonhos de guerra e destruição, de morte e de fanatismo. Como é possível que seja mais fácil recrutar jovens para decapitar jornalistas no Médio Oriente ou para espancar emigrantes na Europa do que para construir um celeiro? E, no entanto, se houvesse celeiros para construir, talvez alguém se entusiasmasse e pegasse num martelo e nuns pregos e estivesse disposto a experimentar. Deve ser giro fazer um celeiro. E depois, quem sabe, talvez pudéssemos construir outro celeiro...

jvmalheiros@gmail.com 


segunda-feira, setembro 08, 2014

Uma crise, muitas crises. Um desafio, muitos desafios - Um novo jornalismo para servir a democracia

Texto escrito a pedido do Gustavo Cardoso para o "Projecto Jornalismo e Sociedade"

José Vítor Malheiros
Agosto 2014


A crise do negócio

Parece claro que o maior problema que afecta o jornalismo hoje na Europa e EUA - e, de forma especialmente aguda, em Portugal - diz respeito à sua sustentabilidade econ ómico-financeira. Os modelos de negócio do passado morreram e o jornalismo encontra hoje uma enorme dificuldade para vender o seu produto, mesmo que não peça mais aos seus clientes do que o preço de custo.
Durante cem anos quase não foi preciso imaginação para equilibrar as contas de um jornal. Somando vendas em banca, assinaturas, anúncios classificados e anúncios comerciais, era possível cobrir os custos da uma redacção, de uma estrutura empresarial e os custos industriais de produção de um jornal. E, se a empresa não tinha sucesso, era simplesmente por insuficiências da gestão ou porque o jornal não tinha conseguido encontrar o seu público, gerador de todas as receitas. Mas onde um jornal fracassava, outro era bem sucedido. O modelo funcionava.
Com o aparecimento da Internet e a profusão de oferta de informação, algo mudou de forma radical. Os jornais, as revistas, as rádios e as televisões perderam o seu monopólio de informar, que foi disseminado por milhões e milhões de produtores e difusores de informação, públicos e privados, amadores e profissionais, particulares e empresas, individuais e colectivos, com ou sem fins lucrativos, de todas as cores e credos, que começaram a disputar a atenção e o tempo dos leitores e lhes ofereciam informação e opinião grátis, muitas vezes de boa qualidade.
O público que cada órgão de comunicação social perdia "para a Internet" foi alimentando um círculo vicioso para o negócio: menos leitores significava menos publicidade e publicidade vendida mais barata, o que significava menos receitas, o que significava menos jornalistas e menos jornalismo, o que significava um produto menos atractivo e menos relevante, o que significava menos leitores...
As tentativas de fazer cobrar o acesso às versões online dos jornais, por seu lado, só muito raramente foram bem sucedidas, com uma maioria de leitores a recusar o pagamento e a prescindir do acesso. Afinal, quando se tem toda a Internet, o que representa um jornal a mais ou a menos?
Muitos jornais continuam, tristemente, a não perceber isto. A não perceber que o seu concorrente deixou de ser "o outro jornal" e "a outra televisão" e passou a ser "toda a Internet" e que a diferenciação se tem de conseguir hoje em relação a "toda a Internet" ou, para ser mais rigoroso, em relação a toda a Internet do mesmo espaço linguístico.
O facto de o jornalismo não gerar suficientes receitas para se financiar a si próprio não é um problema novo. Uma parte considerável das receitas dos jornais sempre se deveu a outros tipos de conteúdos. Comprava-se o jornal não só para ler as notícias mas também para ver o cartaz de cinema ou a programação da televisão, para procurar emprego ou para alugar casa, para ver que tempo faria amanhã e para saber que farmácia estava de serviço. E os anunciantes publicavam anúncios no jornal porque sabiam que iam chegar a todos estes segmentos do público. Só que o jornalismo estava colado aos outros conteúdos. Mas de repente, com a Internet, os jornais clássicos desagregaram-se e surgiram serviços que forneciam toda essa informação por todo o lado, 24 horas por dia, em actualização constante, sem ser preciso comprar um jornal ou pagar a informação. Os compradores diminuíram e, sem essas receitas, o jornalismo tornou-se dificilmente sustentável.
Não cabe aqui tentar encontrar a solução para o problema do novo modelo de negócio dos jornais. Penso que não há uma solução mas muitas soluções. Há jornais bem sucedidos em muitos países, com diferentes modelos, provavelmente não reprodutíveis. Mas é claro que muitos jornais continuarão a desaparecer e que já não há lugar para o "jornal  transatlântico" do passado, uma cidade flutuante com secções para toda a família, para todos os gostos e todos os momentos. Penso que olharemos em breve para esses grandes jornais como olhamos para os dinossauros.

A crise de auto-estima

A crise do negócio trouxe consigo uma crise da auto-estima dos jornalistas. Numa sociedade onde o sucesso se mede em grande medida pelo poder e pelo poder económico, viver com um estatuto de fragilidade, à beira da falência e do risco de extinção, ser incapaz de garantir a independência financeira das suas empresas, tentar sobreviver contrariando um mercado que nos considera irrelevantes e dispensáveis (como organização e como profissionais, apesar da manutenção de uma certa aura social) não era fácil. Para mais quando a esta perda de poder e perda de estatuto como profissionais se somava uma violenta perda de estatuto como trabalhadores, vivendo sob a ameaça da despromoção, do despedimento e do desemprego.
De arrogantes representantes do quarto poder, independentes e influentes, capazes de fazer ouvir a sua voz e de fazer tombar poderosos, os jornalistas 
começaram a sentir-se transformados em entidades negligenciáveis no mundo saturado de informação da Internet.
Por outro lado, os profissionais mais conscientes tinham a perfeita noção de que este não era o jornalismo que tinham sonhado fazer quando escolheram a profissão nem, na maioria dos casos, os jornalismo que tinham aprendido a fazer.

A crise da organização

A crise do negócio teve outras consequências graves ao nível das empresas. As empresas de comunicação social adoptaram estratégias de redução de custos que foram até ao osso: as redacções encolheram drasticamente, geralmente através do despedimento dos jornalistas mais experientes e mais caros; os salários médios desceram; os contratos precários tornaram-se a regra, assim como o abuso de "estágios" não pagos; os gastos da redacção foram reduzidos ao mínimo, nomeadamente em deslocações e reportagens; a formação profissional desapareceu; os jornalistas especializados foram pressionados a tornar-se generalistas, usando o argumento de que um "verdadeiro" jornalista tanto escreve sobre crime como entrevista o ministro das Finanças e foi imposto um ritmo de cadeia de montagem nas redacções. Foi tudo feito em nome da eficiência e da competitividade, da sobrevivência das empresas e da salvação do jornalismo, mas esta revolução produtivista teve duas consequências maiores: a proletarização dos jornalistas, com tudo o que isso significa de descida do nível de vida e de fragilização da classe, e a instauração de um modo de produção industrial naquilo que, durante um século, tinha sido uma actividade eminentemente intelectual.
Em termos simples: nas redacções deixou de haver tempo para pensar, para discutir, para trocar ideias, para investigar, para confirmar, para criticar, para estudar, para ler, num momento onde as apostas deveriam ter sido feitas precisamente num aumento do rigor, na capacidade de análise e na investigação como factores de diferenciação e de competitividade num mundo cada vez mais complexo e submerso em cada vez mais informação. Em vez disso, víamos jornais a disputar ao segundo quem publicava primeiro uma notícia fútil que, passado um minuto, todos os jornais teriam.
A qualidade do jornalismo ressentiu-se, o jornalismo tornou-se mais igual e os leitores castigaram os jornais deixando cada vez mais de os ler. Porquê ler um jornal que traz a mesma notícia que todos os outros, que comete os mesmo erros que todos os outros e que cita as mesmas fontes que todos os outros?
A redacção, por seu lado, amputada no seu papel de rede social, com secções desarticuladas para reduzir o poder reivindicativo dos jornalistas e chefias intermédias desautorizadas e reduzidas a uma função de capatazes, perdeu em grande medida a sua autoridade, o seu papel de comunidade de prática, de entidade formadora, de instância de validação de procedimentos e de reconhecimento de méritos, de repositório de histórias de referência, de lugar de todas as discussões e de fonte da cultura jornalística.
Mesmo nas raras redacções onde estes problemas não se colocaram de forma tão violenta e que não sofreram desestruturações por razões económicas, não foi fácil encontrar soluções organizativas que respondessem aos novos desafios. Como articular a produção para o papel e para o online? Que importância dar ao vídeo? Como proporcionar aos profissionais as novas competências necessárias? Todos os jornalistas devem produzir histórias multimedia? Que tipo de workflow serve melhor uma empresa que produz informação a diferentes ritmos e para diferentes suportes? Como envolver os leitores? Como usar as redes sociais? 
As redacções viram-se assim mergulhadas num absoluto caos onde nenhuma referência (técnica, cultural, ética) parecia segura.

A crise da ética jornalística

O modo de produção industrial impõe as suas leis. Se o que se exige aos jornalistas acima de tudo é que escrevam muito em pouco tempo, verifica-se uma inversão dos critérios jornalísticos e uma corrupção das boas práticas. A importância e a relevância são subalternizados como critérios para dar lugar à facilidade de produção. A facilidade de acesso à informação, a disponibilidade dos dados, a proximidade da fonte e a redução ao mínimo do contraditório tornam-se os critérios por excelência. Se todos os elementos relativos a um dado assunto me caírem no mail, é sobre esse assunto que vou escrever. Quando se recebe uma informação bem preparada, bem formatada, sem erros de português, que para mais cita "dados oficiais", quando a fonte institucional está disponível do outro lado do telefone, essa informação terá precedência sobre outra história, talvez muito mais importante para os leitores mas mais confusa, com mais imponderáveis, com hipóteses por confirmar, dados por desenterrar, mais polémica, com diferentes intervenientes com interesses opostos e que será muito mais difícil de confirmar e de escrever.
O modo de produção industrial do jornalismo promove assim um "jornalismo" institucional, sempre ligado ao poder, que foge de problemas que fazem desperdiçar tempo e recursos, um jornalismo de fontes oficiais e dados oficiais, de narrativas pré-formatadas, de "exclusivos" de gabinetes de comunicação, de meetings "off the record" com membros do governo, de comunicados de imprensa e de "conferências de imprensa" com declarações oficiais e sem perguntas. Não se trata de corrupção dos jornalistas, ainda que ela possa existir. Trata-se da corrupção do jornalismo. Trata-se de criar restrições de tempo e de despesa ao trabalho jornalístico, de fragilizar jornais e jornalistas a um ponto tal que estes receiem qualquer confronto, receiem criar inimigos, trata-se de incutir nos jornalistas uma "disciplina profissional" que é de facto um manual de obediência e de prudência, quando não de respeitinho. E de o fazer de forma insidiosa, em nome da "boa gestão", da "produtividade", das boas relações com as fontes.
Muitos jornalistas aprendem assim a sua profissão, como operários de uma cadeia de montagem onde tudo o que possa perturbar o ritmo de produção será mal visto, onde "parem as rotativas" é um crime de sabotagem económica e não um grito de independência e um apelo à cidadania. Onde um jornalista céptico que verifica o que lhe dizem e que gosta de perceber o que se passa antes de escrever dificilmente tem lugar. Chegamos assim à era do fast journalism.

A crise de reputação 

O problema do fast journalism é que não oferece nada de novo nem nada de subtantivo aos leitores/ouvintes/espectadores. Tem algum valor de entretenimento mas não oferece nada daquilo que constitui a razão de ser do jornalismo: informação independente e crítica que nos ajuda a compreender e a agir sobre o mundo.
O cidadão comum pode consumir este jornalismo desde que lho seja oferecido sem custo, mas o cidadão exigente interroga-se. Para que lhe serve este jornalismo que apenas consegue fornecer algum sentido ao mundo se for complementado com a leitura de sites de organizações cívicas, de blogues de comentadores amadores, de publicações académicas, de discussões nas redes sociais? Para que serve um jornalismo que pode ser substituído com vantagem por todas aquelas fontes?
Para que serve um jornalismo que, seja por simpatia ideológica ou por manifesta falta de meios, apenas repete a narrativa do poder?  Para que serve um jornalismo que repete a narrativa do poder mesmo quando é manifesto que ela é falsa?
Para que serve um jornalismo que apenas desmascara os escândalos que já se tornou impossível manter secretos? Para que serve um jornalismo cujo poder, de tão reduzido, nunca atinge os poderosos? Para que serve um jornalismo que distrai mais do que mobiliza, que bajula mais do que critica?
A reputação do jornalismo tem vindo assim a cair. Nos EUA, a guerra do Iraque  ou a crise do subprime marcam dois momentos de descalabro da reputação da imprensa. Dois enormes escândalos que a imprensa deixou passar incólumes, durante anos, até que eles rebentassem por si sós ou desencadeados por instituições do mundo político, policial ou económico mas não pela imprensa. Uma parte da sociedade americana percebeu só nestes momentos que o "balanced reporting"; de que a boa imprensa americana se orgulha tanto, não é mais do que oferecer tempo de antena às duas forças mais poderosas do establishment e abandonar qualquer preocupação de chegar à verdade.
No Portugal recente podemos dar o exemplo da mentira da "sustentabilidade" da dívida pública, apenas desmontada pela imprensa após inúmeras movimentações de organizações cívicas.
Para que serve um jornalismo que não quer chegar à verdade?
Continuamos a ver o "jornalismo" fazer o seu relato "equilibrado" espetando o microfone à frente do Governo e da Oposição e esquecendo os factos, que ficam do lado de fora, a espreitar pela janela. Para que serve um jornalismo pé-de-microfone? Para que serve um jornalismo que não questiona? Para que serve um microfone que só questiona quem está na mó de baixo? Para que serve um jornalismo que ignora as minorias e os atropelos aos direitos? Para que serve um jornalismo que se entende como a voz do "arco do poder" e que se contenta com o pluralismo dos vários elementos do "arco do poder", mesmo quando é evidente que todos mentem? Estas questões, que todos os cidadãos começam a colocar, ferem de morte a reputação do jornalismo, envenenam a dignidade que lhe resta. E os media passam a fazer parte daquelas instituições em que ninguém (ou quase) confia, como os partidos políticos, o Governo, a Justiça, já não watchdog dos poderes mas cão de regaço dos poderosos.

A crise de credibilidade

E não se trata apenas de uma crise de reputação (que pode ser devida a mil factores e até ter razões honrosas) mas especificamente de uma crise de credibilidade. O problema é que não se pode acreditar no jornalismo. O problema é que a informação transmitida pelo jornalismo é tão sectária, tão propagandística, tão subserviente, tão classista, tão sexista, tão sensacionalista, tão pouco rigorosa ou tão descuidada que não merece mais credibilidade que o rumor que se ouve na praça. Não quer dizer que não haja imensas verdades nos jornais. Quero apenas dizer que essas verdades estão imersas num tal mar de mentiras que lhe retiram toda a credibilidade, toda a autoridade moral.
Os jornalistas dão-se conta disto com particular acuidade e sofrimento.

A crise de identidade

Há muito, entre os jornalistas, quem se ofenda com este estado de coisas. Com a redução do papel de fiscalização dos poderes que compete ao jornalismo, com a standardização e a plastificação do fast journalism, com a inexistência de meios para fazer outra coisa. Uma maioria de jornalistas sabe que o infotainment e os faits-divers que enchem os jornais e os telejornais não são o seu trabalho e gostaria de fazer outra coisa.
Mas qual é afinal o papel do jornalista neste mundo? O que é ser jornalista? Qual é o papel do jornalista numa empresa onde o classificam como "produtor de conteúdos" e onde a sua função parece resumir-se a encher um continente chamado "página" ou "site" ou qualquer outra coisa? Qual é o papel do jornalista numa empresa onde lhe dizem que a sua principal responsabilidade é contribuir para a solidez financeira do jornal, mesmo que para isso seja preciso pôr o jornalismo na gaveta, pois sem jornais não haverá jornalismo? Qual é o papel do jornalista quando lhe dizem que, na actual situação de incerteza, um jornal não se pode dar ao luxo de fazer demasiados inimigos?
Qual é papel do jornalista num mundo onde, de repente, todos parecem ser jornalistas e onde a fiscalização dos poderes é feita por organizações como a Wikileaks e onde as reputações se constroem e destroem no YouTube? E como fiscalizar os poderes sem cometer o pecado mortal de parecer militante?
Qual é o papel do jornalista num mundo onde se pode encontrar excelente informação sobre todos os temas em milhões de sites institucionais ou amadores? Para que servimos? Em que somos diferentes dos outros? Ainda somos indispensáveis? Somos sequer relevantes? Somos melhores que os amadores, que os bloggers? Se desaparecêssemos alguém daria por isso? A quem faríamos falta?
A situação de fragilidade das empresas jornalísticas espalhou a confusão no seio dos jornalistas. Em vez de se concentrarem no essencial, muitas empresas jornalísticas começaram a disparar em todas as direcções, fascinadas pelas possibilidades da tecnologia. Outras, sentindo-me ameaçadas pela avalanche de informação, tentaram ganhar o campeonato da quantidade e da rapidez, mesmo quando não tinham meios para tal.
E a esmagadora maioria continuou a fazer sensivelmente a mesma coisa que fazia antes, ignorando um mundo que se alterava radicalmente à sua volta.
Qual deve ser o papel do jornalista hoje em dia é uma pergunta mais urgente do que nunca e, sem encontrar a resposta, não vai ser possível devolver ao jornalismo a alma que ele se arrisca a perder. 

A crise narrativa

As novas possibilidades abertas pelo online, pelo multimédia, pelas redes sociais, pelo acesso à massa de informação da Internet trouxeram novos problemas aos jornalistas, independentes de todos os outros mas não menos graves.
Como se escreve uma história quando se têm todas estas ferramentas ao alcance dos dedos? Textos longos ou curtos? Ou diaporamas? Como se escreve um texto quando sabemos que os jovens vêem mais vídeos do que lêem textos e que o telemóvel está a suplantar o computador como suporte de acesso à informação? Como se atrai um leitor (espectador?) quando se sabe que a principal via de acesso a uma notícia é através da referência de um amigo no Facebook? Como usar o Facebook? Que suporte escolher? Como falar com os leitores? Como aproveitar as suas contribuições? Como se explora o acesso às bases de dados para fazer um melhor jornalismo? Usar o Twitter ou fazer dossiers multimédia exaustivos? Tell it first ou tell it better? Textos que façam vender o jornal ou que expliquem o mundo?
Perante uma tal crise de modelo narrativo e perante tantas possibilidades, seria de esperar uma explosão de experiências e elas tiveram lugar de facto... mas só raramente nas empresas jornalísticas. Estrangulados por demasiadas urgências, os jornalistas mais uma vez se deixaram ultrapassar por outros profissionais talentosos (artistas, informáticos) e outras organizações, perdendo uma oportunidade de mostrar ao mundo para que serviam as suas competências próprias.

A crise da verdade

O modelo do jornalismo anglo-saxónico, adoptado como referência na Europa, apostado numa abordagem profissional e não política, preocupado com os "factos" e com a "objectividade" e fugindo do pecado mortal da opinião, acabaria, com a profissionalização dos gabinetes de comunicação em todas as organizações, por evoluir para o modelo do jornalismo "equilibrado", que pretende que a descrição justa de um acontecimento e das suas consequências é a que resulta da combinação dos pontos de vista dos diferentes intervenientes e utiliza ao mínimo as capacidades de interrogar a realidade do próprio jornalista.
Esta visão resulta do debate filosófico sobre a inexistência da objectividade, mas também da visão da democracia como o regime do confronto de interesse e da negociação. O problema com esta visão é que nem todos os interesses possuem a mesma voz e a mesma visibilidade, que nem todos possuem o mesmo peso e nem todos são fáceis ou sequer possíveis de identificar. Tentar explicar a crise financeira através de entrevistas com o ministro das Finanças, o Governador do Banco de Portugal e (em nome do "contraditório") com o porta-voz da oposição, não é o mesmo que tentar explicar a crise citando um sem-abrigo, um desempregado e um sindicalista. A versão "equilibrada", com "contraditório", acaba por ser uma versão institucional de onde se torna flagrantemente evidente, em momentos de crise, que a verdade está ausente.
Com a crise financeira, por exemplo, tornou-se evidente que a versão que mais rigorosamente correspondia ao desenrolar dos acontecimentos (na crise do subprime nos EUA, na crise do euro na UE, na crise do BPN ou do BES em Portugal) era uma narrativa marginal, de sectores de esquerda, que foi sistematicamente abafada na narrativa mediática predominante ou apresentada com uma encenação que a identificava como uma bizarria sem credibilidade.
Este sentimento do jornalismo como uma actividade que, em momento cruciais, não esteve do lado da verdade mas do lado do poder, põe em causa de uma forma particularmente dolorosa a sua razão de ser e obriga-nos a revisitar problemas éticos e técnicos que o jornalismo pensava estarem resolvidos.
O jornalismo tem de correr o risco de tentar apurar factos mesmo (ou principalmente) quando eles não coincidem com as verdades oficiais e tem de correr o risco de construir uma narrativa própria, integrando todos os elementos que honestamente considere relevantes e contrariando as verdades oficiais sempre que necessário.

A crise democrática

A institucionalização de um pensamento hegemónico que o jornalismo não só não combate mas tende a impor ou a tratar com benevolência, mesmo perante a evidência dos seus malefícios, constitui uma das consequências e uma das causas mais graves das crises do jornalismo.
Afinal, a informação serve para fazer escolhas e para formar opinião. Mas, se não é possível uma verdadeira escolha, se o leque de opções é tão estreito como é apresentado pelo jornalismo, se apenas se pode alternar entre dois partidos que são primos direitos, se apenas se pode escolher entre o lume a frigideira, se há tantas escolhas sem alternativa, por que razão me devo incomodar? 
Se o jornalismo não me informa sobre o leque de escolhas, se não alarga o leque de escolhas mas antes o estreita, se não me dá informação para escolher de entre todas as opções possíveis, para que serve?
Por que razão preciso de me informar se, pense eu o que pensar, não posso alterar de forma alguma o que se passa à minha volta?
A ideia hegemónica "there is no alternative" que o jornalismo (activa ou passivamente) tem contribuído para difundir transporta uma sentença de morte para o jornalismo e para a democracia.
Se o jornalismo não dá voz aos que não têm voz, se não conta as histórias que alguns querem silenciar mas antes participa no silenciamento, para que serve?
Se o jornalismo é apenas uma caixa de amplificação das vozes que já se fazem ouvir por todo o lado, para que serve?
A ideia de que o jornalismo é uma asséptica ferramenta de informar as massas e não um instrumento fundamental para a democracia, uma actividade cívica por excelência e política por definição, tem colaborado em larga medida para a degradação do jornalismo.
A ideia do jornalista como mediador entre a realidade e os leitores, entre a sociedade e os cidadãos, foi substituída por uma ideia do jornalismo como mediador entre as organizações e os consumidores. O desejo de fazer um jornalismo de onde o conflito está ausente, um jornalismo defensivo que "apenas relata o que lhe dizem" e não corre riscos é contrária ao próprio jornalismo.

O que fazer?

O que se pode extrair daqui, deste panorama catastrófico?
Penso que a consciência desta situação de grave crise traz consigo um mar de possibilidades e muito mais do que uma réstia de esperança.
Penso que, para os cidadãos, é hoje mais evidente do que há dez anos que há escolhas fundamentais que não podemos deixar de fazer e que o jornalismo é fundamental para as podermos fazer de forma informada.
Gosto de dizer que "o objectivo do jornalismo é produzir democracia" (em geral para pasmo das assistências) e penso que é necessário retomar essa chama.
O objectivo do jornalismo é produzir democracia porque a democracia é o regime das escolhas e apenas se pode escolher quando se sabe quais são as possibilidades, quais são as consequências, os custos e os benefícios de cada uma, quando se sabe quem defende o quê e porquê e quando é possível debater tudo isto. Não se podem fazer escolhas sem ter informação, sem ter opinião, sem ter debate público. E tudo isto são os deveres do jornalismo: informação, opinião, debate público. O papel do jornalismo não é fazer de moço de recados dos poderosos.
O jornalismo é também uma máquina de produção de racionalidade porque interroga e obriga a sustentar um discurso em factos e na razão. Não basta repetir o que diz o Governo, mas é preciso saber por que o diz, porque só o diz agora, porque diz agora o contrário do que disse, porque diz o mesmo que Fulano e o contrário de Sicrano. O papel do jornalismo não é repetir, mas interrogar, confrontar, contrapor, confirmar, desmentir.
E, mais importante, o papel do jornalismo não é apenas perguntar e citar, mas ver, investigar e explorar no terreno.
Este papel interveniente, cívico, activo do jornalismo é esperado por toda a sociedade.
Mas isso não significa tomar partido? Deverá o jornalista fazer isso?
Significa e deve. Deve tomar partido pela verdade, pelos factos, pela democracia, pelos direitos, pelos cidadãos (por todos os cidadãos, mesmo os esquecidos) contra a mentira, contra a propaganda, contra os abusos, contra a manipulação.
Significa correr riscos? Certamente. Nem sempre será fácil escolher o que se diz e o que se publica, mas aqui, como sempre, terá de ser a consciência e a transparência de procedimentos a ditar o curso das acções.
O momento que vivemos, com as ferramentas tecnológicas fascinantes (e também perigosas) que temos na ponta dos dedos, mostram-nos todos os dias que o jornalismo está a mudar de forma drástica. Mas mostram-nos também que é hoje possível fazer muito mais e melhor do que fazíamos há dez anos. É hoje possível envolver o público neste novo jornalismo, apostando no trabalho colaborativo, no citizen journalim, no data journalism. O jornalismo nunca foi tão necessário porque a democracia nunca foi tão urgente como agora. As ferramentas estão aí e o público espera isso dos jornalistas. Não de forma passiva como no passado, mas de forma participativa, o que é melhor. O que esperamos?
FIM

terça-feira, setembro 02, 2014

A maquilhagem dos currículos e os documentos desaparecidos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Setembro de 2014

Crónica 41/2014

O mínimo dos mínimos de informação a que temos direito é o currículo dos detentores de cargos públicos
1. O Governo, através da secretária de Estado do Tesouro, Isabel Castelo Branco, nomeou a 18 de Agosto e exonerou a 29 de Agosto Mário João Coutinho dos Santos para exercer o cargo de coordenador da Unidade Técnica de Acompanhamento e de Monitorização do Sector Público Empresarial. A razão oficial do afastamento são “razões pessoais” alegadas pelo exonerado, as razões não oficiais são o facto de Coutinho dos Santos ter sido, enquanto director financeiro do Metro do Porto, responsável pela subscrição de alguns dos swaps que nos estão a custar a todos uma não pequena fortuna - facto que foi denunciado pela imprensa logo após a nomeação.
O episódio não seria mais sórdido do que muitos outros protagonizados pelo Governo se não se desse o facto de a passagem de Coutinho dos Santos pela direcção financeira do Metro do Porto não constar do currículo anexo ao despacho de nomeação. Coutinho dos Santos diz que enviou um detalhado “currículo com 14 páginas ao Ministério das Finanças”. Só que… desse currículo também não consta a passagem pela direcção financeira do Metro do Porto e o próprio interessado tentou negar ao Público (ver aqui:tinyurl.com/ndcyhog) que tivesse assumido essa responsabilidade.

É possível que uma pessoa se esqueça de boa-fé de um pormenor no seu currículo. Mas ser director financeiro do Metro do Porto “de Julho de 2006 a Abril de 2010”, datas que a própria empresa confirmou ao Público, não é um pormenor. E as tentativas feitas pelo próprio de minimizar a sua responsabilidade nesse período sugerem que a ausência deste item no currículo não terá sido fruto de um lapso.

Os factos são que Coutinho dos Santos escamoteou informação relevante do currículo que entregou ao Ministério das Finanças e que este fez o mesmo na informação que disponibilizou aos cidadãos. São dois factos graves, ainda que não inéditos (lembremo-nos de Rui Machete, Franquelim Alves, Pedro Passos Coelho...).

Acontece porém que o mínimo dos mínimos de informação a que temos direito sobre os responsáveis políticos, os detentores de cargos públicos ou pagos pelo erário público é o conteúdo integral dos seus currículos políticos e profissionais. Sem serem maquilhados pelos assessores do Governo, nem editados pelas agências de informação do PSD, nem expurgados pelos gabinetes de advogados ao serviço dos partidos. Que informação deve ser tornada pública? Toda a informação profissional, os cargos ocupados, remunerados ou não, toda a actividade política e as organizações a que se pertence e pertenceu e os cargos aí exercidos, a informação judicial de carácter público.

Tomemos como exemplo a informação que é fornecida no site do Governo sobre os ministros e secretários de Estado e sobre os deputados da Assembleia da República no site do Parlamento. Trata se de uma gigantesca colecção de mentiras por omissão, uma operação de branqueamento, onde é nítida a preocupação em fazer desaparecer as relações entre ministros e deputados e o poder económico. Paulo Portas, por exemplo, “Fundou e dirigiu um centro de sondagens.” Passos Coelho “conciliou a gestão de empresas - no campo da energia e ambiente - com a docência e a Presidência da Assembleia Municipal de Vila Real.”

Um argumento que já ouvi em favor dos mini-CV é que são mais legíveis. Mas aqui vai uma sugestão: um link. Uma página com o mini-CV e um link para uma página com o CV integral que todos queremos ler. Actualizado.

Os partidos de esquerda podiam dar o exemplo da informação que deve ser fornecida aos cidadãos e começar a divulgar CV detalhados dos seus dirigentes e deputados, como nós gostaríamos de ter para os Coutinhos dos Santos e Passos Coelhos deste mundo. Seria fácil e instrutivo.
2. Infelizmente, não se trata apenas de CV. Os documentos oficiais têm o hábito de desaparecer nas mãos dos homens e mulheres do “arco do poder” e deste Governo em particular. Ou de serem entregues a escritórios de advogados privados por razões nunca explicadas. 

Recentemente, ficámos a saber que documentação essencial relativa à compra e ao contrato de contrapartidas dos submarinos não se encontra em lado nenhum. Ninguém sabe onde está, nem onde deveria estar nem à ordem de quem foi guardado ou desapareceu. Este desvio de documentação oficial é um crime que fragiliza a posição do Estado, mas mostra bem até que ponto esse Estado foi sequestrado e está a ser roubado pelos mais negros interesses privados.
É indispensável definir regras (ou clarificar as que existem, que são talvez demasiado confusas para serem cumpridas) quanto à produção e guarda de documentação deste tipo. E, já agora, criar o saudável hábito de fazer e guardar actas das várias reuniões onde se discutem assuntos oficiais e que são em geral tratadas como se se tratasse de conversas de vizinhos no patamar da escada. Percebe-se a informalidade e a repugnância por registos escritos. Eles podem um dia responsabilizar alguém. Essa informalidade e essa repugnância são comuns no mundo do crime organizado. Mas, como se trata do nosso país, da nossa vida e do nosso dinheiro, nós gostávamos que o Governo adoptasse um comportamento diferente.