terça-feira, janeiro 25, 2011

A grande festa da democracia

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 25 de Janeiro de 2011
Crónica 4/2011
 
Da alegria de ter Aníbal Cavaco Silva como Presidente da República Portuguesa

Agora que já tudo acabou, é tempo de fazer o balanço. E é preciso sublinhar que o balanço não pode deixar de ser considerado positivo.
Como já é habitual, esta eleição, muito personalizada, contou com um escol de candidatos que, apesar das naturais diferenças ideológicas, de estilo e de percurso, possuíam em comum um inegável leque de competências políticas e éticas. Todos ofereciam garantias de exercício de uma presidência empenhada no reforço da democracia e na redução das desigualdades, no desenvolvimento económico e no combate à corrupção. Foi reconfortante, mesmo antes das eleições, poder ter esta certeza de que, ganhasse quem ganhasse, o próximo mandato presidencial seria exercido de forma sensata e independente, seria um exemplo de um magistério equilibrado, de uma relação de lealdade e exigência com o Governo e os partidos, de uma estimulante intermediação com a sociedade civil e de uma irrepreensível probidade republicana. Mais do que isso, foi tranquilizador constatar que o candidato favorito era alvo, para além das normais críticas do combate político, de um indisfarçável respeito por parte dos seus adversários. Respeito pelo político, mas também pela pessoa. O seu brilhantismo intelectual, a sua lealdade na arena política, a sua visão estratégica, a sua integridade como cidadão foram referências sempre presentes ao longo da campanha e forneceram a todos os eleitores uma sólida confiança no futuro do país, apesar do quadro recessivo e das dificuldades que quase todos encaram.
A campanha constituiu um exemplo de envolvimento cívico e, se não permitiu um esclarecimento perfeito dos eleitores, pelo menos proporcionou interessantes debates sobre a actual situação política e as opções que se abrem aos portugueses. Particularmente importante foi a forma como cada candidato pôde explicar, sem demagogias nem azedume, de que forma iria utilizar a reduzida panóplia de instrumentos políticos do Presidente da República em prol do bem-estar dos portugueses. Surgiram neste debate pérolas de sabedoria e imaginação que são uma inspiração para todos os cidadãos e todos os candidatos.
Foi digna de nota a frontalidade e a disponibilidade com que o actual Presidente e candidato respondeu a todas as questões que surgiram na campanha, muitas das quais objectivamente incómodas e desagradáveis, a transparência com que facilitou toda a informação e satisfez todas as perguntas e, de uma forma geral, o seu empenho em não deixar qualquer dúvida nos espíritos dos eleitores. Particularmente notável foi a sua declaração de que “ninguém está acima da lei: nem os candidatos, nem o presidente” e o seu fair-play ao afirmar que “as campanhas servem precisamente para questionar os candidatos e para esclarecer as dúvidas que possam surgir no espírito dos cidadãos”. Notável também a sua réplica “A imprensa? a imprensa faz o seu papel, que é fundamental numa democracia”.
A eleição contou, como se esperava, com uma afluência recorde às urnas, que já se tornou habitual na grande festa da democracia.
Raras vezes se terá ouvido um discurso de vitória tão elegante como aquele que Cavaco Silva pronunciou na noite das eleições. O presidente-em-exercício-e-presidente-eleito minimizou qualquer acrimónia que pudesse ter emergido durante o confronto eleitoral, cumprimentou os seus adversários e afirmou-se como garante da unidade nacional, acima da trica politiqueira e empenhado numa profícua colaboração institucional entre todos os protagonistas políticos. Soube-se depois que o presidente-eleito conta reunir todos os candidatos num jantar, que oferecerá uma semana depois da sua tomada de posse. O gesto é inédito, mas não surpreende. Cavaco Silva é, acima de tudo, um gentleman.
Em tudo isto, há apenas um senão: o facto de esta ser a única frase verdadeira de todo este texto. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, janeiro 20, 2011

As pensões e Cavaco Silva (Facebook)

Por José Vítor Malheiros
É uma vergonha que uma pessoa capaz de trabalhar e que está efectivamente a trabalhar receba uma pensão do Estado. É uma vergonha que o Presidente da República, para ganhar mais uns cobres, prescinda do seu salário e aceite ser pago pela Segurança Social – cujo objectivo social não é proporcionar uma vida de conforto suplementar a quem pode trabalhar, a quem trabalha de facto e a quem pode auferir um excelente salário, mas sim suavizar as dificuldades da vida de quem não pode trabalhar ou não tem trabalho.

Este opção de Cavaco Silva, no quadro de dificuldades que vive a Segurança Social e no quadro de austeridade que se abate sobre os portugueses mais pobres, é vergonhosa.
Esta opção de Cavaco Silva, após as suas palavras de comiseração sobre as condições de vida dos mais sacrificados e sobre a vergonha que os portugueses deviam sentir pelo facto de ainda haver pobres no nosso país, é incoerente e indigna. Ela revela a atitude demagógica e a insensibilidade social do candidato-Presidente.

Como a lei actual proíbe a acumulação de pensões (do Estado) com salários do Estado e obriga a escolher entre as duas, Cavaco tem o dever de escolher e o direito de escolher o que lhe convier mais. A sua escolha é, por isso, legal. Mas é imoral porque a lei é imoral – e não foi feita a pensar neste caso extremo.

Alguns princípios

Quem trabalha deve auferir um salário. E quem já não pode trabalhar (por doença, incapacidade, velhice) deve auferir uma pensão. O direito a auferir uma pensão (parcial ou por inteiro) devia ser efectivo apenas quando se atingisse a idade de reforma (65 anos).
Não tenho nada contra o facto de um cidadão adquirir o direito a auferir de uma pensão por inteiro apenas depois de oito anos de trabalho político como deputado ou ministro, por exemplo. Podemos considerar que esse trabalho é um serviço tão relevante que se presta à República que merece essa compensação. Mas esse direito, mesmo conquistado e inalienável, devia ser efectivo apenas ao chegar aos 65 anos.

O racional da ideia da reforma após oito ou doze anos de serviços prestados não é permitir “arredondar o fim do mês” aos ex-políticos que o podem assim acumular com os salários que continuam a receber. Visa, sim, garantir uma velhice condigna a quem prestou serviços relevantes à comunidade durante um certo período da sua vida, ainda que, para além disso, não tenha feito qualquer outro trabalho que garanta uma reforma.

É por isso uma vergonha que pessoas capazes, física e intelectualmente, que trabalham de facto e que auferem por isso os seus salários, possam acumular pensões com esses salários.
É vergonhoso que haja pensionistas a receber reformas aos 50 anos e que continuam a trabalhar e a auferir cumulativamente salários por vezes substanciais. Será legal, mas é vergonhoso. Estas pessoas vampirizam a Segurança Social e roubam-lhe os meios de que ela necessitaria para acudir aos mais necessitados.

As pensões devem ser pagas apenas a pessoas incapazes de trabalhar ou que ultrapassaram o limite de idade.

E o que acontece se uma pessoa com mais de 65 anos, que possui uma reforma, quiser trabalhar e encontrar de facto trabalho? Deve poder acumular pensão e salário?
Pelo meu lado, defendo que deve ser possível acumular salário (público ou privado) e pensão, mas com algumas limitações. (Actualmente, a acumulação de salário público e pensão não é permitida, mas é permitida a acumulação de salário privado e pensão.) Seria um desperdício, uma perda para o indivíduo e para a sociedade, não aproveitar o trabalho de alguém que possui capacidades, que possui energia para trabalhar e que o mercado de trabalho está disposto a pagar. E não permitir alguma acumulação desincentivaria esta possibilidade.

Mas essa acumulação devia ser feita segundo uma fórmula que protegesse os interesses da Segurança Social e que garantisse o máximo de equidade (ou o mínimo de desequilíbrios) no tratamento dos cidadãos, sem por isso nivelar por baixo os rendimentos.
Defendo que a acumulação de salário com pensão deveria ser possível desde que a sua soma não ultrapassasse o salário de Presidente da República – que tomo aqui como a referência máxima. E, quando a soma ultrapassasse esse valor, deveria ser o salário (público ou privado) a ser pago por inteiro e a pensão a ser reduzida na medida necessária – de acordo com um critério de protecção da situação financeira da Segurança Social.
E quem, tendo atingido a idade de reforma e sendo pensionista, tivesse possibilidade de ganhar um salário milionário no sector privado? Claro que deveria poder fazê-lo, bastando-lhe para isso prescindir (totalmente) da sua pensão enquanto estivesse a trabalhar.

Considero igualmente vergonhoso o sistema de acumulação de pensões. Um sistema que permite que Cavaco Silva, por exemplo, aufira três pensões (como ex-professor universitário, como ex-funcionário do Banco de Portugal e como ex-primeiro-ministro – durante o mandato anterior teve de prescindir da terceira, mas não das duas primeiras) cujo valor total excede largamente o ordenado de Presidente da República. O Estado não deve pagar a ninguém uma pensão superior ao ordenado de Presidente da República. E, se pagar várias pensões, o seu valor total não deve poder exceder o ordenado de Presidente da República.

Em resumo

É imoral que um cidadão apto para trabalhar receba uma pensão antes de ter atingido o limite de idade. É duplamente imoral que acumule essa pensão, recebida ilegitimamente, com um salário – seja ele público ou privado.

A totalidade das pensões de que um qualquer cidadão aufere não devia exceder o ordenado de Presidente da República. É imoral que as pensões de Cavaco Silva excedam esse limite. É vergonhoso que Cavaco Silva sempre as tenha recebido e que nunca tenha suscitado a imoralidade dessa situação.

A acumulação de pensões e de salários (públicos ou privados) não devia exceder o ordenado de Presidente da República. É imoral que as pensões + salário de PR de Cavaco Silva tenham sempre excedido esse limite. É vergonhoso que Cavaco Silva tenha recebido umas e outro sem nunca ter suscitado a imoralidade dessa situação.

A limitação ao ordenado de Presidente da República, no caso de acumulação de salários e pensões que excedessem aquele valor, deve ser feita através de uma redução da pensão (ou pensões) e não do salário.

No caso concreto de Cavaco Silva, é imoral que a sua escolha (imposta por lei) entre pensões e salário tenha sido feita tendo como critério a maximização da sua receita e não um critério de máxima adequação da sua situação remuneratório à sua situação real. A questão é: Cavaco Silva “é mais” Presidente da República ou “é mais” pensionista? É evidente que “é mais” PR, mas declarar-se pensionista rende mais.

Não tem qualquer sentido, em termos políticos, que Cavaco Silva tenha reivindicado para si o estatuto de pensionista em termos remuneratórios, mas que reivindique o estatuto de PR em todas as outras instâncias.

terça-feira, janeiro 18, 2011

Circo e circo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 18 de Janeiro de 2011
Crónica 3/2011
 
Um assassino sem culpa, uma vítima pecaminosa, um Presidente que não responde e um candidato-trotineta

1. Depois de um assassinato brutal de uma figura mediática, com sinais de um sadismo pouco habitual, é natural que haja alguma comoção pública e manifestações colectivas de repulsa. Não é de estranhar que se verifique uma cerimónia pública de solidariedade, que haja lágrimas e exaltação, palavras de encorajamento para a família e que se guarde aí um minuto de silêncio. O que é estranho é que tudo isto aconteça para manifestar a solidariedade com o assassino confesso, entretanto detido, e não com a vítima.
Repare-se que a solidariedade que se manifesta ao presumível assassino e à sua família não se deve ao facto de a comunidade em questão acreditar firmemente na inocência de Renato Seabra.

Seria admissível que aqueles que conhecessem este jovem de 21 anos - que todos retratam como um rapaz educado, calmo, de bom trato, trabalhador, bom jogador de basquetebol, estudante responsável e amigo da sua mãe - considerassem impossível que ele tivesse cometido o crime horrível de que é acusado e se inclinassem para um gigantesco erro judiciário, uma confusão de identidade ou uma conspiração urdida pela polícia nova-iorquina. Ou que se tivessem reunido em sua defesa por o assassino confesso ter sido objecto de sevícias ou impedido de se defender, ou tivesse sido objecto de qualquer outro atentado aos seus direitos.

Mas não se trata disso. A solidariedade manifestada a Renato Seabra pelos seus conterrâneos - e por muitas centenas de cidadãos anónimos na Web - manifesta-se na convicção de que ele terá de facto cometido o crime que já confessou, mas de que, se o fez, foi porque "tinha uma razão muito forte".

Se alguém duvidava da violência do sentimento homofóbico que reina na nossa sociedade, aí tem uma prova. O jovem de 21 anos terá sido assediado-tentado-seduzido-violado (conforme os gostos) pelo velho libidinoso de 65 anos e não terá encontrado outra forma de se defender senão agredir o atacante com um computador, estrangulá-lo, apunhalá-lo durante uma hora, furar-lhe os olhos e castrá-lo. É que o homossexual, como se sabe, é muito insistente, e quando tem os seus acessos lúbricos a sua força fica multiplicada por dez. Às vezes chega a ser preciso apunhalá-los durante duas horas para que se acalmem.

Além de ser muito insistente, o homossexual também é muito traiçoeiro. Daí que o jovem tenha sido surpreendido pelos avanços de Carlos Castro quando, depois de dez dias a dormir juntos no seu quarto de Nova Iorque, este terá tentado um contacto mais íntimo. Como se vê, o assassino tinha não só razão, mas "uma razão muito forte": Carlos Castro era gay.

2. A campanha presidencial prossegue, com a curiosa novidade de incluir como os dois principais contendores o candidato da oposição de direita, Cavaco Silva, e aquele que, numa eventual segunda volta, será o candidato da oposição de esquerda. Manuel Alegre navega em torno desta contradição, como sempre fez, usando a táctica da trotineta, com um pé dentro e um pé fora do PS, garantindo que, se for eleito, defenderá o Estado social que o PS tem tentado fazer minguar e que o PSD quer destruir.

Cavaco Silva continua a jurar a sua própria honestidade (nunca ninguém lhe terá dito que a honestidade não se declara? Será verdade que Cavaco Silva estava escondido atrás de uma pedra quando Deus distribuiu o bom senso?) ao mesmo tempo que não responde às perguntas que poderiam esclarecer-nos sobre a sua honestidade, com a mais descarada das arrogâncias. Como Cavaco não brilha pela agilidade de espírito, o silêncio mata dois coelhos de uma cajadada: evita respostas entarameladas às perguntas incómodas e dá-lhe aquela aura autoritária de que gosta cerca de 50 por cento do eleitorado. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 11, 2011

Wikipédia, a biblioteca que toda a gente usa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 11 de Janeiro de 2011
Crónica 2/2011

A ferramenta existe e o público usa-a. Falta que as elites portuguesas façam a sua parte

Estive há uns meses num jantar onde muitos dos convivas eram professores e onde, às tantas, se começou a falar da Wikipédia. O tom geral era um lamento do tipo “agora-os-estudantes-copiam-tudo-da-Wikipedia-e-os-trabalhos-só-têm-disparates”. Depois de algumas perguntas, percebi que a esmagadora maioria dos presentes nunca tinha sequer consultado a Wikipédia, mas sabia que era uma enciclopédia online onde toda a gente podia escrever e concluía por esse facto que se tratava da mais monumental colecção de disparates jamais coligida pelo espírito humano, uma espécie de anti-Cristo do saber, uma mancha negra com que o Maligno estava a inundar a Internet e da qual era preciso proteger os jovens espíritos maleáveis.

Esta ideia persiste ainda em muitos espíritos e, curiosamente, em particular no meio dos professores, que combatem infrutiferamente a epidemia de cópias “da Internet” nos trabalhos escolares de todos os graus de ensino.

A verdade, porém, tem outras facetas. E uma delas é que a Wikipédia é um instrumento cuja qualidade média é elevada – muito boa ou excelente em muitos casos – e que constitui um salto na promoção e na difusão do saber comparável apenas à construção da biblioteca de Alexandria, ao movimento dos Encyclopédistes ou à Escola Republicana.

A Wikipédia, que comemora dez anos esta semana, tornou-se uma funcionalidade central da Internet – tanto como o Google, mas com a diferença de que há outros motores de pesquisa equivalentes e não há outra Wikipédia. Hoje em dia, a maior parte das pesquisas que fazemos na Internet tem uma entrada da Wikipédia no topo dos resultados. E há centenas de milhões de utilizadores que a utilizam regularmente.

Que haja uma biblioteca que tenha este êxito, que milhões de pessoas se habituaram a consultar diariamente, para tirar dúvidas de trabalho, para satisfazer curiosidades fúteis, para saber mais, devia ser visto como uma felicidade. Que esta biblioteca esteja em cima de tantas mesas 24/7 e que seja gratuita, devia ser visto como uma bênção.

É evidente que existem cuidados a ter no uso da Wikipédia e que, como qualquer outra ferramenta, é preciso conhecer as suas limitações, mas o principal problema com a Wikipédia em português é que muitos criticam mas poucos trabalham para a melhorar.

É que, quando digo que a Wikipédia é excelente estou a falar da Wikipédia em geral e da Wikipédia em língua inglesa em particular – mas a Wikipédia em português é fraquinha. Só que a responsabilidade disso é… exactamente dos mesmos profissionais que se queixam da sua falta de qualidade. Dos professores, dos cientistas, dos jornalistas, dos médicos, dos advogados, das universidades, das outras escolas, das organizações profissionais.
 
Na era da Internet, quando a Wikipédia se transformou numa ferramenta de acesso universal à informação de todos os tipos, de uma forma simples e democrática, não é aceitável que haja tanto saber produzido por dinheiros públicos que não seja vertido pelo menos em parte para estas páginas – onde pode ser encontrado, acedido, usado e enriquecido por todos. Seria normal que as escolas de todos os graus de ensino (com destaque para o ensino superior), os institutos públicos e as instituições de investigação portuguesas fossem contribuintes regulares da Wikipédia – como acontece nos Estados Unidos. Seria normal que escrever uma entrada para a Wikipédia fosse um projecto comum nas universidades portuguesas. Mas não é. A ferramenta já existe, o público já a usa. Só falta que as elites se disponham a fazer a sua parte para melhorar o que existe, em vez de se remeterem à crítica sobranceira e distante. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 04, 2011

A Hungria, a Ensitel e a liberdade de expressão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 4 de Janeiro de 2011
Crónica 1/2011
 
2011 vai ser o ano em que vai ser preciso continuar a defender as liberdades. E os outros também

1. É tristemente irónico que a União Europeia entre em mais este ano da crise de 2011 sob a presidência de um país cujo Governo acaba de limitar de forma drástica a liberdade de imprensa. É como se os deuses nos quisessem forçar a encarar o facto de que nada está garantido no domínio das liberdades, que a União Europeia não é um porto de abrigo para ninguém e que a coberto do combate à crise ou da procura de maior efi ciência todos os atropelos aos direitos dos cidadãos serão permitidos – da mesma forma que continuam a ser permitidos todos os atropelos feitos a coberto do combate ao terrorismo.

É triste que, perante uma lei que parece saída dos anos 30 do século passado, tudo o que a UE e os seus Estadosmembros possam fazer seja exprimir o seu desejo de que a Hungria esclareça “as dúvidas” que se levantam a propósito desta lei. É que a lei não oferece muitas dúvidas.

Entre outros mimos, o diploma permite que qualquer órgão de comunicação seja multado até 700.000 euros quando aquilo que publica não estiver de acordo com a defesa do “interesse público, da moral pública ou da ordem pública”. Ou quando publicar histórias que refi - ram sexo, violência ou álcool (?) de forma imprópria. Ou quando fi zerem uma cobertura desequilibrada da actualidade. Quem decide o que é próprio? Quem decide o que é equilibrado? Um grupo de cavalheiros nomeados pelo partido do poder.

E não se trata apenas de um excesso de zelo de um deputado neo ou velho-fascista: o Governo de Viktor Orban já tornou claro em vários casos que a sua intenção é mostrar aos jornalistas quem manda e que nenhuma crítica ao poder fi cará sem castigo.

Alguém imaginaria que, 150 anos depois, ainda fosse preciso explicar John Stuart Mill aos políticos e aos cidadãos europeus? Basta revisitar a recente polémica sobre a WikiLeaks para ver como a liberdade permanece frágil e furtiva, como continuamos a dever escrevê-la, ainda e sempre, sobre todas as páginas brancas e sobre as paredes.

2. Que a liberdade é algo incompreendido aprendemos também há dias através de um outro exemplo, pela acção de uma empresa que vende telemóveis e que dá pelo nome de Ensitel. A história conta-se depressa: a Ensitel vendeu em 2009 um telemóvel avariado a uma cliente, mas, quando foi confrontada com o facto, recusou-se a trocar o aparelho ou a reembolsar a cliente. A cliente, Maria João Nogueira, foi contando no seu blogue (Jonas- Nuts.com) as peripécias da reclamação junto da Ensitel, que chegaram ao Centro de Arbitragem de Confl itos de Consumo de Lisboa. Mas este também não resolveu a questão a contento da cliente, que acabou por mandar reparar o telemóvel à sua custa.

Fast forward. Antes deste Natal, Maria João Nogueira soube que tinha sido processada pela Ensitel, que a intimava a retirar do blogue os posts onde relatava a sua saga.

A Ensitel foi obrigada a recuar no processo judicial e a pedir desculpas publicamente, ainda que a contragosto, devido a uma verdadeira revolta online contra a empresa – traduzida em comentários no Facebook e no Twitter, sátiras no YouTube, páginas anti-Ensitel criadas um pouco por todo o lado – e o facto está a ser lido como uma manifestação do novo poder do consumidor na era da Internet, mas a história tem outras leituras.

De facto, que a empresa tenha uma política de qualidade algo descontraída, que tenha uma ideia original de como deve tratar os clientes, que não perceba em que consiste o valor daquilo que vende, que reaja de forma primária perante uma reclamação e que não saiba bem o que é um blogue e qual é o poder da Internet, ainda se pode compreender.

O que é mais difícil de aceitar é que a empresa tenha achado que podia usar a lei para amordaçar e intimidar um cidadão apenas porque não gostava do que ele dizia.

A história da Ensitel mostra, à sua pequena escala, que é possível defender as liberdades. O que nos contará a história da Hungria? (jvmalheiros@gmail.com)