terça-feira, janeiro 28, 2014

O novo paradigma da ciência: a avaliação opaca

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Janeiro de 2014
Crónica 4/2014


Avaliação é processo. E quando o processo não tem qualidade, o seu resultado não o pode ter


1. O presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Miguel Seabra, acha que as regras são uma chatice que atrasa tudo.

É verdade que houve alterações introduzidas por “razões administrativas” nas avaliações dos candidatos às bolsas de doutoramento e pós-doutoramento e que essas alterações (que em certos casos alteraram a ordenação dos candidatos) não foram previamente comunicadas e muito menos discutidas com as comissões de avaliação, o que já motivou queixas e demissões por parte de avaliadores. Mas Miguel Seabra explicou na Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República, onde foi prestar esclarecimentos a pedido do Bloco de Esquerda, que se se tivesse feito tudo como deve ser a FCT demoraria “mais um mês a publicar os resultados”. Assim foi mais rápido.

Deixemos de lado por um momento o facto de a FCT ser responsável por atrasos crónicos no lançamento e publicação dos resultados dos seus concursos. Deixemos de lado o facto de apenas ter tornado públicos os resultados deste concurso já a meio de Janeiro (para bolsas que deveriam ter tido início a 1 de Janeiro), quando os bolseiros deveriam ter sido informados meses antes, pois têm o direito de planear as suas vidas.

A questão que Miguel Seabra não percebe - e deveria perceber, pois além de alto dirigente de um organismo da Administração Pública é também cientista, o que deveria pressupor alguma compreensão da necessidade de rigor - é que os procedimentos devem ser cumpridos não por picuinhice nem por superstição, nem sequer por legalismo, mas sim porque só o respeito dos procedimentos garante a qualidade do processo em termos científicos e em termos democráticos. E isso é assim porque esses procedimentos foram definidos após longas discussões e consensulizados com a participação de investigadores, juristas, gestores de investigação. A avaliação não é um mero ritual, nem importa apenas que no final a escolha recaia sobre candidatos com qualidade. Importa a qualidade de todo o processo de avaliação, que deve obedecer a regras de equidade, de transparência, de exigência, de isenção, de respeito por todos os intervenientes e pelas regras.

É verdade que o actual Governo pensa que o Estado de Direito é uma mera formalidade incómoda, um obstáculo a contornar de todas as formas possíveis, mas não podemos esperar de um organismo como a FCT a mesma posição, por grande que seja a concordância dos seus dirigentes com a ideologia do Governo e por muito úteis que queiram ser na sua propagação.

As regras democráticas são para cumprir e a qualidade da avaliação afere-se pela qualidade do processo de avaliação. Não tem qualquer cabimento que o presidente da FCT diga que o processo devido foi desrespeitado mas que a avaliação foi bem feita, porque a avaliação É processo. E quando o processo não tem qualidade, o seu resultado não o pode ter.

É como a democracia: uma lei não é democrática quando parece bem feita. Uma lei é democrática quando resulta de um processo democrático. Ou (para fugir ao domínio das ciências sociais e humanas, que não estão nas boas graças da FCT, e para entrar num campo onde Miguel Seabra estará mais à vontade) como a prescrição de uma droga a uma pessoa. Esse acto só será um acto médico se o processo que conduz a essa prescrição obedecer a uma miríade de regras, condições e procedimentos prévios.

2. Da mesma forma, o actual problema com os cortes nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento não se deve exclusivamente ao facto de eles terem existido. Pode ser admissível reduzir o número de bolsas. Como pode ser admissível alterar os critérios de avaliação das bolsas, dos projectos de investigação ou do que for. Ou os procedimentos da avaliação. Como pode até ser admissível reduzir o investimento em ciência e tecnologia.

O que não é admissível é fazer tudo isto e não o anunciar previamente e claramente, não enunciar claramente a estratégia a que a decisão obedece (o “novo paradigma”), os critérios, os procedimentos e não os submeter ao escrutínio público para discussão dos directamente interessados e de toda a sociedade. O que não é admissível é fazer tudo isto e negar que se fez. Não só os candidatos a bolseiros têm o direito de saber com que linhas se cosem e de organizar a sua vida, como os cidadãos têm o direito de saber e de decidir o que se faz com o seu dinheiro. O que não é admissível é fazer tudo isto e esperar que as pessoas não dêem por nada, ou que se queixem um pouco e depois se calem. Ou que percebam as trafulhices mas tenham medo de as denunciar por receio de represálias da FCT. Ou que aceitem sem mais a política do facto consumado. É desonesto. Não se faz política científica à traição, a ver se se apanham os investigadores e os cidadãos distraídos.

A FCT sempre foi objecto de críticas por parte da comunidade científica, quase sempre justas. Mas algumas coisas nunca tinham sido postas em causa até hoje: a dedicação e a competência do seu (escasso) staff e a honestidade dos seus dirigentes. Hoje, os concursos deixam suspeitas de favorecimento, de atropelo às regras (veja-se o caso do concurso Investigador FCT, com 1700 candidatos a denunciar irregularidades processuais) e são de uma opacidade a toda a prova. É a reforma do Estado que a direita quer. Estamos servidos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 21, 2014

Pôr o sistema científico ao serviço da política da direita

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Janeiro de 2014
Crónica 3/2014

FCT decidiu dar uma mãozinha à política de emigração qualificada lançada por Passos Coelho

Foram conhecidos há dias os resultados dos concursos de bolsas individuais para doutoramento e pós-doutoramentos atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), organismo responsável pela coordenação e financiamento da investigação em Portugal. De 3416 candidatos a doutoramento, só 298 conquistaram a bolsa. E, de 2305 candidatos a pós-doutoramentos, só 233 irão receber bolsa. Há outros canais de financiamento na FCT mas, mesmo considerando esses, o corte havido de 2012 para 2013 é de 40 por cento nas bolsas de doutoramento e de 65 por cento nas bolsas de pós-doutoramento.

A primeira constatação é o reduzido número de bolsas individuais atribuídas, em valor absoluto. Em termos numéricos, recuámos em 2014 para o ano de 1994, depois de muitos anos a investir na formação de recursos humanos altamente qualificados.

A segunda coisa que salta aos olhos é aquele fosso escancarado entre o número de candidatos e o de bolsas atribuídas. O que farão aqueles cinco mil candidatos sem bolsa? Irão dar aulas nas Universidades? Não, porque as Universidades não podem contratar. Irão dar aulas nos liceus? Não, porque o Governo está a despedir professores. Irão trabalhar para o Estado? Não, porque o Governo está a despedir quadros técnicos superiores. E o que irão fazer os dois mil doutorados sem bolsa? Investigação nas empresas? Pouco provável, no actual contexto de desinvestimento. O mais provável é que a maior parte deles faça o que Passos Coelho quer que os jovens altamente qualificados façam: que emigrem. Este país não é para eles. O modelo de empobrecimento e de mão-de-obra barata que o PSD e o CDS estão a aplicar a Portugal não tem lugar para eles. Os investigadores são um empecilho para este modelo económico e a FCT decidiu dar uma ajudinha.

Miguel Seabra, presidente da FCT, disse, numa entrevista a este jornal, que “o que há é uma crescente competitividade”, a que os bolseiros não estavam habituados até aqui. A sugestão é que desta vez o crivo só estaria a deixar passar os realmente bons enquanto que antes seria uma rebaldaria. É falso, como se prova pela quantidade de candidatos recusados que encontram lugar nas melhores universidades do mundo. É falso, como se vê pela qualidade dos doutorados dos últimos anos, com uma produção de excelência e com projectos financiados pelas mais exigentes organizações. Mas nada disso importa quando se trata de uma guerra de propaganda ideológica. O que é verdade é que o país continua muito longe dos níveis de investimento e recursos humanos em investigação dos países mais desenvolvidos, apesar do grande progresso feito, e a travagem agora feita nos vai atrasar durante anos.

As declarações de Miguel Seabra sobre o facto são, aliás, uma barragem de desinformação: garante que “não há um desinvestimento na ciência” mesmo quando é confrontado com o facto de o investimento em investigação em percentagem do PIB descer num contexto de encolhimento do próprio PIB; perante as dotações minguantes do Orçamento de Estado para a investigação diz que a FCT tem vindo a “injectar mais dinheiro no sistema” de ano para ano; diz que o financiamento às unidades de investigação “subiu 30 e tal por cento em 2013” mas não consegue explicar para onde foi o dinheiro quando as mesmas unidades se queixam de estar a receber menos; explica que “há um trabalho enorme a fazer com as empresas” mas recusa-se a discutir a investigação nas empresas porque não conhece “com grande detalhe esses números globais”; desvaloriza o número de cientistas que saíram do país dizendo que “emigração científica há desde há 25 anos” mas diz que os números que tem, que não sabe se são fiáveis, apontam para “surpreendentemente poucos” investigadores a deixar o país. Não é uma entrevista, é um festival de chicuelinas, de esquivas e nuvens de fumo. E Miguel Seabra tem a audácia de embrulhar estas trapalhadas num discurso onde não hesita em falar de “excelência”.

Sabemos que a FCT é objecto de críticas recorrentes devido aos seus atrasos sistemáticos, à existência de regras pouco claras, ao facto de não cumprir as regras que ela própria define e de manter assim a investigação nacional num clima de permanente instabilidade. Quanto à “excelência” dos critérios usados pela FCT basta referir as críticas que mereceu a recente nomeação dos membros do Conselho Científico das Ciências Sociais e das Humanidades - onde uma mão misteriosa incluiu mesmo a mulher do ministro Nuno Crato, cujo currículo e filiação institucional são considerados pelo menos desajustados - para ficarmos com uma ideia de onde acaba a exigência académica e onde começa o servilismo político.

Mas é preciso lembrar a FCT e o seu presidente que a FCT é um organismo da Administração Pública, que gere dinheiros públicos e que deve dar conta da sua gestão de forma cabal, tempestiva e total. A falta de dinheiro pode justificar cortes, mas não justifica a opacidade dos critérios dos cortes, nem a falta de resposta a perguntas sobre os cortes e os gastos. E muito menos a inexistência de uma estratégia que tenha em conta o interesse nacional. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 14, 2014

O sonho evanescente de um jornalismo independente

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Janeiro de 2014
Crónica 2/2014


Quem quiser saber quais são os impactos desta ou daquela política tem hoje de se dedicar a um trabalho insano

Uma piada que corre há uns anos nos EUA diz que os americanos vêem programas de humor como o “Daily Show” do humorista Jon Stewart para ficarem informados e programas de informação como os da Fox News para se rirem. É verdade que os programas de Jon Stewart são particularmente informativos e fazem uma atenta leitura crítica da realidade poilítica americana e que os programas da reaccionária Fox News são particularmente manipuladores e desonestos, mas o aforismo é verdade em geral e não apenas para os EUA. Humoristas como os americanos Jon Stewart e George Carlin, como os britânicos Monty Python ou Ricky Gervais, como o francês Coluche ou como os portugueses Mário Viegas, Bruno Nogueira ou Ricardo Araújo Pereira tiveram ou têm um papel mais importante na visão crítica da sociedade e na denúncia de injustiças ou de absurdos do que a esmagadora maioria dos media de informação e dos jornalistas profissionais.

Mas não se trata só dos humoristas. Uma das grandes alterações do panorama mediático dos últimos anos, em Portugal e não só, foi a relevância conquistada pelos artigos de opinião. Hoje em dia, uma percentagem elevada de leitores de jornais e sites começa a sua leitura diária pela secção de Opinião e dedica a estes textos um tempo muito superior ao que dedica aos textos noticiosos. O êxito dos blogs na primeira década do século ou das redes sociais nesta década é aliás um reflexo desta valorização da opinião, ainda que produzida por autores muitas vezes comprometidos ou mesmo fortemente sectários. Porque é que essa parcialidade dos pontos de vista não reduz de forma dramática a audiência e a credibilidade dos opinadores? Porque a parcialidade é compensada pela enorme riqueza e variedade de pontos de vista disponível na Internet e pelo controlo que o sistema de comentários consegue fazer, corrigindo erros e compensando exageros.

Nada disto seria um problema se não se desse o facto de que estes cidadãos procuram cada vez mais as crónicas humorísticas e os artigos de Opinião não só para saber o que os seus autores pensam mas principalmente para “saber o que aconteceu”, ou “o que aconteceu de importante” ou “o que quer dizer aquilo que aconteceu” - num cenário onde essa informação já não pode, ou quase não pode, ser extraída da actividade jornalística e das notícias em particular.

De facto, assistimos nos últimos trinta anos (desde o consulado de Margaret Thatcher, também conhecida pelo petit nom “TINA”, de “There Is No Alternative”) a uma investida da agenda neoliberal que se tem traduzido não só na imposição de visões ideológicas da extrema-direita económica pela propaganda partidária mas também numa captura da actividade jornalística, de forma a censurar de facto qualquer veleidade de discurso independente. Este cerco e subsequente conquista do jornalismo (com raras excepções pontuais) foi possível devido ao uso combinado de diferentes armas e ao concurso de algumas circunstâncias fortuitas, mas hoje está quase completamente concluído. Quem quiser saber o que se passa de facto na política portuguesa ou europeia, quais serão os impactos desta ou daquela política, tem hoje de dedicar um tempo insano à leitura de blogs de especialistas e comentadores independentes, de textos de organizações partidárias e profissionais, de estudos académicos. O jornalismo costumava fazer-nos poupar tempo mas deixou de o fazer. O que o grosso do jornalismo hoje nos oferece (e a televisão tem aqui o principal papel) não é mais do que a repetição de um discurso hegemónico, de carácter propagandístico, de direita (defensor da desigualdade), que nos repete que não há alternativa (TINA) ao crescimento da pobreza, à desigualdade, ao enriquecimento dos mais ricos, à destruição do estado social, à degradação do trabalho, à exclusão dos pobres.

Isto não significa que a função de fact checking do discurso do poder não seja feita (esporadicamente) por alguns jornalistas e órgãos de imprensa, mas significa que essa função é silenciada por uma enxurrada de propaganda, que os media repetem, com a desculpa de que estão “a citar o primeiro-ministro” ou outra semelhante e com o argumento (verdadeiro) de que não possuem meios para verificar tudo o que o homem diz.

Veja-se o que se passa com a invenção do “aumento do emprego” do discurso de Passos Coelho, ou com a aldrabice da “retoma económica” que o Governo tem vindo a repetir, ou com a ficção do “programa cautelar” delicodoce que Cavaco Silva elogia ou com a abjecção da “insustentabilidade das pensões” que PSD e CDS apregoam. Não há pessoas a denunciar estas e outras aldrabices? Há, e há-as da esquerda radical à direita democrata-cristã (a sério) e as vozes que o dizem são reconhecidamente competentes e respeitadas. Mas são vozes singulares num mar de discurso propagandístico avassalador que repete a voz do dono e onde as televisões ocupam a parte de leão. Este é o cancro que se encontra no centro do problema político das sociedades actuais. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 07, 2014

A falsa justiça fiscal e a falta de transparência

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Janeiro de 2014
Crónica 1/2014

A lista dos benefícios fiscais concedidos em 2012 aos sujeitos passivos de IRC ainda não foi publicada.

1. O Presidente francês François Hollande conseguiu há dias ver finalmente aprovada, depois do chumbo pelo Conselho Constitucional de uma primeira versão da lei, uma das medidas emblemáticas da sua campanha eleitoral: um imposto de 75% a ser pago pelos ricos. Bom, não exactamente de “75%”, mas sim de 75% sobre a parte do salário que exceda um milhão de euros por ano, o que é um pouco diferente. Bom, e o imposto não é exactamente de 75%, mas sim de cerca de 50%, só que a “carga fiscal” chega a 75% se se somarem também as contribuições para a Segurança Social. Bom, e o imposto não é exactamente um imposto que vise uma mais justa distribuição da carga fiscal mas uma medida provisória que deverá vigorar durante dois anos e que, por isso, se chama “contribuição excepcional de solidariedade”. Bom, e o imposto também não é exactamente sobre os mais ricos porque ele incide apenas sobre rendimentos do trabalho e não sobre rendimentos do capital e os verdadeiramente ricos, como sabemos, não vivem do seu salário. Ah, e as empresas podem assumir à sua conta o pagamento do novo imposto se preferirem não o fazer incidir sobre os salários dos trabalhadores – o que deve acontecer em muitos casos já que, nestas empresas, as decisões cabem precisamente aos assalariados com os salários mais altos, o que significa que estes contribuintes terão o privilégio de alienar as suas perdas fiscais se o quiserem fazer e de as “socializarem” em parte fazendo-as pagar pelas suas empresas (accionistas, clientes, outros trabalhadores). Mas nada disto impediu Hollande e o Governo e os socialistas franceses de venderem o imposto como uma medida de justiça fiscal, a direita de a criticar como um confisco inaceitável e o mundo dos negócios de criticar o “socialismo” da medida por atentar contra a saúde financeira das empresas e contra a competitividade da França.

Há em tudo isto algum descaramento. Descaramento do Governo francês, antes de mais, por apresentar este imposto, que afectará uns escassos mil cidadãos, como uma medida central do seu programa de justiça fiscal e um resgate da riqueza injustamente acumulada pelos “mais ricos” enquanto os verdadeiramente “muito ricos” continuam a escapar-se por entre as malhas da rede. Também por cá Passos Coelho considera que os “ricos” são os pensionistas que ganham 600 euros e os assalariados que ganham 1500.

2. O sistema fiscal é o principal instrumento de que um país dispõe para combater as desigualdades sociais e favorecer a distribuição de riqueza – além de ser a forma como o Estado obtém recursos para financiar a sua acção. Que o sistema não está a ser usado com uma preocupação de combate às desigualdades (em Portugal, em França, como em muitos outros países), vê-se pelo crescimento paralelo da pobreza e das grandes fortunas, particularmente chocante em Portugal desde que o actual Governo se lançou no seu combate pelo empobrecimento dos trabalhadores.

Mas o que é especialmente difícil de aceitar é como, perante uma situação de gritante injustiça do ponto de vista fiscal, onde as grandes empresas portuguesas fogem descaradamente aos impostos registando de forma desonesta as suas sedes na Holanda para beneficiar de taxas mais baixas e onde alguém que viva do seu trabalho não possui benesses equivalentes, onde o IRC é sempre aliviado e o IRS sempre agravado, não existe um consenso à esquerda relativamente a certas medidas de elementar justiça fiscal.

Esse consenso, a que o PS sempre foge, tem de passar, antes de mais, por um combate sem tréguas à fuga ao fisco – o que significa o fim dos paraísos fiscais na UE, um combate ao falso registo de empresas em paraísos fiscais e um apertado controlo às transferências para esses paraísos fiscais. Por outro lado, tem de passar necessariamente por uma justa taxação dos rendimentos de capital e um correspondente alívio dos rendimentos do trabalho. A direita (e o PS) argumenta com a “competitividade fiscal” para não adoptar este tipo de medidas. Se se taxar o capital, este foge, dizem. O argumento lembra o dos esclavagistas americanos antes da Guerra de Secessão: “Se tivermos de pagar aos escravos, a economia soçobrará”, diziam. Era falso. Mas, mesmo que fosse verdade, não seria admissível, então como agora, manter um sistema iníquo e desumano, que alimenta a corrupção e destrói o tecido social, em nome da eficiência económica.

3. O Ministério das Finanças voltou em 2013 a não publicar a lista dos sujeitos passivos de IRC que usufruíram de benefícios fiscais em 2012. Está obrigado por lei a publicá-la no Portal das Finanças até 30 de Setembro, todos os cidadãos têm o direito de conhecer essa lista, mas o Governo acha que a lei não se lhe aplica. Já o tinha feito em 2012 e só uma petição pública obrigou o Governo a publicá-la.

Esta falta de transparência é uma medida da desonestidade do Governo e uma falha grave da ministra das Finanças, pois esconde os privilégios que concedem a alguns enquanto exigem sem complacência a outros.

(jvmalheiros@gmail.com)