terça-feira, setembro 09, 2014

Deve ser giro construir um celeiro

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Setembro de 2014
Crónica 42/2014


Conseguimos construir uma sociedade onde as ideias com mais capacidade de mobilização dos jovens são, de novo, como há cem anos, sonhos de guerra e destruição.


É um daqueles vídeos que se espalham pelas redes sociais online em meia dúzia de horas e que em geral vemos meio fascinados pela sua originalidade e meio arrependidos por estarmos a perder tempo com futilidades.

Este tem três minutos e meio e é formado por uma série de 1600 fotografias tiradas por uma câmara fixa com intervalos de vinte segundos, ao longo de um dia, das sete da manhã às cinco da tarde (tinyurl.com/pd22pdq).

O vídeo mostra a construção de um enorme celeiro de madeira, no estado americano do Ohio, por uma comunidade amish, no dia 13 de Maio deste ano. As imagens têm a magia de todas as filmagens aceleradas e não resistimos a passá-las uma e outra vez, para ver a enorme estrutura de madeira surgir do nada e elevar-se da terra. Mas o que nos fascina de facto é a forma como a complexa estrutura vai saindo das mãos e das ferramentas destas dezenas de pessoas, com uma organização e uma coordenação tão perfeitas como um ballet.

A construção comunitária de celeiros (ou de igrejas) tem mais de dois séculos de tradição na América do Norte, mas hoje em dia é mantida quase exclusivamente pelas comunidades religiosas menonitas e amish.

Não tenho nenhuma simpatia particular por estas comunidades religiosas, cujas crenças respeito, mas não é possível ver este celeiro a subir no céu sem sentir uma enorme vontade de estar lá, de ajudar a levantar aquelas vigas, de cravar aquelas traves, de pregar aquelas tábuas, de assentar aquele telhado e de, no fim, levantar os olhos para admirar a construção que nos saiu das mãos. Ou sem pensar se não haverá por aqui, ao pé de casa, num sítio qualquer, um celeiro que possamos ajudar a construir com as nossas mãos, ou uma escola, ou um jardim, ou outra coisa qualquer que possamos ver erguer-se diante dos nossos olhos, com a ajuda de outras pessoas como nós, que saibamos para quê e para quem vai servir e que saibamos que vai ser útil.

O trabalho moderno foi-nos afastando da matéria física de tal maneira, foi-nos alienando de tal forma da finalidade última do próprio trabalho, foi-nos especializando em detalhes de tal forma microscópicos que perdemos de vista o seu verdadeiro fim e não podemos deixar de olhar imagens como estas com nostalgia. Quantas pessoas sentem que o seu trabalho tem tanto sentido como a construção deste celeiro?

O que é estranho é que isto, a construção deste celeiro, seja uma raridade, uma excepção, algo exótico, uma bizarrice de uma comunidade religiosa que vive como se estivesse no século XVIII. Num mundo onde a comunicação é tão fácil e onde as necessidades são tão evidentes e tão gritantes, deveria haver grupos a construir celeiros em todos os bairros, em todas as ruas, em todos os países. Mas não há. Pelo contrário. Todos os sistemas que vemos à nossa volta parecem desenhados para produzir mais exclusão que comunidade, mais conflito que cooperação. A finalidade última no mundo do trabalho parece ser reduzir o número de trabalhadores, aumentar o desemprego, apesar de tudo à nossa volta nos mostrar de forma evidente que é preciso mais trabalho. E o trabalho, quando existe, é crescentemente transformado numa competição insensata ou numa série de tarefas sem sentido e sem dignidade onde a ideia de serviço à comunidade foi substituída pela redução de custos para servir o lucro.

Onde é que há celeiros para construir? A política poderia fornecer um objectivo e um desafio, e certamente que proporciona suficientes problemas, mas basta olhar o triste espectáculo da Universidade de Verão do PSD, com os seus jovens despreocupados à espera de um tacho bem remunerado, ou os militantes do PS que se erguem da tumba para votar nas federações para perceber que por aqui não há nenhum celeiro a construir, apenas uma procura do poder com escassos escrúpulos.

Conseguimos construir uma sociedade onde a desigualdade é crescente, onde a destruição do planeta é crescente, onde as guerras alastram, onde as crianças ainda morrem de fome e de bombas e onde as ideias com mais capacidade de mobilização dos jovens são, de novo, como há cem anos, sonhos de guerra e destruição, de morte e de fanatismo. Como é possível que seja mais fácil recrutar jovens para decapitar jornalistas no Médio Oriente ou para espancar emigrantes na Europa do que para construir um celeiro? E, no entanto, se houvesse celeiros para construir, talvez alguém se entusiasmasse e pegasse num martelo e nuns pregos e estivesse disposto a experimentar. Deve ser giro fazer um celeiro. E depois, quem sabe, talvez pudéssemos construir outro celeiro...

jvmalheiros@gmail.com 


Sem comentários: