quarta-feira, março 31, 2010

O problema do E-Male

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Março de 2010
Crónica 13/2010

Já repararam nos frisos de homens brancos vestidos de cinzento e azul nas mesas-redondas sobre tecnologias de informação?

O problema da representatividade dos géneros nas várias profissões não é apenas um problema de igualdade cidadã e de liberdade de acesso, ainda que estas sejam questões fundamentais. É também um problema de acesso, nas várias actividades humanas, ao reservatório nacional (e mundial) de talento.

Em termos internacionais, Portugal não está mal situado na representatividade dos géneros nas profissões científicas, com 20.000 homens e 15.000 mulheres a representar os recursos humanos dedicados à ciência e à tecnologia, dos quais 15.800 investigadores homens e 12.300 investigadores do sexo feminino (dados de 2007 em Equivalente a Tempo Integral). No entanto, a distribuição dos géneros faz-se de forma desigual e se há áreas onde já há predomínio de mulheres (nas biociências, por exemplo), existem outras que são ainda maioritariamente e às vezes esmagadoramente masculinas. A engenharia é uma destas.

A Ordem dos Engenheiros tem entre os seus membros efectivos 7523 engenheiras e 31.543 engenheiros (1 para 4) e a relação é pior em certas especialidades: se considerarmos só os engenheiros informáticos e electrotécnicos a relação é de 679 para 7620 (ou 1 para 11). Isto significa que o mundo das tecnologias de informação está dominado pelos homens, como aliás é fácil de constatar em qualquer empresa ou departamento universitário de informática ou em qualquer das reuniões científicas sobre estas áreas, sempre tristemente masculinas. As tecnologias de informação são o domínio do E-Male.

Há quem pense – como o antigo reitor da Universidade de Harvard, Lawrence Summers – que o facto se deve às menores capacidades científicas e tecnológicas das mulheres e, em particular, a uma aversão de origem uterina pela matemática, mas a ideia já não está tanto em voga como esteve (como o prova o facto de Summers ter sido forçado a demitir-se em 2006, um ano depois de ter proferido as suas inesperadas considerações sexistas) e existem inúmeras demonstrações do contrário.

O problema que existe é que – para além dos eventuais factores que estejam a limitar a liberdade de acesso das mulheres e a discriminá-las de facto –, nesta área que consideramos central para o desenvolvimento social e económico, só estamos a explorar a imaginação, as questões, as dúvidas, as abordagens e as soluções de metade das pessoas possíveis. Pior: a metade que estamos a utilizar é dramaticamente homogénea (seria menos grave se o nosso universo de escolha fosse formado por metade dos homens e metade das mulheres).

Já repararam nos frisos de homens brancos de 40 anos vestidos de cinzento e azul, que se sucedem nas mesas-redondas sobre Tecnologias de Informação e Comunicação dos nossos congressos, que um marciano tomaria facilmente por clones? A versão optimista é que o seu aspecto gráfico é igual mas as suas mentes são maravilhosamente diferentes… mas serão suficientemente diferentes?

Pessoalmente, acho que as mulheres e os homens pensam de facto de maneira diferente e a minha experiência diz-me que a riqueza criativa de grupos diversos é muito maior que a de grupos homogéneos. E criatividade e diferença é algo de que precisamos desesperadamente – principalmente numa área tão moldadora do futuro como as TIC.

Da mesma maneira que a política é uma coisa demasiado importante para ser entregue aos políticos, a tecnologia é uma coisa demasiado importante para ser entregue apenas aos homens. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 23, 2010

AR da sua graça

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 23 de Março de 2010
Crónica 12/2010

Um deputado tem de ver garantida a confidencialidade das suas comunicações, oficiais ou privadas

1. Que os computadores que a Assembleia da República entregou aos deputados são propriedade pública e estão dedicados ao serviço público é algo que ninguém põe em causa.

Que o facto de isto ser assim autorize a sua devassa em todas as circunstâncias pelos fotógrafos dos jornais acreditados no Parlamento, pelos operadores de câmara das televisões e, através deles, por todos os cidadãos portugueses, é outra coisa.

Foram muitos os comentadores que, após o queixume de José Lello sobre o “voyeurismo” e a excessiva “mobilidade” dos fotógrafos no Parlamento e o sequente remoque de Jaime Gama sobre o carácter público dos computadores usados pelos deputados, vieram regozijar-se pelo “puxão de orelhas” do presidente da Assembleia da República ao presidente do Conselho de Administração da mesma AR. No entanto, na melhor nódoa cai o pano e é evidente que Lello tem, desta vez, alguma razão.

Da mesma maneira que o computador ou as gavetas da secretária de um trabalhador de uma empresa não podem ser vasculhadas pelo seu patrão – nem por qualquer outra pessoa que não tenha uma ordem judicial expressa – têm também de existir limites para o acesso que o “patrão” dos deputados (nós, o povo) pode ter aos seus computadores. E isto porque os computadores, se são uma ferramenta de trabalho paga pelo erário público, são também – legitimamente – uma ferramenta de comunicação, de pesquisa, de escrita e de arquivo pessoais. E, mais uma vez, é perfeitamente legítimo que um deputado envie um mail pessoal do hemiciclo – da mesma maneira que é lícito que um qualquer empregado, na hora de expediente, envie um mail pessoal – desde que não passe o dia a jogar sudoku.

Se há pessoas que acham que, para garantir que o deputado não passa os dias a jogar sudoku, isso nos dá o direito de lhe vasculhar o computador, isso é lamentável. E se alguém acha que fotografar o texto de um SMS pessoal enviado por um deputado é admissível, isso é vergonhoso. A AR, se é um espaço público, como bem lembrou Jaime Gama, é também o local de trabalho dos deputados.

Para além de tudo isto, é conveniente não esquecer o facto de um deputado, no exercício da sua actividade, ter de ter garantida a confidencialidade das suas comunicações, por muito oficiais que elas sejam, quer com a sociedade em geral quer as que mantém – legitimamente, mais uma vez – com interlocutores da arena política ou no seio do seu próprio partido.

É verdade que José Lello teve, mais uma vez, aquele tique infeliz, ao sugerir que a “mobilidade” dos fotógrafos fosse reduzida, o que traz recordações de má memória, em vez de tentar resolver o problema (que existe) dialogando com a imprensa acreditada na AR e apelando ao seu bom senso e bom gosto, como ficaria bem às suas funções de administrador da casa, mas o essencial da sua mensagem é pertinente.

O que já é não pertinente nem admissível é que, para manifestar o seu desagrado pelas palavras de Gama, vários deputados do PS tenham malcriadamente decidido vingar-se no material, fechando estrondosamente (e talvez danificando) os seus computadores (que todos pagámos).

2. Se os grandes planos dos ecrãs dos computadores e dos telemóveis e das notas que um deputado tem sobre a mesa deviam ser excluídos da captação de imagem, por decisão própria dos órgãos de comunicação, o mesmo já não acontece, porém, com a indumentária dos deputados. Se é lícito que um deputado espere que as suas notas pessoais ou o seu mail esteja ao abrigo de olhares indiscretos, o mesmo já não pode acontecer com o vestuário que usa no hemiciclo – que é público e notório e relativamente ao qual não pode haver expectativa de confidencialidade. Daí que as referências de Lello aos “decotes das deputadas” não façam sentido neste contexto. As imagens oferecidas ao público neste domínio, pelos deputados e pelos media, são perfeitamente lícitas – independentemente dos juízos de gosto que se queiram fazer. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 16, 2010

Isto é um anúncio, um anúncio, anúncio, anúncio, anúncio…

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 16 de Março de 2010
Crónica 11/2010
 
A publicidade on-line terá mesmo de repetir todos os erros da publicidade noutros suportes?

Por que razão pensarão os anunciantes que a melhor maneira de fazer publicidade aos seus produtos é serrazinar até à medula os leitores e os espectadores com imagens que surgem inopinadamente à frente dos seus olhos? Por que razão continuarão a pensar que a melhor maneira de convencer os consumidores da absoluta necessidade que eles têm dos seus excelentes produtos e dos seus inovadores serviços é interrompê-los sempre que eles querem ler uma notícia num site na Web ou ver um programa na televisão? Por que razão pensarão que interromper uma pessoa, impedi-la de fazer o que ela quer fazer, forçá-la a ver algo que não quer ver e a ouvir algo que não quer ouvir, é a melhor forma de fazer publicidade? O que será que eles ainda não perceberam?

Há quem diga que há uma boa razão para esta prática: ela funciona. No entanto, há outros critérios que gostamos de ver aplicados pelas empresas para além da eficácia.
Afinal, o Zyclon B revelou-se uma forma extraordinariamente eficaz de liquidar seres humanos em massa e não é por isso que ela passou a integrar os manuais de procedimentos das empresas modernas. A verdade, porém, é que estes métodos agressivos e repetitivos, a que o guru Seth Godin (Seth's Blog) chama apropriadamente “marketing de interrupção”, não são eficazes para chamar a atenção e muito menos são eficazes ou eficientes para despertar a atenção, o interesse ou o desejo dos futuros compradores e é por isso que os anunciantes recorrem a estas doses maciças – tentando fazer através da manipulação bruta o que não conseguem fazer através da criatividade.

Na televisão, por exemplo, os marketeers descobriram essa subtil forma de chamar a nossa atenção que consiste em subir o volume dos anúncios para um nível tal que conseguiram criar o reflexo condicionado de carregar no botão mute do comando mal surge a ficha técnica do filme que estávamos a ver. Há anos que só por descuido ouço o som de um anúncio e nunca por muitos segundos.

Penso que muitos outros farão o mesmo. E, no entanto, a publicidade poderia ser algo interessante, se soubesse considerar os seus alvos como seres pensantes e não como carneiros lobotomizados com cartão de crédito.
Godin lançou em 1999 o seu livro Permission Marketing, onde alertava os anunciantes e publicitários para o risco do “marketing de interrupção” (as pessoas não gostam, irritam-se, não compram e a tecnologia oferece-lhes cada vez mais meios para contornar a publicidade) e onde defendia o advento do “marketing de permissão”.

Neste modelo, os consumidores declaram o que lhes interessa, a publicidade que estão interessados em receber e de que forma. Ainda que os números de pessoas atingidas sejam menores, como se trata de clientes potenciais, o seu valor para as empresas é maior. E a liberdade (os anunciantes que não se lembrem do significado do conceito podem fazer uma busca no Google) dos utilizadores é preservada.

A Web oferece formas relativamente simples de concretizar estas práticas de opt in na publicidade – como fazemos quando compramos uma revista de moda ou de informática, cheia de anúncios, mas sem os quais a revista não teria para nós o mesmo valor. O que é lamentável é que, com as potencialidades que a Web abre a uma publicidade mais criativa e mais respeitadora dos direitos dos consumidores, os anunciantes e os “criativos” continuem a oferecer-nos a mesma publicidade invasiva de sempre, tapando as notícias que queremos ver e cobrindo as páginas que queremos ler, intrometendo-se malcriadamente à nossa frente e gritando na nossa cara.

E isto quando não optam pela escrita de artigos falsamente publicados como informação nos jornais ou pela “colocação de produtos” nas mãos dos personagens dos filmes que mostramos aos nossos filhos. A publicidade gosta de se apresentar como um dos exemplos cimeiros de criatividade na nossa sociedade. Será que isto é o melhor que consegue fazer? (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, março 10, 2010

Chuva

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Março de 2010
Crónica 10/2010

O vulto que eles acabam de encharcar semi-distraidamente pertence à categoria dos sub-humanos: um peão

São só umas centenas de metros, um quilómetro no máximo, talvez um pouco mais. Uns trezentos metros pela Alameda da Universidade, depois é só atravessar o Campo Grande e seguir em frente pela Avenida do Brasil. A chuva não dá mostras de querer parar, não há autocarros nem Metro neste trajecto e não vale a pena sonhar que vai passar um taxi livre. As alternativas são esperar num portal por uma aberta que pode não vir nunca ou meter-me à chuva, o que não me assusta muito, protegido como estou com o meu impermeável, uns sapatos de inverno com provas dadas e o meu guarda-chuva. E não chove tanto como isso. Chove, mas não é uma tempestade. É uma chuva que ainda não parou verdadeiramente desde a manhã mas não é um dilúvio. E para que serve um impermeável e um guarda-chuva se não para andar à chuva?

Pelo sim, pelo não vou deitando o olho aos carros que descem a alameda não vá aparecer o taxi improvável. A rua está coberta de água e as sarjetas fazem aquela coisa lisboeta que é golfar água suja aos borbotões em vez de a engolir, como deviam.

Passa um carro, numa velocidade excessiva, que me lança para as pernas o manto de água que cobria o pavimento e me encharca até aos joelhos. Antes que tenha tempo de me afastar do lancil e fugir a novo ataque passa outro carro e outro, seguindo o mesmo rasto e com a mesma determinação, que acabam de me encharcar. As imprecações não me servem de alívio. Estou molhado até ao tutano e os sapatos não chegaram para me proteger os pés.

Pode parecer difícil imaginar o espírito da pessoa que está ao volante e que nem consegui ver, através da chuva e dos vidros molhados e embaciados, mas não é. Para estes motoristas apressados, ao seco, dentro dos seus carros, o vulto que avança pelo passeio e que eles acabam de encharcar semi-distraidamente pertence à categoria dos sub-humanos: um peão.

É claro que poderiam ter reduzido a minha molha se reduzissem a velocidade, mas a Câmara é que deve zelar pelo estado das vias, garantir que os esgotos não se entopem, que as ruas não se inundam, que estes charcos e estas poças e estes lagos não se formam. Como a Câmara não faz isso, não se pode evitar molhar os peões e se não se pode evitar molhar os peões... não vale a pena tentar. E se tentássemos mesmo não os molhar tínhamos de andar a passo de caracol. Já bem chega o atraso com que vou chegar por causa da chuva. E eles já sabem: quem anda à chuva, molha-se. Já que estão molhados, coitados, ficam um bocado mais molhados. Eles aliás não se importam tanto como nós porque esta gente é muito resistente. Se se importassem não andavam a pé, não era? Andavam de carro, não era? E se não tivessem carro iam logo a correr comprar um carro.

Na paragem de autocarro a meio do Campo Grande estão meia dúzia de pessoas, tão molhadas como eu e pela mesma causa: a água da rua, não a do céu. Os carros passam em contínuo e molham-nos em contínuo.

Metade dos carros reduz a velocidade, para que o leque de água só salpique os pés dos peões. Mas muitos percebem que não vale a pena ter grandes cuidados porque afinal eles até já estão molhados e passam à vontade. É verdade que há uns olhares furibundos e gritos de protesto quando passa um carro mais petulante, mas como ninguém pega numa pedra da calçada para lhes rebentar com o vidro traseiro não há azar. E o anonimato protege os audazes, com esta chuva e os vidros molhados. Se lhes víssemos a cara talvez se inibissem um pouco, mas tudo o que há lá dentro é uma coisa disforme, sem olhar.

Carrinhos utilitários ou de alta cilindrada comprazem-se no mesmo desporto displicente, comungando dessa cumplicidade de classe que une os que não precisam de passar uma hora à chuva numa paragem de autocarro com os pés molhados, os sacos das compras molhados, o guarda-chuva molhado encostado ao corpo, os miúdos desesperados de cansaço e frio, as mochilas molhadas, a alma enxovalhada e a cabeça a sonhar com uma pedra da calçada. Não há nada mais triste que estar à chuva numa paragem de autocarro a ser regado pelos carros que passam, indiferentes. Não há nada de Gene Kelly num dia de chuva em Lisboa. (jvmalheiros@gmail.com)

sábado, março 06, 2010

Web: milhares de revoluções nos últimos vinte anos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 6 de Março de 2010
Suplemento P2 (número especial dedicado aos 20 anos do Público)

A Web tem vinte anos. Nestes vinte anos, não houve quase nenhuma actividade humana que não tenha sido tocada por ela e, em muitos casos, revolucionada por ela. A sociedade que emergiu desta revolução tecnológica é radicalmente diferente da que existia há vinte anos. Mas a sociedade que a Internet parece desenhar para o futuro é uma sociedade centrada no controlo e onde as liberdades individuais podem vir a ocupar um papel secundário.

Em cada minuto que passa, há vinte horas de vídeo que são colocadas nos servidores do YouTube. Mil e duzentos minutos de vídeo em cada minuto. Se quiséssemos reunir uma equipa capaz de visionar o material que lá fosse colocado de hoje em diante, teríamos de contratar mais de 5.000 pessoas. E a equipa teria de ir crescendo.

E, em cada dia que passa, mais de mil milhões de vídeos do YouTube são descarregados e vistos por utilizadores em todo o mundo. Vídeos que vão desde uma interpretação da 6ª Sinfonia de Tchaikovsky pela Filarmónica de Berlim a um clip de um jovem sul-coreano no seu quarto a arrancar da guitarra eléctrica o cânone de Pachelbel. Ou um vídeo do cozinheiro britânico Jamie Oliver a explicar as maneiras de cozinhar arroz. Ou um documentário sobre as eleições birmanesas deste ano, filmado por activistas que combatem o regime.

O YouTube só existe há cinco anos, mas transformou-se num ponto de encontro mundial, de todas as línguas, de todas as imagens, um desses sítios indispensáveis onde vamos ver notícias, ouvir música, aprender receitas, investigar novas ideias, conhecer pessoas, estudar história, divertirmo-nos... E é apenas um dos milhões de sites que existem no mundo.

Há vinte anos, quando o PÚBLICO dava os primeiros passos em Lisboa e no Porto, a Web também dava os seus primeiros passos em Genebra, no Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), pela mão do engenheiro britânico Timothy Berners-Lee. A certidão de nascimento da Web tem a data de Dezembro de 1990, mas quando os fundadores do PÚBLICO faziam as suas primeiras reuniões, na primavera de 1989, já Berners-Lee e o seu amigo belga Robert Cailliau congeminavam as primeiras versões do que viria a ser a WWW.

Como era antes?

Nada mudou tanto os vinte anos que se seguiram como esta coisa, que permitiu que toda a gente que tivesse um computador ligado a uma linha telefónica folheasse a informação armazenada em milhões de bases de dados e contactasse centenas de milhões de pessoas no mundo. E tudo com mais facilidade do que quando programávamos os nossos gravadores de vídeo para gravar um programa na televisão nos anos 90.

A Web não fez uma revolução. Fez muitas revoluções. E não há muitos paralelos na história em termos de impacto – podemos pô-la a par do computador, da televisão, do telefone e do automóvel, para ficarmos pela era industrial.

Consegue identificar uma área que não se tenha tornado irreconhecível nos últimos vinte anos devido à Web? Lembra-se como eram os jornais ou as televisões antes da Web? Como é que os estudantes faziam os seus trabalhos? Como é que se faziam negócios? Como é que se procurava informação? Como é que se organizavam as férias, se compravam livros, se fazia política, se sabia o que se passava no mundo, se contactavam os amigos, se organizava um movimento de cidadãos, se fazia a guerra, se aprendia línguas, se fazia medicina, se dava aulas?... Muitos negócios desapareceram e outros vivem ainda o trauma da reestruturação. Paralelamente, negócios que ninguém tinha sequer imaginado em 1990 explodiram – com uma empresa de pesquisas gratuitas na Web a içar-se para os píncaros da valorização bolsista, com uma empresa de leilões online como a Ebay a facturar 8500 milhões de dólares no ano passado, com a economia a crescer com base em empresas que fornecem serviços grátis, seguindo modelos que provocariam um enfarte a qualquer economista há vinte anos.

Sempre no ciberespaço

Hoje qualquer adolecescente encontra penfriends nos países que quiser, segundo os critérios de gosto que preferir, e qualquer pessoa pode envolver-se num videochat com interlocutores escolhidos aleatoriamente de todo o mundo.

Lembra-se do romance Neuromante de William Gibson, de 1984? Lembra-se daquela coisa chamada “ciberespaço” que ninguém percebia muito bem o que era porque as pessoas estavam lá mas não estavam mesmo lá? Hoje vivemos aí. E os nossos filhos vivem ainda mais aí.
Estou no ciberespaço enquanto escrevo este artigo e vou enviá-lo para o jornal pelo ciberespaço e você vai lê-lo provavelmente no ciberespaço e é aí que vai ficar arquivado. A Web é a grande biblioteca sonhada de Borges, a grande Babel, mas é muito mais, é o sítio onde conversamos, onde trocamos fotografias dos nossos filhos, onde fazemos negócio e nos divertimos. E o número de pessoas que sente que não está verdadeiramente viva quando não está ligada tem crescido. (Você nunca sentiu isso?) Um dia este ciberespaço será o nosso principal interlocutor – não o meio da comunicação, nem a mensagem, mas o interlocutor, uma identidade difusa muito parecida com Deus ou com o Diabo – e contar-nos-á as coisas interessantes que estão a acontecer, far-nos-á sugestões, talvez críticas às nossas escolhas (“Porque é que vais comprar esse livro? Já sabes que não o vais ler!”).

Quem fiscaliza os electrões?

Por agora deixámos de precisar de ter as enciclopédias em casa porque elas estão na Web, deixámos de precisar de comprar jornais porque eles estão na Web, deixámos de precisar de ir a todas as aulas porque elas também estão na Web, deixámos de fazer imensas reuniões porque podemos fazê-las na Web e deixámos de comprar DVD de filmes e CD de música e de ver televisão e de comprar livros porque eles também estão na Web. E agora vamos deixar de comprar software (lembra-se de comprar software?) porque ele está na Web e compra-se e usa-se de outra forma. E um dia o computador estará ele próprio na Web e só precisaremos de um ecrã táctil (ao mesmo tempo unidade de input e de output) que será a parede da minha sala, a manga da minha camisa, a palma da minha mão. Para quê ter um fio a ligar o meu teclado ao meu CPU quando posso ter ar wireless a ligar a parede da minha sala ao ciberespaço, quando o ar é todo ele ciberespaço?

Quando contarmos aos nossos netos que dantes se comprava (por um fortuna!) um Word que se instalava no nosso computador para podermos escrever, eles vão olhar-nos como se lhes contássemos que no nosso tempo cada pessoa tinha em casa um tear mecânico para fazer todas as manhãs a camisa que vestia antes de sair à rua.
Como será regulado este mundo? Como será esta economia onde tudo é comunicação, fluidez, instantaneidade, onde as fronteiras entre todas as entidades e as pessoas se esbatem, onde cada um de nós não viverá uma fracção de segundo sem transação tecnológica e económica? Teremos facturas? Quem fiscalizará o ar e os electrões e os fotões? Se o mundo de antes da Web já se tornou arcaico, o mundo de hoje já nos parece arcaico hoje mesmo, habituados como estamos a olhar a paisagem pelas janelas da frente do cockpit.

As coisas que falam

A actual complexidade da Web seria considerada ingerível há uma dúzia de anos e no entanto ela move-se. Mas estamos só no início e no início era o Verbo. Agora, este mundo de palavras, de documentos, de imagens, de trocas ainda sentimentais e eminentemente entre humanos, começa a ser invadido pelo tsunami dos dados das coisas. A Internet das Coisas é “the next big thing”. O que é a Internet das Coisas? Um mundo onde todas as coisas falam com todas as coisas. Onde cada objecto está dotado do seu dispositivo identificador, é capaz de dizer qual é o seu eu e a sua circuntância, a sua história, a sua localização, de identificar os seus vizinhos, de dizer de onde vem e para onde vai.

Pesadelo? Sim, mas não é um sonho. O seu carro tem uma coisa destas no pára-brisas para atravessar as portagens sem parar e vai ter outro na matrícula para isso e talvez muito mais. E as lojas têm coisas destas nos seus produtos para evitar que você as roube, que fazem soar um alarme quando ultrapassam a porta. Todos os fabricantes de seja o que for usam estes dispositivos, chamados RFID, identificadores de radio-frequência, e os que não os usam querem usá-los. São óptimos para a gestão de stocks, para aumentar a eficácia do trânsito de produtos. Um contentor carregado de peças de roupa passa ao pé de um detector e aparece num monitor o tipo, modelo, número, cor, padrão e dimensão de cada artigo que lá está dentro. Há um fabricante de roupa interior que tem RFID em todos os produtos, o que lhe permite dizer, quando você entra numa loja: “Então, está a gostar dessas boxers verdes que traz vestidos e que comprou em Abril do ano passado na nossa loja de Vila Nova de Gaia?”

Um dia, os seus boxers verdes poderão aceder à Internet sem lhe dizer e o fabricante saberá por onde eles andam. Não é só o seu carro que vai dizer onde está, nem só o seu telemóvel: são também as suas cuecas, os seus óculos e as suas chaves. Invasão da privacidade? “Claro que não”, clamam os fabricantes (das coisas e dos RFID), “eu só quero saber onde andam as cuecas que eu vendi, não o dono delas”.

Sensores em tudo

Os fabricantes de aviões e de automóveis usam cada vez mais destes RFID. O objectivo é que cada uma das peças de cada avião tenha um – até porque estes identificadores podem incluir também sensores de pressão, de temperatura, de outras coisas. O A350 XWB da Airbus que deve entrar ao serviço em 2013 tem mais de 5000 peças com RFID, que podem ir contando a sua história aos computadores de bordo durante o voo. Óptimo para a segurança.

A maldição é precisamente a segurança, a produtividade, a eficiência. Queremos saber em que rua e em que sentido e a que velocidade se está a deslocar cada carro para melhor gerir o trânsito. Queremos saber a que distância está cada carro do carro do lado, da frente, de trás para melhor evitar os acidentes. Queremos saber onde estão os nossos filhos e com quem para reduzir o risco de agressões, de fugas, raptos. Queremos saber quem comprou o quê e quando para podermos planear de forma mais racional os ritmos de produção. Queremos saber quem acende quantas luzes a que hora para poder adequar a oferta à procura, para reduzir emissões de CO2, para evitar desperdícios. Queremos pôr sensores em tudo quanto mexe para podermos monitorizar o mundo, para saber o que acontece em tempo real. Tudo boas razões. E a tecnologia hoje (ou amanhã) permite isso. O ciberespaço será o sítio onde todos estes dados se encontram e a rede será o único computador capaz de digerir estas vagas de dados e de extrair daqui informação com algum sentido.

Perda de privacidade

Para colher os benefícios da sociedade em rede é necessário participar, o empowerment do cidadão passa pela sua participação na rede, mas essa mesma participação implica uma redução do seu direito à privacidade, como faz notar há muito o sociólogo espanhol Manuel Castells.

A maior parte dos utilizadores não tem a sensação de perder algo por permitir que os seus dados sejam vistos por outrem, mas mesmo aqueles que têm consciência disso aceitam o trade off. Quando a rede se torna a realidade, não estar na rede é não existir. E se for preciso tornar transparente a nossa vida privada para estar na rede... é um preço que se tem de pagar. Afinal não temos nada a esconder, pois não? E, de qualquer forma, todos o fazem, por isso estamos protegidos: por um lado, passamos despercebidos no meio da multidão; por outro lado, estes fluxos de informação são simétricos, nós também podemos saber coisas sobre os outros.

Na realidade... não é assim. Há quem possa aceder a muitos dados e tenha meios para os processar mas a esmagadora maioria das pessoas não tem. A Autoridade Europeia para a Protecção de Dados está preocupada com os RFID, a Comissão de Protecção de Dados Pessoais portuguesa também, mas estas preocupações não provocam mais do que um soluço na avalanche. Os ganhos potenciais de eficiência são demasiado grandes para se poderem perder.

A tecnologia da eficiência

Quem se está a preocupar com estas questões dos direitos, da liberdade individual? A resposta curta: ninguém.

A tecnologia voa em êxtase consigo própria e o social arrasta-se atrás, gaguejando coisas que ninguém percebe, o chato da família.

Os especialistas juram que em todos os programas de desenvolvimento tecnológico relacionados com a Internet - europeus, asiáticos ou americanos -, há uma imensa preocupação com o “impacto social” das tecnologias.

Mas basta raspar com a unha para perceber que aquilo que é chamado “social” se refere quase sempre à economia e nunca ou quase nunca ao cidadão, ao indivíduo, a nós, às pessoas enquanto pessoas – não enquanto contribuintes, consumidores, clientes. “Desenvolvimento social” e “benefício social” são sempre expressões de código para “criação de emprego” ou “novos modelos de negócio”, produtividade, objectivos tecnocráticos.

Em quase todos os discursos sobre os novos produtos, os novos serviços, os novos projectos, ninguém se esquece de citar a necessidade de “respeitar a vida privada dos cidadãos”, porque é evidente que ela está em risco, mas a formulação é reveladora. O espaço privado, o indivíduo enquanto tal, aparece como algo que se tenta proteger do alcance da tecnologia, pela negativa: a tecnologia estará em todo o lado e terá o poder de fazer tudo menos “isto” e “aquilo”. O racional é que a tecnologia serve para produzir eficiência (mas não liberdade) e, por isso, a única forma de defender a liberdade é criar zonas de menor intensidade tecnológica, espaços de protecção da vida privada. Mas não seria possível desenvolver as tecnologias para servir as liberdades?

Conhecimento para quê?

Quem vai controlar esta massa de dados que se acumula? O ciberespaço já sabe muito sobre nós e amanhã vai saber tudo, com quase toda a gente a permitir a recolha dos seus dados pessoais sem estados de alma. Mas nem todos saberão ler essa informação. Uns sim, outros não. Há enormes desigualdades na distribuição deste saber.

Quem decidirá o que é lícito fazer com essa informação e o que não é? Quem conseguirá saber que informação existe e onde está? Apenas alguns. Paradoxalmente, nesta sociedade onde todos aceitam que “saber é poder”, a Web facilitou a difusão do saber, mas não melhorou a distribuição do poder.

Há uns anos, ainda podíamos sonhar que a sociedade do conhecimento seria um mundo de criadores, de pessoas sábias, onde todos teriam possibilidade de desenvolver as suas capacidades e gostos intelectuais, um mundo de bem-estar e ócio criativo, de disponibilidade universal dos frutos da mente, um mundo de cultura e de inteligência. E de liberdade, claro.

O futuro mundo das coisas inteligentes, onde a saúde será inteligente, as casas serão inteligentes, as ruas e os carros também, sem esquecer o supermercado e a escola e o emprego, é um mundo de controlo. Controlo no sentido técnico do termo, mas que rapidamente pode deslizar para o sentido político. Pensávamos que a Sociedade do Conhecimento era aquela em que teríamos a possibilidade de saber tudo sobre o mundo. Afinal, parece mais provável que ela vá ser a sociedade em que o mundo sabe tudo sobre nós.

E uma sociedade onde a liberdade faz cada vez menos parte da equação. Apenas a eficiência impera. Cabe-nos fazer com que a liberdade, com as suas indefinições, a sua aleatoriedade, a sua imprevisibilidade, a sua confusão e a sua insegurança, volte a conquistar o seu direito de cidade. (jvmalheiros@gmail.com)

quinta-feira, março 04, 2010

A informação é uma coisa que se partilha

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 4 de Março de 2010
Crónica 9/2010

O leitor fiel de um só jornal morreu e já não vai ressuscitar

O principal tema abordado nos artigos publicados sobre o último inquérito feito nos EUA pelo Pew Internet & American Life Project (http://www.pewinternet.org) foi o facto de a Web se ter tornado uma fonte de notícias mais importante para os leitores americanos do que os jornais em papel ou a rádio. O facto vinha-se fazendo anunciar há tantos anos que só os muito distraídos terão fi cado surpreendidos, mas o marco é sem dúvida importante e é inevitável que a vaga se vá estendendo a todos os outros países. A percentagem que diz usar a Web para se informar é de 61 por cento e a percentagem para rádio, jornais locais e jornais nacionais é, respectivamente, de 54%, 50% e 17%. A televisão, porém, ainda aparece à frente de todos os meios neste ranking.

O que mais ressalta deste estudo (Understanding the participatory news consumer) é, porém, o carácter social desta actividade de consumo de informação.

O que quer dizer “carácter social”? Várias coisas. Por um lado, reforçando aquilo que outros estudos têm apontado, as pessoas interrogadas indicam como primeira razão para o seu consumo de informação “poder falar com outras pessoas sobre o que se passa no mundo” e como segunda razão o facto de estar informado ser “um dever cívico”. Só depois aparece a motivação devido ao valor utilitário ou de entretenimento da informação.

Decorre daqui – e isto está longe de ser uma novidade mas é um factor quase sempre esquecido pelos media – que a informação é tanto mais apreciada quanto mais partilhada for.

O que é mais importante (e daí o título) é que o estudo diz que 75% dos consumidores de informação online dizem aceder a notícias através de links que recebem por mail ou através de redes sociais, enquanto 52% afirmam difundirem as notícias que acham interessantes através desses mesmos meios. Outros dados colhidos no estudo reforçam esta ideia de que o consumo de informação é eminentemente uma experiência social – com a partilha, reenvio, comentário e discussão de notícias a ocupar um papel cada vez mais importante.

Finalmente, o estudo do Pew Research Center reforça mais uma vez a morte da figura do “leitor fi el” de um título, com a esmagadora maioria dos interrogados (92%) a usar várias plataformas para aceder a notícias e a consultar vários títulos e sites por dia.

O que significa isto? Entre outras coisas significa que os sites que apostam (ou vão passar a apostar) na restrição do acesso aos seus sites mediante assinaturas fazem isso por sua conta e risco e vão provavelmente passar um mau bocado. Não me parece que um modelo de negócio baseado em assinaturas seja sempre insustentável, mas do que tenho a certeza é de que ele não será a regra e muito menos uma solução.

Fechar um conteúdo significa reduzir a sua participação nesta troca social que é, cada vez mais, a forma como consumimos informação e fazer isso é condená-lo à irrelevância.

Se não for fácil localizar a informação, pesquisá-la, citá-la, referenciá-la, enviá-la, lincá-la, comentá-la, inserila em outros meios (blogues, redes sociais) o seu valor de uso reduz-se drasticamente. As próprias redes sociais estão aliás a perceber isso, havendo uma tendência para a adopção de tecnologias que facilitem a troca de informação e o tráfego de utilizadores entre todas elas.

Num mundo onde a informação é cada vez mais um bem social, partilhável, quem recusa esse estatuto e se quer transformar num clube privado e selecto, morre. A informação deixou de ser uma mercadoria para ser um movimento, um diálogo. E quem não percebe isso devia ir vender batatas.

O que os media deveriam estar a fazer era pensar de que forma poderão viver neste mundo reforçando essa experiência social de partilha (e também de produção) de informação e não na forma como podem adiar a sua morte, trancando as portas face ao tsunami. (jvmalheiros@gmail.com)