terça-feira, março 26, 2013

Está tudo maravilhoso e amanhã tudo vai ser ainda melhor

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Março de 2013
Crónica 11/2013

O que pode fazer o Deutsche Bank se mafiosos russos quiserem lá pôr o dinheiro?
Afinal está tudo jóia, tudo maravilhoso, tudo na maior, bué de bem, porreiro pá! Continua tudo a correr bem e a União Europeia continua no bom caminho. Chipre não se afundou e as bolsas acordaram animadas na manhã de segunda-feira, abriram a janela de par em par, olharam para o céu azul da Prússia e para o mar verde-limão-amargo e rejubilaram. O PSI 20 valorizou, o Euro Stoxx 50 cresceu, o Ibex subiu, o CAC disparou, o DAX ganhou, o FTSE inchou.

O euro abriu em alta em relação ao dólar e o barril de Brent em alta em relação à jeropiga. As finanças de todo o mundo (do que importa) estão rejubilantes com a taxa cipriota de 30 por cento sobre os depósitos acima de 100.000 euros que foi buscar o dinheiro onde ele estava. Afinal está tudo bem. Que importa que o desemprego suba em Chipre e em Portugal? Que importa que não haja fim à vista para a austeridade em Portugal e em Chipre? Que importa que não haja investimento à vista em Chipre e em Portugal? Que importa que a economia continue a ser destruída se a finança está a ser salva? Que importa que os analistas digam que the worst is yet to come? Que importa isto se a banca já descobriu a forma de se financiar que é sacar a massa aos depositantes que a foram lá pôr? Que importa que isto se chamasse ontem abuso de confiança e desfalque se hoje se chama garantir a estabilidade financeira da zona euro? Se fosse um Governo de esquerda a fazer isto cairia o Carmo e a Trindade e os patriotas de lapela iriam pedir à múmia de Reagan para vir cá fazer um golpe de Estado e repor a legalidade, mas como foi tudo em nome da Finança, está tudo bem.

Que importa que nada disto garanta estabilidade nenhuma se o Governo e a União Europeia dizem que sim? Quem se pode admirar se os depositantes das pequenas economias periféricas passarem a preferir os bancos de grandes países para os seus pés-de-meia? O que poderá fazer o Deutsche Bank se houver mafiosos russos que queiram lá pôr o dinheiro?

Que importa tudo isto se Lagarde tem um guarda-roupa impecável e um sorriso de 50.000 euros, se Abebe Selassié continua com um swing nonchalant apesar de estar desapontado com os preços da luz em Portugal? Que importa tudo isto se os credores vão poder continuar a ser pagos (pelo menos por enquanto)? Que importa que os drones da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do FMI, sentadinhos às suas secretárias, continuem a bombardear empregos e empresas, a expulsar estudantes das universidades e velhos das consultas se eles são vítimas colaterais da guerra para salvar os bancos? Que importa tudo isto se os eleitores alemães podem continuar convencidos de que há um cordão sanitário a separá-los dos meridionais feios, porcos e maus? Que importa que a miséria aumente se isso só acontece no Sul? Que importa que o desemprego seja infeliz e os seus números inesperados, que o FMI não saiba fazer contas ou as martele para as conformar com a sua agenda política? Que importa que toda a gente que não está no payroll dos bancos tenha alertado para as consequências da austeridade?

Que importa que a mobilidade afinal seja para todos se as rescisões são amigáveis? Haverá algo melhor que uma coisa amigável? Haverá algo melhor que a oportunidade de refazer toda a sua vida, de começar de novo sabendo o que sabe hoje? Haverá algo melhor que as oportunidades que o desemprego oferece? Haverá algo mais revigorante que uma falência tipo destruição criativa? Que importa que os portugueses ganhem misérias se isso até pode ser bom para a economia como ensina Belmiro de Azevedo e como explica impacientemente António Borges?

Não sabemos todos desde Torquemada que o fogo purificador purifica e santifica e que do fogo das falências nascem empresas de alta tecnologia exportadoras quais Fénixes de asas de ouro? Não sabemos que as crianças que vão para a escola com fome não são mais do que o húmus de onde nascerá a Nova Economia? Não nos ensina o FMI que um subsídio de desemprego pago a um operário ou um copo de leite dado a uma criança que não passou no exame nacional é um dia que se atrasa a Revolução Neoliberal?

E não têm todas estas medidas o beneplácito dos povos? Não acha a maioria dos contribuintes que quem tem dívidas deve pagá-las depressa que se faz tarde e que as boas contas fazem os bons amigos? Não acha a maioria dos portugueses que viveu acima das suas possibilidades e que a melhor maneira de ser feliz é pagar juros à troika? Não acha a maior parte dos votantes que o Estado gasta demais e que devia gastar menos e que se deve cortar na despesa e nas funções sociais do Estado em vez de subir os impostos? Não está a maioria dos votantes de acordo com o memorando da troika? Não vai a maioria dos eleitores nas próximas eleições votar no Pedro Passos Seguro em vez de no António José Coelho ou vice-versa? Não sobe o PP de Paulo Portas nas intenções de voto só porque ele diz que se lhe perguntarem se discordou discordou e se lhe perguntarem se fez fez e se disse disse? Quantos anos vão passar antes de percebermos que aquilo que estamos a viver é uma morte lenta e sem dignidade? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 19, 2013

Euro: perda de soberania em troca de menos democracia e de mais pobreza

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Março de 2013
Crónica 10/2013

Vítor Gaspar não é incompetente. Acontece simplesmente que Vítor Gaspar não está a trabalhar para nós.

Espantam-me as críticas dirigidas a Vítor Gaspar por este ter falhado reiteradamente todas as suas previsões. E espantam-me porque penso que todos estes críticos não ficariam mais satisfeitos se Vítor Gaspar não se tivesse enganado e se tudo se tivesse passado como ele disse.

Naturalmente que seria melhor se o pico do desemprego se tivesse ficado pelos 12,4% previstos em 2011 para 2012 (“o pico”, note-se) em vez dos 19% previstos agora para o final de 2013. Naturalmente que seria melhor se o PIB se contraísse apenas 0,3 % entre 2011 e 2014 em vez dos 6,4% que o Governo anuncia agora. Mas, mesmo que tudo se tivesse passado exactamente como nas palavras de Vítor Gaspar, estaríamos de qualquer forma a viver uma situação de descalabro económico e em plena destruição do Estado social. O problema não é o facto de as previsões de Gaspar não se terem concretizado exactamente como ele disse. O problema é o facto de os objectivos de Gaspar serem absolutamente contrários aos interesses dos portugueses e da simples decência.

A questão é que Vítor Gaspar não está minimamente preocupado com as condições de vida dos portugueses, com o seu emprego ou com o seu nível de vida nem com o seu acesso aos serviços de saúde e educação ou com a sua segurança na velhice e na doença. Vítor Gaspar está antes de mais preocupado em garantir que os portugueses pagarão tudo o que devem aos seus credores estrangeiros, às taxas agiotas que nos forem cobradas, por muito que isso signifique em sofrimento pessoal, em destruição de empregos e falências de empresas, em destruição da economia, em esbulho do Estado, por muito que isso signifique de alienação de património de todos, ainda que isso signifique um recuo de gerações. Além disso, Gaspar também quer que os salários dos portugueses baixem drasticamente para aumentar as margens das empresas e para reduzir a capacidade reivindicativa dos trabalhadores (infelizmente para Gaspar e felizmente para nós, os neoliberais portugueses não contam com a ajuda de uma ditadurazinha militar como na América do Sul, para partir a espinha à contestação).

É por isso que Gaspar considera que estamos “no bom caminho” e se alegra por termos reforçado a nossa “credibilidade externa” e imagina que as manifestações de protesto são manifestações de apoio. A única preocupação de Gaspar é garantir que os portugueses se mantêm suficientemente activos para poder pagar aos credores e suficientemente passivos para permitir que o Governo os roube sem tugir nem mugir. Como isso tem acontecido, o seu principal objectivo tem sido alcançado. Tudo o resto - o desalento, o sofrimento, a doença, a miséria, os suicídios, a emigração forçada - é secundário. Gaspar é o capitalismo financeiro sem pátria em toda a sua brutal franqueza: a dívida é a mercadoria por excelência e o ministro e o governo fazem o que podem para que os seus patrões continuem a vender a sua mercadoria ao preço mais alto possível, tendo apenas o cuidado suficiente para que os clientes não morram ou declarem bancarrota, caso em que os vendedores deixariam de poder vender.

Gaspar está um pouquinho desapontado com o desemprego mas no cômputo geral está satisfeito com o que conseguiu e os seus patrões vão certamente fazer-lhe uma atençãozinha no bónus de fim de ano. Gaspar não é incompetente. Acontece simplesmente que Gaspar não está a trabalhar para nós. O desemprego, como se viu e se vê, não é uma preocupação da troika.

Do que ninguém com dois dedos de testa e um dedal de decência pode ter dúvidas hoje (para não dizer há um ano) é que este não é o caminho a seguir.

O espartilho do euro surge cada vez mais como uma camisa de forças viciada, onde não é possível qualquer solução para um país com as fragilidades estruturais de Portugal e com governantes como Vítor Gaspar.

O imposto que a União Europeia acaba de impor sobre os depósitos em Chipre é apenas mais um exemplo da absoluta ausência de limites que existe na acção dos credores e na ausência de protecção dos devedores por parte das instâncias comunitárias.

Por outro lado, na prática, a legislação comunitária proíbe ou dificulta políticas de esquerda e intervenções do Estado na economia e impõe ou incentiva políticas de direita e liberalizações diversas, das privatizações de empresas públicas à obrigação de “recorrer ao mercado” para fornecer os mais diversos serviços públicos. Subrepticiamente, a União Europeia foi ilegalizando as políticas de esquerda.

As limitações à soberania no âmbito da UE seriam compreensíveis e defensáveis num quadro de forte solidariedade europeia, que garantisse que um país nunca atravessaria grandes dificuldades. Mas são inaceitáveis quando isto não está garantido e quando a contrapartida é, não um ganho, mas uma perda de democracia com empobrecimento. Neste caso, a alienação de soberania é apenas uma submissão aos poderes dos mais fortes e uma indignidade com a qual não se pode viver. A UE parece empenhada em nos mostrar isso. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 12, 2013

“É um bastardo, mas é o nosso bastardo!”

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Março de 2013
Crónica 9/2013

Um desempregado sem apoios sociais é um cidadão que vive sob ditadura

A coisa mais surpreeendente na abordagem da morte de Hugo Chávez é o sectarismo sem estados de alma de tantas notícias e comentários. É um facto que Chávez cometeu atropelos no domínio dos direitos cívicos e o seu estilo não me merece qualquer admiração, a começar pela concentração de poder na pessoa do presidente e terminando nas suas tentativas de controlo do poder judicial. Mas há algo que o regime de Chávez fez que não pode deixar de ser olhado com apreço: a sua determinação no combate à pobreza. Durante a presidência de Chávez, no espaço de quinze anos, houve mais de sete milhões de pessoas que foram resgatadas da pobreza e mais de três milhões que foram libertadas da pobreza extrema.

Há quem minimize o facto, reconhecido mesmo pelos seus inimigos, dizendo que tudo o que o regime fez foi atirar para cima dos pobres uma parte do dinheiro fácil ganho com a venda do petróleo. Isso em si já seria bom mas, na verdade, houve algo mais do que dinheiro: a rápida redução da pobreza foi acompanhada de um acesso alargado a serviços de saúde e educação, como os pobres (metade da população em 1998!) nunca tinham conhecido. Do que se tratou, foi de um gigantesco movimento de empoderamento de milhões de indivíduos, antes sem direitos e sem voz, que se descobriram de repente cidadãos. E isso é fundamental porque é disso que trata a democracia: de permitir que todos beneficiem dos frutos da prosperidade e participem na vida da cidade. Por isso, falar de Chávez sem falar da redistribuição da riqueza do país, da assunção de direitos por milhões que não tinham voz e da redução da pobreza na Venezuela é fazer um retrato profundamente distorcido da sua acção política.

Mas o que me espanta não é este discurso sobre Chávez e a Venezuela, que afinal a esmagadora maioria dos portugueses não conhece bem e de quem também eu apenas sei o que leio nos jornais. O que me espanta é que, entre as pessoas que se indignam com o chavismo pelos seus tiques antidemocráticos e pela forma como limita os direitos da oposição, não haja uma pessoa que se indigne com o governo de PPC pela forma como impede milhões de portugueses de exercer os seus direitos como cidadãos, lançando-os na miséria do desemprego e excluindo-os dos parcos apoios sociais.

O desemprego, a pobreza e a miséria extrema, nos seus diversos graus, não são exclusivamente uma questão de dinheiro. Um desempregado sem quaisquer apoios (e, segundo os números oficiais, certamente subestimados, há 530.000 nesta situação) não é apenas alguém que tem de recorrer à caridade para comer.
Será que estes 530.000 têm garantida a sua integridade moral e física, como afirma o artigo 25 da Constituição? Será que todos eles estão protegidos de tratos cruéis, degradantes ou desumanos? Será que a todos estes são reconhecidos os direitos ao desenvolvimento da personalidade, à cidadania, ao bom nome e reputação, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, como diz o artigo 26?

De que liberdade goza um desempregado? Terá a liberdade de se deslocar livremente no território nacional (artigo 44), de aprender e de ensinar (artigo 43), de se dedicar à criação intelectual, artística e científica (artigo 42) e de gozar as criações dos outros? À segurança social já sabemos que não tem direito, apesar do artigo 63 garantir essa protecção a “todos”. Terá direito à protecção da sua saúde (artigo 64)? Terá direito “a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” (artigo 66)? A resposta a estas perguntas é simples: não tem direito a nada. Um desempregado sem apoios é um cidadão roubado dos seus direitos. É um cidadão que vive em ditadura. Sob a ditadura da necessidade constante.

Mas nem é preciso perder todos os apoios: um desempregado fica, pela simples razão de não ter trabalho, reduzido nos seus direitos, na sua dignidade e na sua voz. E é para este estatuto que o Governo de Pedro Passos Coelho vai empurrando os portugueses, tão eficazmente como se os lançasse na cadeia, uns milhares de cada vez. Exilando-os da vida laboral, da vida cultural, da vida política, da vida do bairro, da vida familiar e, finalmente, da própria vida.

Porque é que há pessoas que ficam tão chocadas quando Chávez atropela direitos dos venezuelanos e tão indiferentes quando Pedro Passos Coelho rouba os direitos dos portugueses? Há uma explicação histórica: quando disseram a Franklin D. Roosevelt que o ditador Somoza da Nicarágua não seria um aliado recomendável para os EUA porque era um “bastard”, ele respondeu: “He may be a bastard, but he's our bastard.” A regra continua a ser essa: “our bastards” são sempre poupados aos ataques dos poderes, desde que desempenhem o seu papel de obedientes defensores dos privilégios de alguns e mesmo que para isso tenham de sacrificar os seus povos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 05, 2013

O povo soberano em directo e sem representação

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Março de 2013 Crónica 8/2013
A manifestação de 2 Março foi um gigantesco escarro na cara do Governo e um alerta aos partidos

1. Gravidade. Antes de mais a gravidade, a seriedade, a tristeza. Depois a raiva surda e o desespero que espreita nos cartazes e nos olhares. Houve na manifestação de 2 Março - pelo menos na de Lisboa, onde estive - momentos de alegria e grupos animados, com slogans certeiros e divertidos (“Quando tu falas, Gaspar, és o orgulho de Salazar!”), mas o grande mar de gente não está para festas. Há centenas de cartazes artesanais, muitos com notas de humor, mas o humor é amargo (“Tenho cara de algarismo?” pergunta uma mulher numa folha A4).


A maré que se espalha pela avenida é formada maioritariamente por gente cujo presente é feito de sacrifícios e que não consegue imaginar um futuro nem para si, nem para os seus filhos, nem para o país. Uma maré de gente farta e cansada, triste e zangada, mas determinada. Há muitos velhos, muitos reformados, muitos desempregados, muitos estudantes, muitos intelectuais. Há gente de todas as classes. Há slogans e alguma música, mas a esmagadora maioria da manifestação é uma manifestação silenciosa, que não adere a gritos nem palmas. Muitos vieram sozinhos e é difícil gritar sozinho. Não vieram no grupo do sindicato, nem da empresa, nem sequer com os amigos. Vieram porque acharam que não podiam deixar de vir. Vieram gritar que os seus direitos estão a ser espezinhados, mas que não deixarão que lhes roubem a dignidade. Vieram dizer que não querem este governo, que nunca aprovaram esta política, que não acreditam nestes políticos, que não respeitam este Governo, que se sabem ludibriados, roubados e injustiçados, receiam que seja destruída a democracia que ajudaram a construir e vieram dizer “Basta!” e “Rua!” com a sua simples presença, sem conseguirem abrir a boca. Querem outra coisa e sabem que é possível outra coisa.


2. Desprezo. Um dos sinais da fronteira que a indignação já ultrapassou é o uso de palavrões, que já ninguém acha excessivos. "Se quizesse trabalhar para chulos tinha ido para puta”, diz um cartaz que uma mulher traz ao pescoço. “Coelho, quando abrir a caça vais para o c.” diz outro. Um grupo grita uma variação de uma palavra de ordem famosa: “O povo, unido, está farto de ser fodido!” Há na transgressão um sentido claro: os ocupantes do Governo não merecem uma gota de respeito, são aldrabões que foram eleitos mentindo e que governam mentindo, são ladrões que roubam o povo dos seus direitos e dos seus bens e que ameaçam a democracia. Gatunos é o mais doce dos epítetos que merecem e o desprezo e a repulsa os sentimentos unânimes.


3. Apelos. Não há apelos. Ou só há apelos ao próprio povo (“Acordai!”). Estes cidadãos não se dirigem a um interlocutor. São o povo soberano a exprimir a sua vontade. Exigem a demissão do Governo mas ninguém pede a intervenção do Presidente da República. Pelo contrário, o PR é outro alvo dos ataques. Todos sentem que S. Bento é sede vacante.


Ninguém exorta o Governo a arrepiar caminho. Mas também não há cartazes a exortar a oposição a fazer seja o que for. Estes milhares exigem respeito pelos seus direitos mas não nomeiam nem reconhecem campeões. De quem esperam algo? Aqui e ali pede-se um novo 25 de Abril, mas quem o fará?


4. Partidos. Não se trata apenas do facto de os partidos estarem prudente e correctamente ausentes da manifestação. A questão é que é a sua ausência que explica a multidão. Nenhum partido, nenhuma coligação de partidos conseguiria reunir esta maré e, se houvesse partidos, eles desmobilizariam as pessoas. Estas pessoas empenharam-se num gesto político que sentem como vital e urgente, mas a maior parte delas sente que só o pode fazer à margem dos partidos. Não é apenas o Governo que deve reflectir sobre as suas responsabilidades. Nenhum partido está a salvo do risco de extinção.


5. Esquerda. Perante uma grande manifestação unitária contra o Governo e a austeridade, haverá uma plataforma mínima de entendimento que possa emergir entre os partidos que se reclamam da esquerda, em nome da emergência nacional? Não, porque o PS é pró-troika. Bom, e só entre o PCP e o BE? Também não, porque...


6. Consequências. E agora o que vai mudar? O que mudou? Mudou o estado de espírito dos cidadãos. As pessoas vieram assumir a sua cidadania, vieram dizer que foram atingidos os limites e que não aceitam ser escravos. Vieram mostrar que estão mobilizados e que lutarão pelos seus direitos. Vieram dizer que o Governo será legal mas não tem legitimidade democrática nem moral. Vieram dizer que não aceitam a democracia diminuída em que vivem, que não aceitam ser governados por colaboracionistas em nome de interesses alheios ao povo. Vieram também dizer que estão descontentes com os partidos e com as instituições democráticas. Vieram dizer que o combate à austeridade exige a união de todos e vieram dar exemplo dessa união. Vieram dizer que não se sentem representados e que por isso vieram em tão grande número. Vieram dizer que muita coisa tem de mudar, com este Governo e com o próximo.


Será que o Governo e a troika podem fazer orelhas moucas, repetir que a indignação não significa nada e seguir em frente? Podem. Mas fariam bem em temer a fúria de um povo paciente. (jvmalheiros@gmail.com)