terça-feira, novembro 08, 2011

Recusar o futuro inevitável e alargar o leque de escolhas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Novembro de 2011
Crónica 45/2011

A narrativa neoliberal hegemónica é simples e continua a ser repetida até à exaustão

Parece que foi no ano passado, mas foi só na semana passada. Lembram-se de quando o primeiro-ministro grego lançou a bomba de fazer um referendo nacional para votar o pacote de empréstimo-austeridade da troika? Quando ouvi a notícia, lancei-me na Internet para tentar perceber de que forma este novo dado alterava a situação. Queria saber as consequências do anúncio a nível interno, como as coisas se poderiam processar se o referendo fosse avante, as consequências internas e europeias deste ou daquele resultado, qual poderia ser a estratégia de Papandreou se isto não fosse apenas um bluff para forçar a mão da Nova Democracia (como parecia ser), etc.

Mas, espantosamente, nos primeiros dois dias, as reacções eram extremamente pobres em conteúdo. Claro que havia indignação dos eurocratas perante a ingratidão de Papandreou, nervosismo “dos mercados” e cotações a cair, declarações de porta-vozes do mundo da finança que diziam que a democracia era um luxo a que apenas os países sem dívidas se podiam dar e que a ideia de fazer um referendo era absurda. Mas não havia análises de especialistas, comentários de observadores imparciais, posições de investigadores da ciência política ou da economia, nem sequer reacções de políticos que fossem além de uma reacção de comadres do género “Ora não querem lá ver o atrevimento!”

Acontece que eu queria mesmo perceber o que estava a acontecer e perdi umas boas horas a ler artigos em blogs e jornais mas com um saldo diminuto. Mais uma vez, aquilo a que assistimos foi à absoluta hegemonia de uma narrativa neoliberal e à ausência de perspectivas alternativas. Uma hegemonia tão absoluta que nem sequer valia a pena aos neoliberais fazer um esforço para argumentar que fosse além do comentário de comadres.

Na narrativa neoliberal as coisas são simples: gastámos de mais, a culpa é nossa e é preciso pagar em dinheiro e contrição. Quem nos empresta é nosso amo e devemos-lhe a nossa alma, uma libra de carne viva e a suspensão da democracia. Precisamos de menos serviços públicos para gastar menos, de privatizações porque o Estado precisa de dinheiro e não sabe gerir, de mais desemprego para poder baixar salários e de reduzir as regalias dos pobres porque incentivam a preguiça. Depois, se fizermos isso tudo, os deuses apiedam-se de nós, as empresas começam a ganhar dinheiro a sério e recomeçam a contratar trabalhadores e podemos viver um bocadinho melhor - mas não tão bem como antes, nem com tanta educação e saúde pública porque era um desperdício. No fim, os serviços públicos ficam reduzidos à sua ínfima expressão e os ricos podem viver felizes para sempre. E não há nenhuma injustiça social nisto porque se um pobre quiser ser rico só tem de trabalhar muito e pronto.

Que haja quem conte esta história, percebe-se. Ela serve os interesses de um grupo determinado. Mas que ela se tenha transformado na única narrativa não é aceitável. Uma explicação simplista diz que os media estão comprados e, por isso, apenas entrevistam políticos de direita, eurocratas, corretores da Bolsa, administradores de bancos, conselheiros de investimentos, comentadores que pensam como corretores e empresários que agem como especuladores. De vez em quando, é claro que lá aparece um comentário de Francisco Louçã, de José Castro Caldas, de José Reis ou de João Ferreira do Amaral, mas é sempre como contraponto isolado a uma maré de comentários de homens pragmáticos que estão habituados a ter na mão as rédeas do mundo, como se comprova pelo corte superior dos seus fatos. Será estranho que essa narrativa se torne hegemónica? 

Para mais, quando se referem os críticos deste discurso, os media também nos mostram uns hippies insatisfeitos acampados um pouco por todo o mundo, quando não uns violentos manifestantes gregos que incendeiam coisas. Será de estranhar que nos pareça haver mais senso no discurso daquele senhor de gravata elegante? Afinal em que mundo queremos viver? No daquele embuçado que atira pedras aos polícias ou no do senhor da gravata?

E, no entanto… verificamos que, à parte os eurocratas neoliberais e os corretores, os banqueiros e os outros que lucram com a austeridade e com o desemprego, os mais reputados economistas do mundo explicam há anos que a austeridade não é uma solução, os mais eminentes politólogos mostram que existe uma distribuição injusta dos rendimentos, os mais respeitados pensadores defendem que a desigualdade reinante é imoral, os mais sérios historiadores descrevem os efeitos perniciosos da desregulação dos mercados. Ou seja: não é que a narrativa alternativa não exista. Não é que ela não tenha porta-vozes respeitados. É que ela não é defendida por estes com o vigor e a inspiração que as suas ideias exige. O que acontece é que os senhores das gravatas elegantes estão sempre mais disponíveis para falar do que os outros e não se importam de ser tão catastrofistas quanto necessário.

Do que precisamos é que o mundo académico e intelectual em geral se envolva de forma empenhada no actual debate político e económico, sem medo de correr riscos e de “sujar as mãos” (para usar uma expressão lançada há dias por um dirigente da igreja católica), de forma que nós, os cidadãos, possamos ter uma ideia clara do que está em jogo e, principalmente, possamos decidir se o mundo para onde este caminho “inevitável” nos leva, é aquele onde queremos viver.

Quando o futuro não se pode escolher, vive-se em ditadura. Democracia significa poder escolher e é responsabilidade dos intelectuais ajudar-nos a alargar o nosso leque de escolhas. (jvmalheiros@gmail.com)

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