terça-feira, fevereiro 25, 2014

A chatice das pessoas que pensam pela sua cabeça

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Fevereiro de 2014
Crónica 7/2014


Leonor Parreira considera que os cientistas só devem emitir as opiniões que convenham ao Governo.

A crise durou umas semanas, mas todos os protagonistas esperam que nos esqueçamos rapidamente dela, como costuma acontecer. Isso é aliás particularmente fácil com todos os atentados ao direito, à decência, aos direitos dos cidadãos, ao bom senso e ao bom gosto com que este Governo nos bombardeia quotidianamente.

Só que, neste caso (como na maioria dos outros), nem a crise passou verdadeiramente nem nos devemos esquecer dela e é proveitoso que a revisitemos.

A crise é, na realidade, um folhetim dentro de uma crise. E o folhetim, que pudemos seguir na imprensa, foi o espectáculo dado pela secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira, na reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNCT) de dia 23 de Janeiro e nos dias que se lhe seguiram, que se insere na crise maior que a ciência portuguesa atravessa.

Leonor Parreira presidiu àquela reunião do CNCT por delegação do primeiro-ministro, que é o presidente daquele órgão de aconselhamento do Governo em matéria de política científica e tecnológica. Deixemos passar o facto, bizarro em si, de o primeiro-ministro delegar na secretária de Estado e não no ministro da Educação e Ciência a presidência do CNCT, para mais quando se conhece a situação de turbulência que se vive no sector e a agenda quente que se iria discutir.

A questão substancial nesta história pouco moral é o facto de a secretária de Estado ter tentado alterar um documento produzido pelo CNCT onde este exprimia a sua preocupação pelos últimos acontecimentos na ciência nacional (nomeadamente a redução brutal no número de bolsas de doutoramento), fazendo pressão sobre os seus membros para que alterassem a sua substância ou, no mínimo, o não tornassem público.

É evidente que existem no pensamento de Leonor Parreira algumas confusões que deram origem a actos menos reflectidos da sua parte, mas é importante que os analisemos.

A primeira confusão diz respeito ao papel do CNCT. A secretária de Estado ou não sabe que o CNCT é um órgão consultivo ou não sabe o que significa “consultivo” ou sabe ambas as coisas mas está decidida a não se deixar acanhar por estas minudências. É grave que um membro do Governo tente pressionar um órgão consultivo para que este emita uma “opinião” que sirva determinados interesses políticos. Mas tão ou mais grave do que isso é que a secretária de Estado não perceba que existe valor numa posição que nasce de uma discussão livre no seio de um órgão colegial (cujos membros, para mais, foram escolhidos a dedo pelo próprio Governo) e que uma opinião encomendada pelo poder não vale sequer o papel em que possa ser escrita. Esta confusão na cabeça de Leonor Parreira — motivada, sem dúvida, por aquilo que o seu discernimento lhe sugere serem os mais altos interesses nacionais — é tanto mais grave quanto nos faz duvidar não só da sua capacidade de valorizar a importância de uma opinião livre mas nos faz duvidar de todos os casos em que a própria tenha emitido uma opinião. Se Leonor Parreira interferiu na acção do CNCT da forma como o fez, é porque pensa que tem o direito de o fazer. E se pensa que tem esse direito é porque considera que um cientista (ou um colégio de cientistas) apenas deve emitir as opiniões que convêm ao Governo ou aos partidos que ocupem num dado momento o Governo. Digamos que esta é, no mínimo, uma posição difícil de conciliar com a atitude científica.

Outra das confusões é quanto ao seu papel como “presidente em exercício” do CNCT. Leonor Parreira parece não ter compreendido que o seu papel neste caso lhe permite orientar os trabalhos, mas não lhe dá autoridade para mexer no texto final. O texto é dos conselheiros, não do presidente. Como parece não ter compreendido que o envio prévio do texto era uma cortesia e não uma oportunidade para usar o lápis azul.

Mais grave do que tudo acima, Leonor Parreira não parece perceber esta coisa da democracia, com estas coisas da liberdade de discussão e de opinião e o confronto de ideias — o que é igualmente estranho para um cientista. Para Leonor Parreira, as críticas do CNCT demonstram “má-fé” porque só pode estar de boa-fé quem concorda com o Governo ou escreve o que o Governo dita mesmo que não concorde.

Curiosamente, a todas estas questões vem somar-se uma aparente ingenuidade difícil de admitir num governante. Como é que a secretária de Estado pode ter imaginado que conseguia mandar calar estes vinte cientistas respeitados e obrigá-los a mudar o seu texto? Haverá algo, na sua prática como governante, que a fez acreditar nisso?

Num Governo onde o exercício da política obedecesse a algum critério de exigência ética, as cabeças de Leonor Parreira e de Nuno Crato rolariam. Mas, como é evidente, ninguém espera isso neste caso.

Costuma dizer-se que os cientistas são úteis à ciência na primeira metade da sua vida e prejudiciais na segunda metade. Seria bom que Leonor Parreira não se empenhasse tão afincadamente em provar o aforismo. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 11, 2014

As rifas do fisco e a governação rasca

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Fevereiro de 2014
Crónica 6/2014


Os grandes evasores fiscais são as grandes empresas e não os pequenos comerciantes.



A rifa do fisco que acaba de ser anunciada pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, onde são sorteados carros topo de gama entre os consumidores que incluam os seus números de identificação fiscal (NIF) nos recibos das suas compras, é mais um exemplo perfeito da forma como funciona o Governo PSD/CDS: qualquer truque é aceitável desde que proteja os mais ricos, permita um golpe de propaganda populista e distraia as pessoas dos seus verdadeiros problemas, acenando-lhes com benefícios futuros que nunca vão conquistar.

É evidente que o preenchimento de milhões de recibos com o número de identificação fiscal no momento do pagamento constitui uma perda de tempo considerável para comerciantes e clientes. A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) protestou aliás contra a medida, tendo estimado que ela represente em 2014 uma perda de 130 milhões de horas de trabalho para os seus associados. Mas o Governo não se incomodou com essa circunstância porque os inconvenientes e as perdas resultantes da medida recaem sobre a sociedade e as vantagens do golpe propagandístico serão colhidas pelos partidos no Governo.

Quais são as vantagens? Uma falsa aparência de combate à evasão fiscal e uma imagem moralizadora. Porquê falsa? Porque os grandes evasores fiscais são as grandes empresas e não os pequenos comerciantes, como toda a gente sabe, como os especialistas não se cansam de alertar e como as organizações internacionais que combatem a corrupção e a evasão fiscal denunciam. E porque os grandes responsáveis pela evasão fiscal são precisamente os governos. De que forma? Através dos tratamentos de excepção que concedem às grandes empresas e aos grupos financeiros em particular, com o argumento de que é necessário ser “fiscalmente competitivo” para atrair investimentos e para que as empresas possam “criar empregos”. Com a autorização de paraísos fiscais como o offshore da Madeira e todos os outros que existem na União Europeia e fora dela e fechando os olhos às falsas “deslocações” de empresas para a Holanda e para outras plataformas de lavagem de dinheiro.

Mas é mais útil criar a ideia de que os comerciantes são os responsáveis pela fuga ao fisco, que é principalmente através do IVA que isso acontece, que os consumidores devem agir como fiscais das finanças e que o Governo é um campeão da luta contra a evasão fiscal.

A medida é moralmente retorcida por outras razões. Seria lógico e louvável que o Estado (que é uma coisa diferente do Governo, ainda que este, ilegitimamente, se apodere do património do Estado como se fosse seu) lançasse uma campanha promovendo a moralidade do pagamento de impostos, que são a base do financiamento dos serviços públicos, e incentivasse os cidadãos a cumprir as suas obrigações fiscais. Mas é impossível fazer isso quando o Governo usa o Estado para roubar os cidadãos e os submete a uma carga fiscal imoral para arrebanhar dinheiro para pagar aos bancos uma dívida insustentável que deveria ter renegociado. De facto, o Governo não pode usar um discurso moral sem que o país inteiro se escangalhe a rir na sua cara e, por isso, a única forma que encontrou para dizer aos cidadãos que devem pagar impostos foi dizer-lhes que com isso podem ganhar um carro. É a mais venal das razões, mas essa é a única moralidade que os membros do Governo conhecem.

Há ainda outra razão imoral escondida: o bando que ocupa o Governo tem uma dificuldade de raiz ideológica em construir um discurso em torno de conceitos como comunidade, bem comum, serviços públicos ou património público e, por isso, prefere incentivar o pagamento dos impostos através da possibilidade de um benefício pessoal. Benefício pessoal é algo que eles percebem.

E porquê o carro “topo de gama”? Porque não simplesmente um carro ou dez carros? Porquê este conceito antiecológico que até fez a Quercus dar prova de vida e vir a terreiro contestar (e propor um carro eléctrico)? Porquê? Porque estamos a lidar com o PSD e o CDS, meus senhores, e não se pode pedir a uma rã que cante Schubert.

Isto do Governo tem-se vindo a degradar nos últimos anos e hoje temos no Governo a maltosa dos carros “topo de gama”, o novo-riquismo em todo o seu esplendor, o novo-raquitismo mental, analfabetos com botões de punho a condizer, monogramados. Para um jota não há maior glória que parecer um catálogo “topo de gama” e aparecer em revistas. Para um jota isso é a felicidade. Porquê a rifa do carro “topo de gama”? Porque os jotas pensam que qualquer um pode ser comprado com um carro “topo de gama” porque qualquer um deles se venderia exactamente pelo mesmo preço. O carrito “topo de gama” é o alfa e o ómega da carreira de um jota que se preze, é o simbolo de quem triunfou na vida, de quem é “alguém”, caraças! Pai, já sou ministro! Pai, tenho um carro “topo de gama”! Como os relógios e as marcas das camisas e os óculos “topo de gama” e tudo “topo de gama”. Chegámos ao cume da governação rasca. Saiu-nos na rifa mesmo sem dar o NIF. É preciso ter azar. (jvmalheiros@gmail.com)


Comentário adicional publicado no Facebook a 17 Fevereiro 2014

Os argumentos contra esta ideia peregrina do Governo não ficam por aqui (uma crónica de jornal nunca permite esgotar argumentos). Dois outros argumentos contra:
1. A rifa é socialmente injusta porque dá maiores oportunidades a quem gasta mais dinheiro(ou seja: a quem tem mais dinheiro) do que a quem gasta menos (e tem menos).
2. Ainda que se aceite que é importante combater a evasão fiscal no comércio (e eu penso que é) a contribuição desta medida para esse objectivo será diminuta pela simples razão de que nunca teremos todos os compradores a pedir recibos com NIF em todas as transacções em todas as lojas. Ou seja: nunca teremos uma acção tão constante e sistemática de consumidores-fiscais a pedir recibos com NIF como aquela que seria necessária para pôr fim à margem de evasão, que é sempre pequena.
De facto, se o móbil usado pelo Governo para aliciar os cidadãos é a possibilidade de ganho pessoal (como é), é muitíssimo mais eficaz, para aumentar a possibilidade de ganhar o carro, aumentar o número de compras (ou apenas o número de recibos, fraccionando as compras, como eu já vi fazer num supermercado).
Dito de outra forma: é muito fácil aumentar as hipóteses de ganhar um carro mantendo exactamente a mesma tolerância em relação a práticas sociais de fuga ao fisco. Não é o sorteio do carro que vai fazer as pessoas exigir um recibo ao canalizador, à manicura ou ao antiquário.
Naturalmente que, se o móbil fosse uma verdadeira exigência cidadã de cumprimento fiscal, poderíamos esperar uma acção mais moralizadora de todos, em todas as circunstâncias. Uma campanha de sensibilização cidadã poderia levar as pessoas a pedir os recibos ao canalizador, à manicura ou ao antiquário. Mas nesse caso, como disse, teríamos também de exigir moralidade às empresas que fogem ao fisco registando-se na Holanda. jvm


Crónica citada no site EuroTopics


http://www.eurotopics.net/en/home/medienindex/media_articles/archiv_article/ARTICLE138352-Tax-receipt-lottery-pointless-and-pathetic

terça-feira, fevereiro 04, 2014

A avaliação individual de desempenho como instrumento de repressão

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Fevereiro de 2014
Crónica 5/2014


A “avaliação” visa tornar evidente aos trabalhadores que estão todos a concorrer uns com os outros.


Se fosse preciso uma prova do controlo que a extrema-direita económica exerce sobre a sociedade e de como se apoderou do debate político e impõe a sua agenda mediática, bastaria ver como um dos seus representantes, o ministro Pedro Mota Soares, pôs toda a gente a discutir a melhor maneira de despedir trabalhadores, apesar de o principal problema que afecta o país ser o desemprego.

No espaço de poucos dias, saber “despedir bem” passou a ser uma competência fulcral para as empresas portuguesas e a lacuna neste “saber” o grande problema da economia nacional.

O Governo lembrou-se assim de definir uma lista hierárquica de critérios que devem servir para escolher os trabalhadores a despedir em caso de extinção de posto de trabalho e definiu como primeiro critério a “avaliação de desempenho”.

A lista de critérios destina-se apenas a dar uma aparência de objectividade a algo que está sujeito à mais absoluta arbitrariedade. Mas é espantoso como os próprios sindicatos se sentem constrangidos na sua argumentação pela aparente tecnicidade da expressão “avaliação de desempenho”.

De facto, a “avaliação de desempenho” apenas se encontra no topo desta lista por ser algo que permite todas as arbitrariedades às organizações, por restringir direitos aos trabalhadores e por ser, de uma forma geral, um instrumento de repressão das liberdades nas empresas, ao gosto da gestão moderna. E não por se revelar uma ferramenta de gestão das organizações mais justa ou mais geradora de inovação e de eficiência.

O recurso à “avaliação individual de desempenho” standardizada serve apenas para que empresários, gestores ou capatazes possam tomar decisões de despedimento ou recompensa de trabalhadores motivadas por razões pessoais ou políticas e as possam justificar com ar inocente apontando para uma tabela Excel.

Na prática, a “avaliação individual de desempenho” serve, antes de mais, como ferramenta de divisão entre trabalhadores, tornando evidente que todos eles estão a concorrer uns com os outros e que uma diferença de umas décimas numa pontuação pode ser a diferença entre manter o emprego ou ir para a rua. Não é por acaso que esta avaliação de desempenho é sempre individual mesmo quando só faria sentido avaliar equipas: o objectivo é impedir a união de trabalhadores em torno de interesses comuns. Não é por acaso que as consultoras que realizam estas “avaliações” incentivam as empresas a criar níveis salariais tão diferenciados quanto possível. O propósito é que cada trabalhador acabe por ficar sozinho numa “classe” profissional onde não poderá encontrar solidariedades. A receita é velha: dividir para reinar.

Esta “avaliação” promove a concorrência entre trabalhadores, em vez da cooperação, a rivalidade, em vez do trabalho de equipa, a delação, em vez da partilha de informação, a dissimulação de erros, em vez da sua correcção. Não o faz por acaso. É esse o seu objectivo. Não a eficiência ou a excelência da organização.

Com o pretexto de que a seriação promove a excelência, a avaliação individual de desempenho promove a desigualdade. É por isso que só se admite determinado número de trabalhadores em cada nível. É a táctica “escolha de Sofia”: o chefe de uma secção deve criar um ranking com todos os trabalhadores da sua secção, ordenados numericamente, mesmo quando isso não faz sentido. Em vez de uma equipa, cria-se uma fila indiana que representa a cadeia alimentar em vigor.

A “avaliação” pune o absentismo em termos objectivos, o que significa que regista as faltas, mesmo quando estas são dadas por razões legítimas e legais – como uma baixa de maternidade ou a redução de horas concedidas aos trabalhadores-estudantes.

O principal problema da “avaliação individual de desempenho”, porém, é outro. É que a avaliação não faz apenas uma análise quantitativa e qualitativa do trabalho realizado (o que não seria fácil só por si), mas inclui também uma componente “comportamental”. Para ter uma boa avaliação é importante ser “positivo“ (o que significa oferecer as suas ideias mas nunca criticar as ideias do chefe), ser “construtivo” (o que significa nunca criticar as opções da organização), ser um “team player” (o que significa obedecer às instruções mais cretinas que venham de cima e não sonhar em ter qualquer tipo de actividade sindical), estar “disponível” (o que significa fazer horas extraordinárias sem compensação), “vestir a camisola” (o que significa esconder ilegalidades cometidas pela organização), etc., etc..

O que está em causa aqui não é a avaliação em si. Todos os responsáveis por organizações avaliam os seus trabalhadores. Mas fazem-no em geral aceitando as naturais diferenças entre as pessoas e sem obrigar toda a hierarquia a uma prática indigna de vigilância e delação institucionalizada e sem criar um clima de medo. O problema da “avaliação individual de desempenho” de que a direita gosta é o seu carácter impessoal e totalitário. Não os objectivos que diz pretender. (jvmalheiros@gmail.com)