por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Janeiro de 2014
Crónica 1/2014
A lista dos benefícios fiscais concedidos em 2012 aos sujeitos passivos de IRC ainda não foi publicada.
1. O Presidente francês François Hollande conseguiu há dias ver finalmente aprovada, depois do chumbo pelo Conselho Constitucional de uma primeira versão da lei, uma das medidas emblemáticas da sua campanha eleitoral: um imposto de 75% a ser pago pelos ricos. Bom, não exactamente de “75%”, mas sim de 75% sobre a parte do salário que exceda um milhão de euros por ano, o que é um pouco diferente. Bom, e o imposto não é exactamente de 75%, mas sim de cerca de 50%, só que a “carga fiscal” chega a 75% se se somarem também as contribuições para a Segurança Social. Bom, e o imposto não é exactamente um imposto que vise uma mais justa distribuição da carga fiscal mas uma medida provisória que deverá vigorar durante dois anos e que, por isso, se chama “contribuição excepcional de solidariedade”. Bom, e o imposto também não é exactamente sobre os mais ricos porque ele incide apenas sobre rendimentos do trabalho e não sobre rendimentos do capital e os verdadeiramente ricos, como sabemos, não vivem do seu salário. Ah, e as empresas podem assumir à sua conta o pagamento do novo imposto se preferirem não o fazer incidir sobre os salários dos trabalhadores – o que deve acontecer em muitos casos já que, nestas empresas, as decisões cabem precisamente aos assalariados com os salários mais altos, o que significa que estes contribuintes terão o privilégio de alienar as suas perdas fiscais se o quiserem fazer e de as “socializarem” em parte fazendo-as pagar pelas suas empresas (accionistas, clientes, outros trabalhadores). Mas nada disto impediu Hollande e o Governo e os socialistas franceses de venderem o imposto como uma medida de justiça fiscal, a direita de a criticar como um confisco inaceitável e o mundo dos negócios de criticar o “socialismo” da medida por atentar contra a saúde financeira das empresas e contra a competitividade da França.
Há em tudo isto algum descaramento. Descaramento do Governo francês, antes de mais, por apresentar este imposto, que afectará uns escassos mil cidadãos, como uma medida central do seu programa de justiça fiscal e um resgate da riqueza injustamente acumulada pelos “mais ricos” enquanto os verdadeiramente “muito ricos” continuam a escapar-se por entre as malhas da rede. Também por cá Passos Coelho considera que os “ricos” são os pensionistas que ganham 600 euros e os assalariados que ganham 1500.
2. O sistema fiscal é o principal instrumento de que um país dispõe para combater as desigualdades sociais e favorecer a distribuição de riqueza – além de ser a forma como o Estado obtém recursos para financiar a sua acção. Que o sistema não está a ser usado com uma preocupação de combate às desigualdades (em Portugal, em França, como em muitos outros países), vê-se pelo crescimento paralelo da pobreza e das grandes fortunas, particularmente chocante em Portugal desde que o actual Governo se lançou no seu combate pelo empobrecimento dos trabalhadores.
Mas o que é especialmente difícil de aceitar é como, perante uma situação de gritante injustiça do ponto de vista fiscal, onde as grandes empresas portuguesas fogem descaradamente aos impostos registando de forma desonesta as suas sedes na Holanda para beneficiar de taxas mais baixas e onde alguém que viva do seu trabalho não possui benesses equivalentes, onde o IRC é sempre aliviado e o IRS sempre agravado, não existe um consenso à esquerda relativamente a certas medidas de elementar justiça fiscal.
Esse consenso, a que o PS sempre foge, tem de passar, antes de mais, por um combate sem tréguas à fuga ao fisco – o que significa o fim dos paraísos fiscais na UE, um combate ao falso registo de empresas em paraísos fiscais e um apertado controlo às transferências para esses paraísos fiscais. Por outro lado, tem de passar necessariamente por uma justa taxação dos rendimentos de capital e um correspondente alívio dos rendimentos do trabalho. A direita (e o PS) argumenta com a “competitividade fiscal” para não adoptar este tipo de medidas. Se se taxar o capital, este foge, dizem. O argumento lembra o dos esclavagistas americanos antes da Guerra de Secessão: “Se tivermos de pagar aos escravos, a economia soçobrará”, diziam. Era falso. Mas, mesmo que fosse verdade, não seria admissível, então como agora, manter um sistema iníquo e desumano, que alimenta a corrupção e destrói o tecido social, em nome da eficiência económica.
3. O Ministério das Finanças voltou em 2013 a não publicar a lista dos sujeitos passivos de IRC que usufruíram de benefícios fiscais em 2012. Está obrigado por lei a publicá-la no Portal das Finanças até 30 de Setembro, todos os cidadãos têm o direito de conhecer essa lista, mas o Governo acha que a lei não se lhe aplica. Já o tinha feito em 2012 e só uma petição pública obrigou o Governo a publicá-la.
Esta falta de transparência é uma medida da desonestidade do Governo e uma falha grave da ministra das Finanças, pois esconde os privilégios que concedem a alguns enquanto exigem sem complacência a outros.
(jvmalheiros@gmail.com)
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