por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Janeiro de 2014
Crónica 3/2014
FCT decidiu dar uma mãozinha à política de emigração qualificada lançada por Passos Coelho
Foram conhecidos há dias os resultados dos concursos de bolsas individuais para doutoramento e pós-doutoramentos atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), organismo responsável pela coordenação e financiamento da investigação em Portugal. De 3416 candidatos a doutoramento, só 298 conquistaram a bolsa. E, de 2305 candidatos a pós-doutoramentos, só 233 irão receber bolsa. Há outros canais de financiamento na FCT mas, mesmo considerando esses, o corte havido de 2012 para 2013 é de 40 por cento nas bolsas de doutoramento e de 65 por cento nas bolsas de pós-doutoramento.
A primeira constatação é o reduzido número de bolsas individuais atribuídas, em valor absoluto. Em termos numéricos, recuámos em 2014 para o ano de 1994, depois de muitos anos a investir na formação de recursos humanos altamente qualificados.
A segunda coisa que salta aos olhos é aquele fosso escancarado entre o número de candidatos e o de bolsas atribuídas. O que farão aqueles cinco mil candidatos sem bolsa? Irão dar aulas nas Universidades? Não, porque as Universidades não podem contratar. Irão dar aulas nos liceus? Não, porque o Governo está a despedir professores. Irão trabalhar para o Estado? Não, porque o Governo está a despedir quadros técnicos superiores. E o que irão fazer os dois mil doutorados sem bolsa? Investigação nas empresas? Pouco provável, no actual contexto de desinvestimento. O mais provável é que a maior parte deles faça o que Passos Coelho quer que os jovens altamente qualificados façam: que emigrem. Este país não é para eles. O modelo de empobrecimento e de mão-de-obra barata que o PSD e o CDS estão a aplicar a Portugal não tem lugar para eles. Os investigadores são um empecilho para este modelo económico e a FCT decidiu dar uma ajudinha.
Miguel Seabra, presidente da FCT, disse, numa entrevista a este jornal, que “o que há é uma crescente competitividade”, a que os bolseiros não estavam habituados até aqui. A sugestão é que desta vez o crivo só estaria a deixar passar os realmente bons enquanto que antes seria uma rebaldaria. É falso, como se prova pela quantidade de candidatos recusados que encontram lugar nas melhores universidades do mundo. É falso, como se vê pela qualidade dos doutorados dos últimos anos, com uma produção de excelência e com projectos financiados pelas mais exigentes organizações. Mas nada disso importa quando se trata de uma guerra de propaganda ideológica. O que é verdade é que o país continua muito longe dos níveis de investimento e recursos humanos em investigação dos países mais desenvolvidos, apesar do grande progresso feito, e a travagem agora feita nos vai atrasar durante anos.
As declarações de Miguel Seabra sobre o facto são, aliás, uma barragem de desinformação: garante que “não há um desinvestimento na ciência” mesmo quando é confrontado com o facto de o investimento em investigação em percentagem do PIB descer num contexto de encolhimento do próprio PIB; perante as dotações minguantes do Orçamento de Estado para a investigação diz que a FCT tem vindo a “injectar mais dinheiro no sistema” de ano para ano; diz que o financiamento às unidades de investigação “subiu 30 e tal por cento em 2013” mas não consegue explicar para onde foi o dinheiro quando as mesmas unidades se queixam de estar a receber menos; explica que “há um trabalho enorme a fazer com as empresas” mas recusa-se a discutir a investigação nas empresas porque não conhece “com grande detalhe esses números globais”; desvaloriza o número de cientistas que saíram do país dizendo que “emigração científica há desde há 25 anos” mas diz que os números que tem, que não sabe se são fiáveis, apontam para “surpreendentemente poucos” investigadores a deixar o país. Não é uma entrevista, é um festival de chicuelinas, de esquivas e nuvens de fumo. E Miguel Seabra tem a audácia de embrulhar estas trapalhadas num discurso onde não hesita em falar de “excelência”.
Sabemos que a FCT é objecto de críticas recorrentes devido aos seus atrasos sistemáticos, à existência de regras pouco claras, ao facto de não cumprir as regras que ela própria define e de manter assim a investigação nacional num clima de permanente instabilidade. Quanto à “excelência” dos critérios usados pela FCT basta referir as críticas que mereceu a recente nomeação dos membros do Conselho Científico das Ciências Sociais e das Humanidades - onde uma mão misteriosa incluiu mesmo a mulher do ministro Nuno Crato, cujo currículo e filiação institucional são considerados pelo menos desajustados - para ficarmos com uma ideia de onde acaba a exigência académica e onde começa o servilismo político.
Mas é preciso lembrar a FCT e o seu presidente que a FCT é um organismo da Administração Pública, que gere dinheiros públicos e que deve dar conta da sua gestão de forma cabal, tempestiva e total. A falta de dinheiro pode justificar cortes, mas não justifica a opacidade dos critérios dos cortes, nem a falta de resposta a perguntas sobre os cortes e os gastos. E muito menos a inexistência de uma estratégia que tenha em conta o interesse nacional. (jvmalheiros@gmail.com)
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