terça-feira, fevereiro 11, 2014

As rifas do fisco e a governação rasca

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Fevereiro de 2014
Crónica 6/2014


Os grandes evasores fiscais são as grandes empresas e não os pequenos comerciantes.



A rifa do fisco que acaba de ser anunciada pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, onde são sorteados carros topo de gama entre os consumidores que incluam os seus números de identificação fiscal (NIF) nos recibos das suas compras, é mais um exemplo perfeito da forma como funciona o Governo PSD/CDS: qualquer truque é aceitável desde que proteja os mais ricos, permita um golpe de propaganda populista e distraia as pessoas dos seus verdadeiros problemas, acenando-lhes com benefícios futuros que nunca vão conquistar.

É evidente que o preenchimento de milhões de recibos com o número de identificação fiscal no momento do pagamento constitui uma perda de tempo considerável para comerciantes e clientes. A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) protestou aliás contra a medida, tendo estimado que ela represente em 2014 uma perda de 130 milhões de horas de trabalho para os seus associados. Mas o Governo não se incomodou com essa circunstância porque os inconvenientes e as perdas resultantes da medida recaem sobre a sociedade e as vantagens do golpe propagandístico serão colhidas pelos partidos no Governo.

Quais são as vantagens? Uma falsa aparência de combate à evasão fiscal e uma imagem moralizadora. Porquê falsa? Porque os grandes evasores fiscais são as grandes empresas e não os pequenos comerciantes, como toda a gente sabe, como os especialistas não se cansam de alertar e como as organizações internacionais que combatem a corrupção e a evasão fiscal denunciam. E porque os grandes responsáveis pela evasão fiscal são precisamente os governos. De que forma? Através dos tratamentos de excepção que concedem às grandes empresas e aos grupos financeiros em particular, com o argumento de que é necessário ser “fiscalmente competitivo” para atrair investimentos e para que as empresas possam “criar empregos”. Com a autorização de paraísos fiscais como o offshore da Madeira e todos os outros que existem na União Europeia e fora dela e fechando os olhos às falsas “deslocações” de empresas para a Holanda e para outras plataformas de lavagem de dinheiro.

Mas é mais útil criar a ideia de que os comerciantes são os responsáveis pela fuga ao fisco, que é principalmente através do IVA que isso acontece, que os consumidores devem agir como fiscais das finanças e que o Governo é um campeão da luta contra a evasão fiscal.

A medida é moralmente retorcida por outras razões. Seria lógico e louvável que o Estado (que é uma coisa diferente do Governo, ainda que este, ilegitimamente, se apodere do património do Estado como se fosse seu) lançasse uma campanha promovendo a moralidade do pagamento de impostos, que são a base do financiamento dos serviços públicos, e incentivasse os cidadãos a cumprir as suas obrigações fiscais. Mas é impossível fazer isso quando o Governo usa o Estado para roubar os cidadãos e os submete a uma carga fiscal imoral para arrebanhar dinheiro para pagar aos bancos uma dívida insustentável que deveria ter renegociado. De facto, o Governo não pode usar um discurso moral sem que o país inteiro se escangalhe a rir na sua cara e, por isso, a única forma que encontrou para dizer aos cidadãos que devem pagar impostos foi dizer-lhes que com isso podem ganhar um carro. É a mais venal das razões, mas essa é a única moralidade que os membros do Governo conhecem.

Há ainda outra razão imoral escondida: o bando que ocupa o Governo tem uma dificuldade de raiz ideológica em construir um discurso em torno de conceitos como comunidade, bem comum, serviços públicos ou património público e, por isso, prefere incentivar o pagamento dos impostos através da possibilidade de um benefício pessoal. Benefício pessoal é algo que eles percebem.

E porquê o carro “topo de gama”? Porque não simplesmente um carro ou dez carros? Porquê este conceito antiecológico que até fez a Quercus dar prova de vida e vir a terreiro contestar (e propor um carro eléctrico)? Porquê? Porque estamos a lidar com o PSD e o CDS, meus senhores, e não se pode pedir a uma rã que cante Schubert.

Isto do Governo tem-se vindo a degradar nos últimos anos e hoje temos no Governo a maltosa dos carros “topo de gama”, o novo-riquismo em todo o seu esplendor, o novo-raquitismo mental, analfabetos com botões de punho a condizer, monogramados. Para um jota não há maior glória que parecer um catálogo “topo de gama” e aparecer em revistas. Para um jota isso é a felicidade. Porquê a rifa do carro “topo de gama”? Porque os jotas pensam que qualquer um pode ser comprado com um carro “topo de gama” porque qualquer um deles se venderia exactamente pelo mesmo preço. O carrito “topo de gama” é o alfa e o ómega da carreira de um jota que se preze, é o simbolo de quem triunfou na vida, de quem é “alguém”, caraças! Pai, já sou ministro! Pai, tenho um carro “topo de gama”! Como os relógios e as marcas das camisas e os óculos “topo de gama” e tudo “topo de gama”. Chegámos ao cume da governação rasca. Saiu-nos na rifa mesmo sem dar o NIF. É preciso ter azar. (jvmalheiros@gmail.com)


Comentário adicional publicado no Facebook a 17 Fevereiro 2014

Os argumentos contra esta ideia peregrina do Governo não ficam por aqui (uma crónica de jornal nunca permite esgotar argumentos). Dois outros argumentos contra:
1. A rifa é socialmente injusta porque dá maiores oportunidades a quem gasta mais dinheiro(ou seja: a quem tem mais dinheiro) do que a quem gasta menos (e tem menos).
2. Ainda que se aceite que é importante combater a evasão fiscal no comércio (e eu penso que é) a contribuição desta medida para esse objectivo será diminuta pela simples razão de que nunca teremos todos os compradores a pedir recibos com NIF em todas as transacções em todas as lojas. Ou seja: nunca teremos uma acção tão constante e sistemática de consumidores-fiscais a pedir recibos com NIF como aquela que seria necessária para pôr fim à margem de evasão, que é sempre pequena.
De facto, se o móbil usado pelo Governo para aliciar os cidadãos é a possibilidade de ganho pessoal (como é), é muitíssimo mais eficaz, para aumentar a possibilidade de ganhar o carro, aumentar o número de compras (ou apenas o número de recibos, fraccionando as compras, como eu já vi fazer num supermercado).
Dito de outra forma: é muito fácil aumentar as hipóteses de ganhar um carro mantendo exactamente a mesma tolerância em relação a práticas sociais de fuga ao fisco. Não é o sorteio do carro que vai fazer as pessoas exigir um recibo ao canalizador, à manicura ou ao antiquário.
Naturalmente que, se o móbil fosse uma verdadeira exigência cidadã de cumprimento fiscal, poderíamos esperar uma acção mais moralizadora de todos, em todas as circunstâncias. Uma campanha de sensibilização cidadã poderia levar as pessoas a pedir os recibos ao canalizador, à manicura ou ao antiquário. Mas nesse caso, como disse, teríamos também de exigir moralidade às empresas que fogem ao fisco registando-se na Holanda. jvm


Crónica citada no site EuroTopics


http://www.eurotopics.net/en/home/medienindex/media_articles/archiv_article/ARTICLE138352-Tax-receipt-lottery-pointless-and-pathetic

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