por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Novembro de 2011
Crónica 48/2011
Os deputados são para domesticar. As greves para reprimir. As manifestações para atacar. A erosão da democracia, passo a passo.
Na semana passada, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou, por proposta do PSD e apenas com os votos favoráveis deste partido, uma alteração ao seu regimento que permite que um único deputado vote em nome de todos os deputados da sua bancada, ainda que todos os outros estejam ausentes. A medida dá ao partido do Governo regional a certeza de manter a maioria, apesar da sua fragilidade numérica de dois deputados. Mesmo que haja faltas, doenças, deslocações em negócios ou em trabalho político e que haja um único representante na bancada social-democrata, os deputados do PSD estão todos virtualmente presentes e serão representados pela voz do dono.
A medida institucionaliza a figura de “sociedade por quotas” de que os parlamentos se aproximam tantas vezes, devido à “disciplina de voto” que os partidos impõem e que os deputados admitem.
Levada às suas últimas consequências – que chegarão talvez um dia – esta medida significa que a Assembleia Legislativa poderia ser reduzida apenas a oito deputados, que representariam os oito partidos aí sentados, e que poderiam usar, cada um, o número de votos que os seus resultados eleitorais lhes tivessem garantido: 25 votos para o deputados do PSD, 9 votos para o deputado do CDS, 6 para o do PS e por aí fora. Era uma poupança. Ou, para dar mais um passo, em nome da eficiência de que o PSD tanto gosta e que a troika apreciaria, até se poderia reduzir a Assembleia a um órgão unipessoal, onde teria assento um único deputado do PSD. Para quê a maçada (e o gasto) de fazer propostas e debates se já se sabe que é o PSD que vai prevalecer? É a vantagem das maiorias. Pode-se poupar. E a democracia é muito cara.
Quando li a notícia pensei que me tinha enganado, que era 1 de Abril, que estava a sonhar, que era uma partida de um hacker que tinha alterado uns sites de jornal. Mas não.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira instituiu mesmo o princípio da chapelada parlamentar e – fora os reparos de alguns comentadores interpelados pelos media – ninguém pareceu particularmente indignado com o facto. E ouvi até alguns comentários jocosos do tipo “lá está o Jardim a fazer das suas, eh, eh!”
Que a medida é inconstitucional parece evidente – é essa a opinião de Pedro Bacelar de Vasconcelos, que explicou à Lusa que “o voto não pode ser delegado e muito menos apropriado pelo grupo político a que está ligado o deputado” – e, se não fosse, justificaria uma revisão constitucional. A questão, porém, não é essa. Que é ilegal já sabemos. Que é ilegítima já sabemos. Que é imoral já sabemos. Que é anti-democrática já sabemos. A questão é se a medida irá ou não avante, pois já vimos inúmeras decisões e atitudes ilegais, ilegítimas, imorais e anti-democráticas do PSD madeirense serem olimpicamente ignoradas pelas instituições que têm como dever garantir o normal funcionamento das instituições democráticas em nome da inimputabilidade pantomimeira de Alberto João Jardim. Se isto não é um atentado à democracia o que o será? Se isto não é o sequestro de um Parlamento pela direcção de um partido maioritário – e um sequestro virtualmente eterno - o que o será?
2. Não é possível ouvir um governante, um empresário, um político da direita falar de greve sem que este, primeiro, garanta que defende “o direito constitucional” à greve e sem que, em seguida, ponha em causa esse mesmo direito quando se trata de uma greve em concreto. O direito à greve, para todos estes cavalheiros, é algo que apenas é legítimo se 1) a economia do país estiver florescente, com taxas de crescimento de dois dígitos 2) se nos dias anteriores os trabalhadores que vão fazer greve trabalharem ao dobro do ritmo para não prejudicar as encomendas 3) se a greve não causar o mínimo incómodo a ninguém 4) se a greve não tiver o mínimo pressuposto político e se reivindicar apenas coisas como o direito a escolher o canal de televisão que se prefere 5) se a greve não for noticiada para não dar má impressão a Angela Merkel e “aos mercados”.
Daí os serviços mínimos de 50 por cento, para ninguem notar que há greve. Daí a intervenção dissuasora da polícia, evidentemente instruída para agir de forma musculada.
António Marques, presidente da Associação Industrial do Minho, entrevistado pelo Público, depois de defender o “direito constitucional”, considerou a greve geral “de uma demagogia, de um oportunismo e de uma insensibilidade social a toda a prova”, para defender em seguida que, numa democracia, “o protesto exerce-se nas urnas e não nas ruas”. Não nas ruas.
E o pensamento de António Marques vai mais longe: o industrial minhoto diz que seria conveniente criar “mais insegurança” aos trabalhadores, “para que se mantivessem mais empenhados no seu trabalho”. Longe das ruas e com medo. O verniz democrático estala.
3. O ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, anunciou que aguarda o resultado das averiguações da PSP ao vídeo que mostra dois agentes da PSP à paisana a atacar manifestantes, no dia da greve geral. Mas foi repetindo o que já tinha dito antes: "Estou muito satisfeito com aquilo que foi o trabalho da PSP nessas circunstâncias". O tom está dado, a conclusão das averiguações já está aqui enunciada e os averiguadores da PSP já sabem o que devem fazer para agradar ao ministro e o que não podem fazer para não o desautorizar.
Os deputados são para domesticar. As greves são para reprimir. As manifestações são para atacar. O que é este cheiro que se sente no ar? (jvmalheiros@gmail.com)