terça-feira, novembro 29, 2011

O que é este cheiro que se sente no ar?


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Novembro de 2011
Crónica 48/2011

Os deputados são para domesticar. As greves para reprimir. As manifestações para atacar. A erosão da democracia, passo a passo.

Na semana passada, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou, por proposta do PSD e apenas com os votos favoráveis deste partido, uma alteração ao seu regimento que permite que um único deputado vote em nome de todos os deputados da sua bancada, ainda que todos os outros estejam ausentes. A medida dá ao partido do Governo regional a certeza de manter a maioria, apesar da sua fragilidade numérica de dois deputados. Mesmo que haja faltas, doenças, deslocações em negócios ou em trabalho político e que haja um único representante na bancada social-democrata, os deputados do PSD estão todos virtualmente presentes e serão representados pela voz do dono.

A medida institucionaliza a figura de “sociedade por quotas” de que os parlamentos se aproximam tantas vezes, devido à “disciplina de voto” que os partidos impõem e que os deputados admitem.
Levada às suas últimas consequências – que chegarão talvez um dia – esta medida significa que a Assembleia Legislativa poderia ser reduzida apenas a oito deputados, que representariam os oito partidos aí sentados, e que poderiam usar, cada um, o número de votos que os seus resultados eleitorais lhes tivessem garantido: 25 votos para o deputados do PSD, 9 votos para o deputado do CDS, 6 para o do PS e por aí fora. Era uma poupança. Ou, para dar mais um passo, em nome da eficiência de que o PSD tanto gosta e que a troika apreciaria, até se poderia reduzir a Assembleia a um órgão unipessoal, onde teria assento um único deputado do PSD. Para quê a maçada (e o gasto) de fazer propostas e debates se já se sabe que é o PSD que vai prevalecer? É a vantagem das maiorias. Pode-se poupar. E a democracia é muito cara.
Quando li a notícia pensei que me tinha enganado, que era 1 de Abril, que estava a sonhar, que era uma partida de um hacker que tinha alterado uns sites de jornal. Mas não.

A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira instituiu mesmo o princípio da chapelada parlamentar e – fora os reparos de alguns comentadores interpelados pelos media – ninguém pareceu particularmente indignado com o facto. E ouvi até alguns comentários jocosos do tipo “lá está o Jardim a fazer das suas, eh, eh!”
Que a medida é inconstitucional parece evidente – é essa a opinião de Pedro Bacelar de Vasconcelos, que explicou à Lusa que “o voto não pode ser delegado e muito menos apropriado pelo grupo político a que está ligado o deputado” – e, se não fosse, justificaria uma revisão constitucional. A questão, porém, não é essa. Que é ilegal já sabemos. Que é ilegítima já sabemos. Que é imoral já sabemos. Que é anti-democrática já sabemos. A questão é se a medida irá ou não avante, pois já vimos inúmeras  decisões e atitudes ilegais, ilegítimas, imorais e anti-democráticas do PSD madeirense serem olimpicamente ignoradas pelas instituições que têm como dever garantir o normal funcionamento das instituições democráticas em nome da inimputabilidade pantomimeira de Alberto João Jardim. Se isto não é um atentado à democracia o que o será? Se isto não é o sequestro de um Parlamento pela direcção de um partido maioritário – e um sequestro virtualmente eterno - o que o será?

2. Não é possível ouvir um governante, um empresário, um político da direita falar de greve sem que este, primeiro, garanta que defende “o direito constitucional” à greve e sem que, em seguida, ponha em causa esse mesmo direito quando se trata de uma greve em concreto. O direito à greve, para todos estes cavalheiros, é algo que apenas é legítimo se 1) a economia do país estiver florescente, com taxas de crescimento de dois dígitos 2) se nos dias anteriores os trabalhadores que vão fazer greve trabalharem ao dobro do ritmo para não prejudicar as encomendas 3) se a greve não causar o mínimo incómodo a ninguém 4) se a greve não tiver o mínimo pressuposto político e se reivindicar apenas coisas como o direito a escolher o canal de televisão que se prefere 5) se a greve não for noticiada para não dar má impressão a Angela Merkel e “aos mercados”.

Daí os serviços mínimos de 50 por cento, para ninguem notar que há greve. Daí a intervenção dissuasora da polícia, evidentemente instruída para agir de forma musculada.

António Marques, presidente da Associação Industrial do Minho, entrevistado pelo Público, depois de defender o “direito constitucional”, considerou a greve geral “de uma demagogia, de um oportunismo e de uma insensibilidade social a toda a prova”, para defender em seguida que, numa democracia, “o protesto exerce-se nas urnas e não nas ruas”. Não nas ruas.

E o pensamento de António Marques vai mais longe: o industrial minhoto diz que seria conveniente criar “mais insegurança” aos trabalhadores, “para que se mantivessem mais empenhados no seu trabalho”. Longe das ruas e com medo. O verniz democrático estala.

3. O ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, anunciou que aguarda o resultado das averiguações da PSP ao vídeo que mostra dois agentes da PSP à paisana a atacar manifestantes, no dia da greve geral. Mas foi repetindo o que já tinha dito antes: "Estou muito satisfeito com aquilo que foi o trabalho da PSP nessas circunstâncias". O tom está dado, a conclusão das averiguações já está aqui enunciada e os averiguadores da PSP já sabem o que devem fazer para agradar ao ministro e o que não podem fazer para não o desautorizar.
Os deputados são para domesticar. As greves são para reprimir. As manifestações são para atacar. O que é este cheiro que se sente no ar? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 22, 2011

“No taxation without representation”

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Novembro de 2011
Crónica 47/2011

Ninguém elegeu as agências de rating, ninguém elegeu a troika, ninguém elegeu “os mercados”, ninguém elegeu o directório Merkozy

As declarações de Otelo Saraiva de Carvalho sobre a possibilidade de as Forças Armadas portuguesas lançarem “uma operação militar e derrubarem o Governo” foi recebida com a esperada vaga de escândalo, com protestos de respeito pela legalidade democrática por parte da hierarquia militar e com as habituais críticas à pessoa de Otelo. Não faltou mesmo quem aventasse a possibilidade de Otelo ser acusado criminalmente por “incitamento à alteração violenta do Estado de Direito”. Otelo, pelo seu lado, avançou mesmo uns cálculos logísticos feitos nas costas de um envelope. Na sua opinião, o golpe seria hoje até mais fácil do que em 1974, pelo facto de haver agora menos quartéis, e bastariam para o levar a cabo “800 homens”.

O frisson unânime dos comentadores poderia dar a ideia de que existe na sociedade portuguesa uma viva e unânime repulsa pela ideia de um golpe de Estado. Mas basta passearmo-nos um pouco pelos comentários de blogues e jornais ou fazer esse exercício que se chama “andar nos transportes públicos”, para percebermos que não é assim. De facto, a degradação do país, o desemprego crescente, a destruição sistemática dos progressos dos últimos anos, a injustiça social e a desigualdade, com o enraizamento dos privilégios de uns e da pobreza de outros e a frustração pela sua situação pessoal conseguiram já levar um número considerável de pessoas ao chamado “ponto de rebuçado”.

Uma maioria de pessoas detestava o anterior Governo. Elegeu outro. Mas, neste momento, penso que a maioria das pessoas não estará satisfeita com este. Mas não se trata de uma mudança brusca de opinião. Não estou a dizer que, se houvesse hoje eleições, o povo escolheria o PS. Ou o PCP ou o Bloco. É até possível que reelegesse o PSD+CDS. Mas a questão é que o actual quadro político já não merece a confiança, a concordância, nem sequer a esperança de uma parte considerável da população. A abstenção é um reflexo evidente disso, mas essa desesperança, o desinvestimento, a descrença e até a animosidade contra o actual sistema político existem igualmente em muitos votantes. A maioria absoluta, hoje, pertence aos descrentes e aos indignados. Quando Otelo diz que, se forem ultrapassados os limites, os militares devem derrubar o Governo, está a ecoar a frustração de muitos portugueses. Que a proposta seja inconsequente não muda o fundo da questão.

Quando as pessoas dizem que é preciso “outro 25 de Abril” estão simplesmente a enunciar a sua insatisfação com a actual situação, que nem lhes garante justiça social nem democracia – como o regime de Marcelo Caetano, ainda que as razões e a circunstância sejam diferentes. É claro que sempre houve pessoas a dizer que “isto só lá vai a tiro”. Mas, se há uns anos encontravam a indiferença como resposta, hoje temos gente a assentir ou a considerar a possibilidade.

Seria interessante saber que medidas tomariam os militares, após o golpe de Otelo, para garantir a verdadeira democracia que hoje não temos (uma ditadura militar? Proibir os partidos? Obrigá-los a refundar-se? Democracia directa?) mas penso que no inconsciente colectivo “o novo 25 de Abril” é apenas um Dilúvio destinado a eliminar uma geração de políticos, esperando simplesmente que os próximos aprendessem com a lição. Se até Deus perdeu a paciência, por que não simples mortais?

Por outro lado, se é fácil ridicularizar as tiradas de Otelo, todos ouvimos com circunspecção e assentimento as declarações de Soares (entre muitos outros respeitados políticos) quando diz que a "democracia pode vir a ser posta em causa" pelas “exigências dos mercados especulativos e desregulados” e quando escreve que Portugal está a ser "vítima da ganância dos mercados especulativos e da audácia criminosa das agências de rating".
As armas de eleição são diferentes, mas tanto Otelo como Soares repetem que a democracia pode estar em perigo. E que temos estado a perder democracia nos últimos trinta anos, com a soberania do povo a ser ilegitimamente transferida para a Goldman Sachs, é hoje uma evidência.
As liberdades de que gozamos hoje, e que formam o núcleo da democracia que consideramos o menos imperfeito dos regimes políticos, foram conquistadas em grande medida pela violência. Violência contra Governos ditatoriais, ilegítimos, que não representavam o povo. Foi assim da Revolução Francesa à luta contra o apartheid sul-africano. Outras foram ganhas sem violência revolucionária mas com sacrifícios de milhares, como a luta pelos direitos dos negros nos EUA. Mas a violência possui um papel político essencial.
Nos países democráticos, aceitamos que o uso da violência é uma prerrogativa exclusiva do Estado. Mas isso apenas é assim porque existem meios para o povo – único soberano – se exprimir e fazer valer a sua vontade. Porque o Estado emana do povo. E quando esses mecanismos não existem? Quando um povo elege um partido com base num programa que é pervertido a partir do primeiro minuto? Quando existe uma situação de dependência externa? Quando existe uma situação de “ditadura financeira” para usar a expressão, tristemente rigorosa, da igreja católica? Ninguém elegeu as agências de rating, ninguém elegeu a troika, ninguém elegeu “os mercados”, ninguém elegeu o directório Merkozy, ninguém elegeu sequer Durão Barroso.
Cada vez mais vivemos como uma colónia dos “mercados financeiros”. E aproximamo-nos de uma situação de “taxation without representation”, similar à que desencadeou a Revolução Americana. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 15, 2011

A Alemanha abriu alegremente a caixa de Pandora

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Novembro de 2011
Crónica 46/2011

Precisamos de um discurso europeu alternativo, democrático e transnacional

Sempre ouvimos dizer que a União Europeia (e a Comunidade Económica Europeia que a precedeu, e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço que a precedeu) tinha sido criada, antes de mais, para garantir que uma guerra europeia não se voltaria a repetir. O francês Robert Schuman, criador da CECA e geralmente considerado o “pai da Europa”, dizia que a ideia por trás da criação da organização era tornar a guerra “não só impensável, mas materialmente impossível”. Que guerra? A guerra com a Alemanha, claro, país que tinha estado na origem de dois conflitos à escala continental e cuja ambição imperialista sempre foi difícil conter.

Basta ler qualquer relato de qualquer uma das duas guerras europeias para perceber a motivação dos europeus, nos anos 50 do século passado, em prol da paz. Devido à sua proximidade temporal e à sua maior presença na ficção e no cinema sabemos mais coisas sobre a Segunda Guerra Mundial, mas a Grande Guerra, se foi menos mortífera, não foi menos traumática à época – e muitos dos cidadãos europeus que estavam vivos quando Schuman propôs a CECA lembravam-se de ambas.

É claro que evitar a guerra parece um objectivo importante e sensato. Tão importante e sensato que todos os países (ou quase) e todos os políticos (ou quase) o colocam no topo da sua agenda. Mas também tão óbvio e omnipresente que geralmente nos esquecemos que ele lá está, já que o objectivo parece garantido à partida e para sempre. Quem poderia ser estúpido ao ponto de querer uma nova guerra? Quando dizemos a jovens europeus que o principal objectivo da EU era (e é) evitar a guerra olham-nos como se tivéssemos acabado de chegar de Qo'noS (é o planeta dos Klingons). Guerra na Europa? Só os pais da geração que está hoje na meia-idade se recordam da última guerra europeia (ainda que as guerras coloniais ainda estejam bem vivas). A guerra é algo que acontece em África, no Médio Oriente, na Ásia Menor, não na Europa. A guerra não faz parte da sua história, da sua memória, não está nas suas referências. A guerra é história passada. E no entanto…

Há inúmeras teorias para explicar porque é que as guerras acontecem, mas a existência de uma forte animosidade entre dois ou mais países é uma condição necessária. E uma das coisas que a actual crise financeira tem de surpreendente é – para além da criminosa falta de vontade dos líderes europeus em resolver os problemas existentes – a forma como a Alemanha parece apostada (Selbsthass?) em despertar velhas animosidades e em tirar dos armários todos os cadáveres que ela se empenhou durante as duas últimas gerações em fazer esquecer. Eles aí estão, à luz do dia, em toda a sua aterradora corrupção. E são uma fila infindável de cadáveres.

A caixa de Pandora foi aberta com os comentários xenófobos que não só invadiram os jornais populares alemães como o discurso político desse país e o da chanceler em particular. Comentários inseridos num discurso paternalista e disciplinador e avançados com uma pose de superioridade moral e de árbitro de facto da Europa. O que acontece é que nada na história da Alemanha lhe permite estas veleidades. Nada na sua prática política ou na forma como enriqueceu lhe concede o estatuto de árbitro da moral ou de fiel da economia. E menos ainda lhe confere o poder ditatorial de impor as mudanças de Governo que lhe agradam nos países a quem empresta dinheiro.
A arrogância alemã relativamente aos países preguiçosos e corruptos do sul, que mentem e não honram as suas dívidas e que não merecem a democracia, não podia deixar de trazer à tona algo que a Alemanha tentou fazer esquecer e que, por uma mistura de interesse e de generosidade (que Berlim toma por fraqueza), os países que a Alemanha atacou e ocupou na última guerra fingiram também esquecer: a questão das reparações de guerra, nunca completamente pagas, nomeadamente à Grécia; a devolução das obras de arte roubadas pelos nazis mas que a Alemanha democrática se foi esquecendo de devolver; as indemnizações pelos doze milhões de trabalhadores escravos que enriqueceram duas mil empresas alemãs - muitas das quais ainda hoje florescem sobre essa herança macabra e que foi sempre vergonhosamente minimizada (o chanceler Gerhard Schroder, quando anunciou em 1999 a criação de um fundo de 1700 milhões de dólares para compensar uma parte dos antigos escravos considerou as exigências de reparação uma ”campanha contra a Alemanha”...).
Perante as exigências alemãs, é evidente que é conveniente refrescar a memória de Berlim e lembrar que dívidas a pagar há-as por todo o lado.
Mas se isso pode ser usado como tentativa de reality check para uma Alemanha que caminha mais uma vez orgulhosamente para o abismo, é mais urgente evitar o caminho que a Europa não quer trilhar de novo. É essencial que as forças políticas europeias a quem as acções do directório europeu repugnam por razões morais, políticas e económicas, se entendam e apontem uma via alternativa comum.
Têm sido apresentadas alternativas, mas apenas por forças nacionais ou pessoas isoladas. É absolutamente fundamental que essa alternativa seja apresentada por uma corrente transnacional, que envolva se possível forças políticas de todos os países da UE - “onde está a social-democracia europeia?”, perguntava ontem o ensaísta Jon Bloomfield num artigo do “Social Europe Journal” - para evitar que o nacionalismo que se começa a enquistar no discurso político abafe por completo o ideal da cooperação europeia.
Se isso não acontecer, o sentimento que vai ficar na caixa de Pandora quando a conseguirmos finalmente fechar não vai ser a esperança. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 08, 2011

Recusar o futuro inevitável e alargar o leque de escolhas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Novembro de 2011
Crónica 45/2011

A narrativa neoliberal hegemónica é simples e continua a ser repetida até à exaustão

Parece que foi no ano passado, mas foi só na semana passada. Lembram-se de quando o primeiro-ministro grego lançou a bomba de fazer um referendo nacional para votar o pacote de empréstimo-austeridade da troika? Quando ouvi a notícia, lancei-me na Internet para tentar perceber de que forma este novo dado alterava a situação. Queria saber as consequências do anúncio a nível interno, como as coisas se poderiam processar se o referendo fosse avante, as consequências internas e europeias deste ou daquele resultado, qual poderia ser a estratégia de Papandreou se isto não fosse apenas um bluff para forçar a mão da Nova Democracia (como parecia ser), etc.

Mas, espantosamente, nos primeiros dois dias, as reacções eram extremamente pobres em conteúdo. Claro que havia indignação dos eurocratas perante a ingratidão de Papandreou, nervosismo “dos mercados” e cotações a cair, declarações de porta-vozes do mundo da finança que diziam que a democracia era um luxo a que apenas os países sem dívidas se podiam dar e que a ideia de fazer um referendo era absurda. Mas não havia análises de especialistas, comentários de observadores imparciais, posições de investigadores da ciência política ou da economia, nem sequer reacções de políticos que fossem além de uma reacção de comadres do género “Ora não querem lá ver o atrevimento!”

Acontece que eu queria mesmo perceber o que estava a acontecer e perdi umas boas horas a ler artigos em blogs e jornais mas com um saldo diminuto. Mais uma vez, aquilo a que assistimos foi à absoluta hegemonia de uma narrativa neoliberal e à ausência de perspectivas alternativas. Uma hegemonia tão absoluta que nem sequer valia a pena aos neoliberais fazer um esforço para argumentar que fosse além do comentário de comadres.

Na narrativa neoliberal as coisas são simples: gastámos de mais, a culpa é nossa e é preciso pagar em dinheiro e contrição. Quem nos empresta é nosso amo e devemos-lhe a nossa alma, uma libra de carne viva e a suspensão da democracia. Precisamos de menos serviços públicos para gastar menos, de privatizações porque o Estado precisa de dinheiro e não sabe gerir, de mais desemprego para poder baixar salários e de reduzir as regalias dos pobres porque incentivam a preguiça. Depois, se fizermos isso tudo, os deuses apiedam-se de nós, as empresas começam a ganhar dinheiro a sério e recomeçam a contratar trabalhadores e podemos viver um bocadinho melhor - mas não tão bem como antes, nem com tanta educação e saúde pública porque era um desperdício. No fim, os serviços públicos ficam reduzidos à sua ínfima expressão e os ricos podem viver felizes para sempre. E não há nenhuma injustiça social nisto porque se um pobre quiser ser rico só tem de trabalhar muito e pronto.

Que haja quem conte esta história, percebe-se. Ela serve os interesses de um grupo determinado. Mas que ela se tenha transformado na única narrativa não é aceitável. Uma explicação simplista diz que os media estão comprados e, por isso, apenas entrevistam políticos de direita, eurocratas, corretores da Bolsa, administradores de bancos, conselheiros de investimentos, comentadores que pensam como corretores e empresários que agem como especuladores. De vez em quando, é claro que lá aparece um comentário de Francisco Louçã, de José Castro Caldas, de José Reis ou de João Ferreira do Amaral, mas é sempre como contraponto isolado a uma maré de comentários de homens pragmáticos que estão habituados a ter na mão as rédeas do mundo, como se comprova pelo corte superior dos seus fatos. Será estranho que essa narrativa se torne hegemónica? 

Para mais, quando se referem os críticos deste discurso, os media também nos mostram uns hippies insatisfeitos acampados um pouco por todo o mundo, quando não uns violentos manifestantes gregos que incendeiam coisas. Será de estranhar que nos pareça haver mais senso no discurso daquele senhor de gravata elegante? Afinal em que mundo queremos viver? No daquele embuçado que atira pedras aos polícias ou no do senhor da gravata?

E, no entanto… verificamos que, à parte os eurocratas neoliberais e os corretores, os banqueiros e os outros que lucram com a austeridade e com o desemprego, os mais reputados economistas do mundo explicam há anos que a austeridade não é uma solução, os mais eminentes politólogos mostram que existe uma distribuição injusta dos rendimentos, os mais respeitados pensadores defendem que a desigualdade reinante é imoral, os mais sérios historiadores descrevem os efeitos perniciosos da desregulação dos mercados. Ou seja: não é que a narrativa alternativa não exista. Não é que ela não tenha porta-vozes respeitados. É que ela não é defendida por estes com o vigor e a inspiração que as suas ideias exige. O que acontece é que os senhores das gravatas elegantes estão sempre mais disponíveis para falar do que os outros e não se importam de ser tão catastrofistas quanto necessário.

Do que precisamos é que o mundo académico e intelectual em geral se envolva de forma empenhada no actual debate político e económico, sem medo de correr riscos e de “sujar as mãos” (para usar uma expressão lançada há dias por um dirigente da igreja católica), de forma que nós, os cidadãos, possamos ter uma ideia clara do que está em jogo e, principalmente, possamos decidir se o mundo para onde este caminho “inevitável” nos leva, é aquele onde queremos viver.

Quando o futuro não se pode escolher, vive-se em ditadura. Democracia significa poder escolher e é responsabilidade dos intelectuais ajudar-nos a alargar o nosso leque de escolhas. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 01, 2011

A ideia eugenista do capitalismo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Novembro de 2011
Crónica 44/2011

Mesmo sem uma solução chave na mão para substituir o capitalismo, é essencial combater as suas indignidades e os seus crimes

Nestes tempos onde os malefícios do capitalismo financeiro e a falta de escrúpulos da oligarquia económica e política se tornaram evidentes, com o seu rasto de miséria e acumulação obscena de lucros, é frequente ouvirmos repetir slogans contra o capitalismo.
O “fim do capitalismo” surge como uma evidência até nas conferências de insuspeitos conservadores, ainda que matizado pela adenda “tal como o conhecemos” ou algo semelhante. Mas que existe uma crise não apenas financeira e não apenas conjuntural, que é do próprio capitalismo, é algo que ninguém de boa fé pode deixar de ver.
Pela minha parte, nunca defendi a destruição do capitalismo pela simples razão de que nunca tive uma noção clara do que poria no seu lugar – sendo certo que certas opções me pareciam moralmente inaceitáveis, economicamente ineficazes ou politicamente perversas ou tudo isso ao mesmo tempo.
Simpatizo com a ideia de mercado e de concorrência. Gosto de pensar que, se dois produtores vão vender maçãs ao mercado, o que tiver melhores maçãs ou o que tiver melhores preços terá mais sucesso que o outro, com o consequente benefício para a sociedade. Mas sempre me pareceu evidente que nem tudo deve ser decidido pelo mercado, que existem bens que devem ser disponibilizados a todos pela comunidade, independentemente de os seus beneficiários os poderem ou não comprar, porque o seu usufruto é a condição de uma vida digna. E nunca me pareceu aceitável que, em nome da concorrência, o produtor das melhores maçãs condenasse o seu concorrente à miséria e à fome. E, já agora, sempre me pareceu injusto que o sistema – fazendo jus ao seu nome mas contrariando as regras da competição – permitisse que quem dispunha de mais capital, mesmo que produzisse as piores maçãs, encontrasse forma de as vender mais depressa e mais caras que o seu concorrente.
Na minha simpatia pelo mercado, curiosamente ou não, sempre me senti a milhas de distância dos “defensores do mercado” que, principalmente quando são empresários, sonham acima de tudo em encontrar formas de pôr fim à concorrência, em tentar impor um monopólio, em garantir um mercado protegido, em negociar um cartel, em escamotear a informação de que os clientes necessitam para fazer escolhas ou a usar de outros truques para contornar as regras do mercado.
Posto isto, é evidente que existe um limite para além do qual a concorrência é indesejável. Em que o seu império acaba por destruir o tecido em que assenta a vida em sociedade.
É por isso que, apesar de não ter uma solução chave na mão para substituir o capitalismo, sempre me pareceu essencial combater as suas indignidades e os seus crimes. Se, uma vez corrigidos esses erros, no final tivermos algo que não se chama capitalismo, isso é para mim relativamente indiferente – ainda que fizesse sentido que se chamasse outra coisa e que essa outra coisa fosse socialismo. Mas o que é fundamental é o que o sistema faz – o que faz e permite às pessoas – e não como se chama.
De todos os seus erros e crimes, há algo que o capitalismo fez às pessoas que não pode deixar de ser identificado como um mal nuclear: o facto de nos ter imposto a ideia de que não só os produtos e os serviços mas também as pessoas devem concorrer entre si e que, os que perderem, devem ser descartados, excluídos e punidos. Não por maldade, mas em nome da qualidade. Em nome da produtividade e da eficiência. Em nome da selecção dos melhores.
Esta ideia, eugenista por excelência, tecnocrata por excelência (tecnocrata é, simplesmente, anti-humanista) está na base da destruição da solidariedade que hoje, meticulosamente, temos de voltar a tecer, fio a fio. (jvmalheiros@gmail.com)