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terça-feira, novembro 25, 2014

Os pobres já não são necessários - Conferência O Fim das Possibilidades?

Comunicação apresentada por José Vítor Malheiros no Teatro Nacional de S. João, no Porto, no dia 25 de Novembro de 2014, no âmbito da Conferência O Fim das Possibilidades? integrada no Projecto Fórum do Futuro 2014.
Esta comunicação teve como ponto de partida a leitura da peça de teatro "O Fim das Possibilidades" de Jean-Pierre Sarrazac.


Houve uma altura em que os pobres eram necessários.
Os escravos eram necessários na Antiguidade.
Os operários eram necessários na Revolução Industrial.
Quando eu era pequeno ainda eram precisos muitos trabalhadores agrícolas, pescadores, mineiros, operários, artesãos diversos, vendedores ambulantes, ardinas, moços de fretes.
Houve uma altura em que os proletários faziam funcionar a economia e havia pelo menos que os manter vivos e dar-lhes condições para produzir novos proletariozinhos. 
O drama da actualidade é que os pobres deixaram de ser necessários.
Hoje, as máquinas-ferramentas, os robôs e os computadores substituem dezenas de operários. Actividades que eram industriais há uma geração tornaram-se serviços e os seus operários tornaram-se empregados de escritório e técnicos.
É verdade que se trata de pessoas com mais formação e mais bem pagas que os operários de antes. O problema são os números.
Os cargueiros de duzentos marinheiros foram substituídos por gigantescos porta-contentores de 400 metros com vinte marinheiros, as propriedades agrícolas de mil jornaleiros foram substituídas por quintas mecanizadas com trinta trabalhadores especializados.
Hoje, os pobres já não são necessários como mão-de-obra barata. Ou, pelo menos, já não são precisos tantos pobres como dantes. Os pobres tornaram-se verdadeiramente supranumerários. E é por isso que as sociedades industrializadas, modernas, estão cada vez menos preocupadas com o futuro dos seus pobres, depois de três ou quatro gerações em que o combate à pobreza e às desigualdades parecia central para todas as forças políticas e averbou importantes vitórias.

Quando se fala nisto, na verdadeira política eugenista para a qual as nossas sociedades modernas vão deslizando, onde os velhos são relegados para um estatuto infra-humano de solidão e abandono, onde os doentes pobres têm de racionar medicamentos vitais para poder comer, onde os sem-abrigo são escorraçados das cidades e o seu sono nos umbrais das portas é criminalizado, onde há cada vez mais desempregados sem apoios de nenhum tipo e sem qualquer esperança de voltar a encontrar trabalho, há sempre alguém que nos diz que exageramos, que as coisas não são assim tão más, que uns talvez mas a maioria não sofre tanto assim, que as redes de solidariedade informais e a família tradicional resolvem muitos destes problemas, etc.
Há de facto muitas pessoas bem-intencionadas que pensam isso. Que, de alguma forma, as coisas estão melhor, que a economia está a recuperar, que estamos a recuperar um equilíbrio, talvez uns furos abaixo daquilo a que estávamos habituados, mas um equilíbrio, apesar de tudo.
Mas, se vemos menos pessoas desesperadas à nossa volta, isso não significa que haja menos pessoas desesperadas. Significa apenas que elas já não estão à nossa volta. Significa que elas foram deslizando pelo caminho que leva ao inferno, esse caminho de que nos fala Jean-Pierre Sarrazac em "O Fim das Possibilidades".

Os números dizem-nos que essas pessoas existem. Dizem-nos que em Portugal há um milhão de pessoas sem trabalho, dizem-nos que as pessoas que têm trabalho ganham menos salário que há uns anos, dizem-nos que há mais trabalho precário, que o fosso entre a situação laboral dos homens e das mulheres se aprofundou, dizem-nos que a vida dos velhos que vivem sós se tornou desesperada, que a vida das mães solteiras se tornou uma angústia constante, que o número de crianças pobres não pára de aumentar. Se o sentimos menos no nosso dia-a-dia, isso deve-se apenas ao ostracismo a que fomos votando os pobres e os humilhados e à vergonha que eles sentem pela sua própria pobreza.
Os sem-trabalho, os sem-formação, os sem-dinheiro, os sem-saúde, os sem-abrigo, os sem-papéis, os sem-voz, os sem-vida, os sem-cara, os sem-nome, os despojados escondem-se.
Estão fora do mercado, fora da sociedade, fora do mundo, fora da política.
Mas o abandono a que os votamos não se deve à sua invisibilidade mas ao nosso próprio medo. O medo da contaminação. De que pensem que somos como eles. O medo de um dia deslizar para o seu buraco negro. Preferimos ignorá-los, fingir que não existem, da mesma maneira que gostamos de comer bifes mas não queremos pensar nos matadouros. Ignorância voluntária. Não queremos assumir a responsabilidade pela sua existência.

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A desigualdade não forma um continuum, dos mais ricos aos mais pobres. Funciona por patamares. E alguns desses patamares estão a anos-luz do patamar contíguo, a uma distância intransponível. Os danados da terra, na sua jornada infernal, não estão ao lado dos beneficiários do salário mínimo, nem dos precários dos call centers.
Estão já noutro mundo, num mundo sem retorno, de onde a sua vida já não os pode resgatar e de onde a sociedade não os quer resgatar. Prefere esquecê-los.
Uma das coisas mais tristes que ouvi na minha vida foi um político dizer estas palavras: "O Rendimento Social de Inserção é a causa politicamente mais impopular que existe."
Os pobres odeiam que se ajudem os que são mais pobres do que eles.
É o resultado da nossa cultura de escassez, da nossa familiaridade com a fome. Sabemo-lo bem, mas é triste.

Os danados da terra escondem-se dos ricos e escondem-se dos pobres. Escondem-se de si mesmos. Os apoios sociais não os cobrem. A saúde não os protege. A educação não investe neles. Só queremos esquecê-los. As ditaduras do século XX aniquilavam fisicamente estes infra-humanos. Os nossos governos, Satãs modernizados, não se atrevem a matá-los mas empurram-nos para um canto escuro e esperam que morram.
Às vezes, os governos dão um passo para além disso. Há dias, a ministra da saúde da Lituânia, dizia que, como a Lituânia não era um estado social e os doentes mais pobres não tinham recursos para pagar cuidados paliativos, deviam considerar a eutanásia como solução, para não ter de submeter às suas famílias ao espectáculo do seu sofrimento.
Isto aconteceu agora, num país da União Europeia. Este discurso anda de novo por aí. Insensivelmente, aproximamo-nos do Inferno.

Nós, delicadamente, fechamos os olhos e racionalizamos a desaparição dos mais frágeis, repetimos as explicações que nos deram. Dizemos nós também que de facto o Estado Social não pode fazer tudo, que não há dinheiro suficiente, que o mercado de trabalho não pode absorver pessoas sem qualificações, que se compensarmos os desempregados os trabalhadores não verão nenhum incentivo para trabalhar...
Mas como racionalizamos crianças com fome? Crianças como os nossos filhos, que seriam os nossos filhos se tivessem nascido nos nossos berços, com fome?
Como? Empurrando-as pelo declive lamacento que leva ao inferno do nosso esquecimento, empurrando-as para aquela massa fétida de recordações recalcadas que é o nosso inferno pessoal, que não queremos visitar. Fazendo o possível por não as ver. Esquecendo-as. Transformando-as numa estatística. Como podemos suportar um Governo que não escolhe as crianças, todas as crianças, como a sua prioridade? Como podemos suportar um governo que não escolhe matar a fome das crianças, de todas as crianças, como a sua prioridade?
Suportamo-lo, mas não conseguimos explicar porquê.

A sociedade crescentemente dual em que vivemos não é apenas dual. É trina.
Temos os ricos, que têm tudo; os obreiros, que ainda têm trabalho e têm esperança; e os sub-humanos, que não têm nada, nem sequer a esperança. Estes não estão aqui, neste teatro.
Um Paraíso, um Purgatório e um Inferno.
Uma Trindade maléfica.
Porque é que os condenados não se revoltam no seu Inferno?
Porque foram despojados até disso, da sua dignidade, do seu desejo. Os condenados aguentam. Não é possível revoltar-se no fundo de um poço. Apenas se podem gastar as últimas forças a tentar escalar a parede, sem êxito. Não se pode enfrentar o que não está à nossa frente.
E quem está no Purgatório não quer correr o risco de perder o que tem, pouco ou muito. Prefere continuar a sonhar com a ascensão ao Paraíso, por improvável que seja. Prefere espreitá-lo por uma frincha, nas páginas de uma revista, num programa de televisão, na esperança do EuroMilhões.
Além de que nos garantiram de que a revolta e a violência nada resolvem. Garantiram-nos que a violência é errada, que vivemos num Estado de Direito que respeita o Primado da Lei e que a Lei é feita por todos nós, como se faz numa democracia.
Se há uma anomalia (e o poder concede que talvez haja) ela vai ser certamente corrigida, nas próximas eleições, no próximo Governo, na próxima Lei, no próximo ano. A não ser que não haja anomalia nenhuma e o sistema seja perfeito e a responsabilidade pela situação destas pessoas seja delas mesmo.

Satã repete-nos tudo isto ao ouvido, incansavelmente. Repete-nos que não devemos ser parvos, que não devemos deitar a perder tudo o que ganhámos, que não devemos preocupar-nos com pessoas que não nos são nada, pessoas ignorantes e brutas, sujas e piolhosas, diz-nos que, de qualquer maneira, é difícil alterar estas coisas, que já há muita gente melhor que nós a tentar fazê-lo há anos sem grandes resultados e acaba por sugerir que, se nos sentimos assim tão mal por haver pobres, podemos ir ao Teatro Nacional S. João apresentar uma comunicação para aliviar essa angústia. Os pobres vão ficar na mesma, mas nós vamos sentir-nos melhor.

José Vítor Malheiros

terça-feira, novembro 01, 2011

A ideia eugenista do capitalismo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Novembro de 2011
Crónica 44/2011

Mesmo sem uma solução chave na mão para substituir o capitalismo, é essencial combater as suas indignidades e os seus crimes

Nestes tempos onde os malefícios do capitalismo financeiro e a falta de escrúpulos da oligarquia económica e política se tornaram evidentes, com o seu rasto de miséria e acumulação obscena de lucros, é frequente ouvirmos repetir slogans contra o capitalismo.
O “fim do capitalismo” surge como uma evidência até nas conferências de insuspeitos conservadores, ainda que matizado pela adenda “tal como o conhecemos” ou algo semelhante. Mas que existe uma crise não apenas financeira e não apenas conjuntural, que é do próprio capitalismo, é algo que ninguém de boa fé pode deixar de ver.
Pela minha parte, nunca defendi a destruição do capitalismo pela simples razão de que nunca tive uma noção clara do que poria no seu lugar – sendo certo que certas opções me pareciam moralmente inaceitáveis, economicamente ineficazes ou politicamente perversas ou tudo isso ao mesmo tempo.
Simpatizo com a ideia de mercado e de concorrência. Gosto de pensar que, se dois produtores vão vender maçãs ao mercado, o que tiver melhores maçãs ou o que tiver melhores preços terá mais sucesso que o outro, com o consequente benefício para a sociedade. Mas sempre me pareceu evidente que nem tudo deve ser decidido pelo mercado, que existem bens que devem ser disponibilizados a todos pela comunidade, independentemente de os seus beneficiários os poderem ou não comprar, porque o seu usufruto é a condição de uma vida digna. E nunca me pareceu aceitável que, em nome da concorrência, o produtor das melhores maçãs condenasse o seu concorrente à miséria e à fome. E, já agora, sempre me pareceu injusto que o sistema – fazendo jus ao seu nome mas contrariando as regras da competição – permitisse que quem dispunha de mais capital, mesmo que produzisse as piores maçãs, encontrasse forma de as vender mais depressa e mais caras que o seu concorrente.
Na minha simpatia pelo mercado, curiosamente ou não, sempre me senti a milhas de distância dos “defensores do mercado” que, principalmente quando são empresários, sonham acima de tudo em encontrar formas de pôr fim à concorrência, em tentar impor um monopólio, em garantir um mercado protegido, em negociar um cartel, em escamotear a informação de que os clientes necessitam para fazer escolhas ou a usar de outros truques para contornar as regras do mercado.
Posto isto, é evidente que existe um limite para além do qual a concorrência é indesejável. Em que o seu império acaba por destruir o tecido em que assenta a vida em sociedade.
É por isso que, apesar de não ter uma solução chave na mão para substituir o capitalismo, sempre me pareceu essencial combater as suas indignidades e os seus crimes. Se, uma vez corrigidos esses erros, no final tivermos algo que não se chama capitalismo, isso é para mim relativamente indiferente – ainda que fizesse sentido que se chamasse outra coisa e que essa outra coisa fosse socialismo. Mas o que é fundamental é o que o sistema faz – o que faz e permite às pessoas – e não como se chama.
De todos os seus erros e crimes, há algo que o capitalismo fez às pessoas que não pode deixar de ser identificado como um mal nuclear: o facto de nos ter imposto a ideia de que não só os produtos e os serviços mas também as pessoas devem concorrer entre si e que, os que perderem, devem ser descartados, excluídos e punidos. Não por maldade, mas em nome da qualidade. Em nome da produtividade e da eficiência. Em nome da selecção dos melhores.
Esta ideia, eugenista por excelência, tecnocrata por excelência (tecnocrata é, simplesmente, anti-humanista) está na base da destruição da solidariedade que hoje, meticulosamente, temos de voltar a tecer, fio a fio. (jvmalheiros@gmail.com)